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Toda essa bibliografia percorremos novamente, salvo quatro ou cinco
espécies que as bibliotecas ao nosso alcance actual não possuíam, com o
particular objectivo de extratar o que por lá se encontrasse registado a
respeito de iconografia de Santa Joana, objectivo único do presente estudo.
Comecemos pelo tipo físico da Infanta, de capital importância, que
MARGARIDA PINHEIRO nos transmite ao mesmo
tempo que deixa exaradas algumas observações pessoais valiosas, como
vamos ver:
Passados hos ãnos da Minynice da dita Senhora Iffante E princessa dona Johãna Creciia
ẽ tanta alteza de fremosura. ẽtender. E saber. que assy
Como era cõtra natureza e Cousa desacustumada segundo a ordẽ do styllo e
ẽgenho natural. Assy cõvertiia todos os que a viã ẽ admiracã e spanto
dando louvores a deus.
Assy ẽ aquella tenrra Idade governava seu stado
e Regiia seu paaco. Como que fosse de perfeyta hydade.
Nẽ lhe
faziia mingua algũa. nõ tẽer vista e pratica de semelhãtes Cousas por Causa da acelerada morte da Rainha sua
madre. Emtrando a dita Senhora Ifante Na hydade de
nove e dez ãnos. Comecou a sse demostrar ẽ ella hũu maravilhoso Resplandor de amor de deus. E leixãdo outros desẽfadametos que a dita
Idade Requere. Comecou cõ grãde atento aprẽder leteras e querer entẽder
Latyn. (Crónica, págs. 77 e 78)
Voava per todas as partes da Crystindade a ffama
da grãde excellẽcia da fremosura e yndustria do entẽder E saber desta
Ifãte princessa. E a todos Reys e principes de diverssos Reynos poynha ẽ grãde Cobiica e desejo de a veer e ouvir.
E porque lhe era ynpossivel
por a distancia E alonguamẽto dos Regnos e terras. mãdavã pyntores muy perfeytos que a vissẽ
e tirassẽ per ho natural. pera poderẽ assy pyntada
gozar de tanta fremosura.
Antre os quaes foy ho muy serenissymo luys Rey de
franca primo de ell
rrey dõ affonso padre da dita Senhora. E ho ẽperador dalta lemanha
cunhado seu. Casado cõ hũa Irmãa do dito Rey dom affonso.
Certificavã e Juravã os pintores. nõ podiiã
nẽ tiinhã sciẽcia pera poder
penetrar & pyntar tanta graca e fremosura.
Porem cõtudo trabalhavã por a afemẽcar e pyntar.
Del rrey de frãca seu tyo
se afirmou que vẽedo a pyntura a qual se diz era muito natural. que
postos os giolhos ẽ terra deu
gracas e louvores ao Senhor deus.
Comecarõ algũus Reys e princepes
de a demandar a el rrey seu padre pera Casamento. aos quaes por entõ nõ
dava conssẽtimẽto
por sua tenrra Idade. o qual aynda entom nõ penetrava ho
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Consselho divinal. que nõ de Rey terreal. Mas do celestrial e eternal
avia de seer sposa. (Crónica, págs. 78 e 79)
Era de Idade de. quinze. anos. e Cantos a viiã Julgavã seer de vynte
cynco. tã grãde ẽ statura e fremosura era. (Crónica, pág. 80)
E aynda que de tã nova Idade fosse. quãtos a viiã
e ouviã. Julgavã seer
de vinte cynco. ou trinta. años. per sua grãde prudẽcia e saber.
Era
no Rostro e corpo. muy aposta. a frõte muito graciosa. os olhos verdes
mũi fremosos. ho naryz meaão e de boa ffeycã. a boca grossa
e Revolta. Rostro Redondo. ho Caram alvo cõ algũa canta quer coor bẽ
posta. muito fremosa gargãta e maãos maes do que se podesse achar e veer a ninhũa outra molher. alta e grãde de Corpo dereyto. muy aposto e
ayroso. aa vista e Reprẽsentacã de grãde Senhora e estado. (Crónica,
pág. 89)
Recolhida já no Convento de Jesus de Aveiro, continua
a Crónica,
Nom mudou por entõ vestidos
nẽ toucados que aynda que muy honestos e
baixos erã nõ sẽedo mays que hũu avito preto e outro brãco e faldrilha
vys. E cabeca cõ seus muito fremosos Cabellos ẽ nastros e coiffa de
pernas. e beatilha lãcada.
Isto nõ mudou por algũus tẽpos. atee que
tomou ho avito.
Depois que entrou
neste moesteiro nũca maes Calcou luvas. nẽ pos anel ẽ dedo salvo hũu soo
desmeralda. e outro daro que traziia sẽpre por Respeyto da Senhora sua
tya presente que lhos dera. E estes laneou no acafate quãdo lhe vestirõ
ho havyto. (Crónica, pág. III)
Para a cerimónia da investi dura do hábito, em Aveiro,
A muy devota Senhora se pos de giolhos ante a santa madre. E ajudando a
as parceyras soltos seus fremosos e cõpridos Cabellos. a madre prioressa
britiz leytoa lhos cortou cõ muita Reverêca e cortesya (Crónica, pág.
114).
E hũu soo anel desmeralda que sẽpre trouxera tyrou
e lancou no acafate. (Crónica, pág. 115)
Como souberã e forõ certificadas sua Senhora princessa e Iffante do Reyno cortados seus
fremosos Cabellos era toucada e
vestida cõ os vestidos da ordem. (Crónica, pág. 121)
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237 /
Diz o testamento da Infanta, enumerando os legados:
...Item ho Roby grãde do anel. ao princepe
meu
Senhor item a meu sobrinho ho pendẽte das tres pedras.
E ho pendẽte da esmeralda. Item aa Senhora minha tya
ho vulto. (Crónica, pág. 154)
Por fim, MARGARIDA PINHEIRO, contando o que foram os
últimos dias de vida da Infanta, fornece ainda indicações
valiosas, tanto para precisar o tipo físico da Infanta como até para a
história da Arte daquela época:
Determinou esta Senhora como fosse manhãa logo se cõfessar. E ally lhe
dizerẽ myssa. e Receber ho Senhor.
Ho que tudo assy for feito. Armou
e cõcertou hũ
devoto altar a Irmãa Sacristãa ja dita aly meesmo na Casa grãde onde a
sancta Senhora tiinha a Cama e jaziia. vẽedo ella e ordenãdo ho lugar
onde fezessẽ o dito altar pera aquela missa e comunhom. E mãdando põor
as Imagẽes e Retavollos que ẽ elle lhe posessem... (pág. 156).
Mãdou a dita Senhora Iffante stevesse assy alIy ho altar
Como stava E muito amiude fycãdo hos olhos no vulto
e Imagẽ de nossa Senhora. (Crónica, pág. 157)
Inpossyvel he poder dizer as pallavras e
exclamacões que a nosso Senhor diziia. e depois tornava sse a nossa Senhora
cuja Imagẽ cõ ho Menyno que esta mamãdo ante ssy tiinha no altar que
mãdara fazer pera
a myssa. no qual stavã outrossy ha Cruz grãde da sua
Capella. E ho seu vulto muito fremoso da Ressurreyçã
que aa Senhora sua tya leixou dessẽ por ficar da Raynha sua madre Irmãa da dita Senhora sua tya. (Crónica, pág. 162)
Allevantou os olhos a Cruz e crucifixo que ante ella tiinhã. E porque de
seu natural eram verdes muito fremosos ẽ aquele põto stavam tã Claros. E ho verde assy em tal maneyra
era Claro e Resplãdecente. que verdadeiramẽte pareciiã smeraldas muyto
fynas. postas ante ho olho do soll. (Crónica, pág. 168)
NICOLAU DIAS, o mais compendioso e um dos mais antigos biógrafos impressos da Infanta (1594), unicamente transcreve a
Crónica manuscrita de MARGARIDA PINHEIRO, nada acrescentando com
utilidade para a iconografia, de Santa Joana, razão pela qual nos
dispensamos de o extratar, depois de quanto acima já fica transcrito da
própria Crónica.
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238 /
Da mesma forma Fr. JERÓNIMO ROMAN (1595); embora
declare ter visto a obra de NICOLAU DIAS, a Crónica de Soror MARGARIDA,
e papéis da Casa de Bragança e de Tomar, compondo, em seguida, a sua
história de maneira diferente(1), nenhuns elementos novos fornece, e
decalca, afinal, a Crónica, o que, aliás, era inevitável a qualquer
historiador, atentas as especiais circunstâncias em que fora escrita.
Registando, por exemplo, o tipo físico da Infanta, diz, como Soror
MARGARIDA (e como NICOLAU DIAS, que também a seguiu)
«Fue la sancta Princesa de gentil cuerpo y disposicion, la cabeça muy graciosa, por tener los cauellos
naturalmẽte como madexas de oro, los ojos verdes, y
muy hermosos: la nariz muy proporcionada, los labios gruessos, el rostro
redondo, el color blãco, mesclado cõ ciertas sombras coloradas, que la
haziã muy agraciada, y en todo parecia Reyna.»
Depois de recolhida a descrição do tipo físico da Infanta
na Crónica, não interessa, portanto, o que a esse respeito os mais biógrafos escreveram, pois a origem de todos é
Soror MARGARIDA.
Em 1662 imprimiu-se o segundo tomo da
História de
São Domingos, particular do Reino e conquistas de Portugal, de Fr.
LUÍS CÁCEGAS, «reformada em estilo e ordem;
e amplificada em successos, e particularidades» por Fr. LUÍS DE SOUSA; mas Fr. LUÍS DE SOUSA faleceu em 1632, e Fr.
LUÍS
CÁCEGAS em 1610; a este se devem os elementos para a obra
que saiu em nome dos dois, mas da qual o próprio Fr. LUÍS
DE SOUSA declara (Parte II, Liv. 4.º, cap. VIl) pertencer, em
substância, a Fr. LUÍS CÁCEGAS, «a cujo nome, e trabalho se deve a parte mais substancial da presente escritura»... «dandolhe o primeiro lugar nelIa, porque na verdade se lhe deve.
Andou perto de vinte annos polIa Provincia investigando
antiguidades dos Conventos, pera esta Historia»... Foy este
seu trabalho meyo pera nos deixar junta a mayor parte da informaçaõ do que vamos historiando; e serviraõme os seus caminhos, pera eu poder escrever assentado, quieto, e escondido no canto da Cella. Em outras partes temos apontado,
que nos deu materia, pera bom edificio, naõ edificio feito».
...«se elle naõ fora primeiro no merecimento de trabalhar, não pudera eu ser segundo no de escrever: porque a
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239 /
idade crescida em que buscamos a Religiaõ, se bem nos deixou entender com esta fabrica, de todo impossibilitava o
desassossego dos caminhos, e o mendigar das informaçoens.»
A 1610, pelo menos, se devem portanto retrotrair as
informações da obra impressa em 1662; ora a pág. 225, 1.ª coluna, ficou registado, entre os sucessos memoráveis
ocorridos por intercessão da Santa Princesa, que
«Sendo nouiça Sor Anna da Presentaçaõ, padecia
hũs accidentes, que a priuauão de todos os sentidos.
Trouxerãolhe hum retrato da Sancta, encomendouse a
ella: desta mesma hora nam sentio mais semelhante mal
em toda a vida.»
Ao nome de «Soror anna da
preSemtação» averba
a Crónica (Pág. 253) um registo de óbito «No anno do
Senhor de mil seiscentos e treze»; é de presumir que se trate
da mesma pessoa, tanto mais que não aparece outra alguma
com o nome de Soror Ana da Apresentação; quando tenha
sido noviça é que já não será fácil apurar, pois a Crónica
regista as profissões antigas com o nome que as noviças usavam no século; sabe-se que
em 1508 professou Ana Dias,
em 1531 Ana Pereira e Ana de Melo,
em 1565 Ana de Vilhana,
em 1566 Ana Freire,
em 1575 Ana Henriques,
em 1592 Ana da Coluna, e
em 1603 Ana Natália.
Depois desta data só aparece
Ana Maria já em 1618, o que a coloca fora de causa.
A averiguação de qual das referenciadas acima foi Soror
Ana da Apresentação interessava para determinarmos a mais
antiga referência a um retrato da Infanta existente em Aveiro;
nem tudo, porém, aparece, e forçoso se torna contentar-mo-nos com o que há.
Do Padre ANTÓNIO DE
VASCONCELOS e do P.e CARAMUEL
LOBKOWITZ apresentámos já o mais valioso depoimento de
quantos nos poderiam ter sido conservados: os retratos gravados a buril para ilustração das suas obras, respectivamente
de 1621 (Anacephalaeoses) e 1639 (Philippus Prudens);
o texto biográfico de qualquer dos dois panegiristas não
fornece elementos novos com interesse iconográfico; mas a história do
retrato não dispensa o conhecimento do que
no prólogo daquelas obras ficou registado.
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240 /
Assim, principiando pelo registo de quanto na portada
da 1.ª edição da obra do P.e VASCONCELOS se encontra, temos:
«Allacephalæoses id est, summa capita actorum
regum Lusitaniæ. Auctore P. Antonio Vasconcellio
Societatis lEsu Sacerdote, Theologo Olysipponensi.
Accesserunt Epigrammata in singulos Reges ab
insigni Poeta EMMANVELE PIMENTA eiusdem Societatis.
Et illorum efflgies ad viuum expressæ,
curâ, &
sumptibus Emmanuelis Sueyro Regiæ Catholicæ
Maiestatis Aulici Familiaris, Equitis militiæ Saluatoris nostri IESU
CHRlTI; & Domini de Voorde.
Antverpiæ Apud Petrum & loannem Belleros.
Anno M.DC.XXl. – Cum Gratia & Priuilegio.»
Volvida a folha, logo se nos depara uma carta daquele
MANUEL SUEYRO a Filipe IV, que principia deste modo:
Regum Lusitaniæ effigies meâ curâ
æri insculptas; Augusto tuo nomini, Magne Rex, visum est inscribere,
& quæ prisca est votorum formula, Lubens, Merito,
Dedico, Consecróque; Lubens quidem, vt hac occasione cultus fiei studium
aliquod Maiestati vestræ offerrem,
donec Flandriæ historiam auspiciis Sanctissimi Parentis Vestri Philippi
III. inchoatam ad vmbilicum perduxero.
Merito verò, quia maiores vestros, quos rerum gestarum gloria cœIo
consecravit, nemo Maiestate vestra lubentius excipiet; rapitur enim ad
similitudinem suorum excellens quæque natura, & cœlestium animorum
simulachrum refert decerpta ab iis aura: iuuabit illorum ora,
vultusque contemplari, quorum diuinas virtutes assiduò æmularis, &
felicissimè orbi reddis.». ..
Nas considerações que, a seguir, o P.e VASCONCELOS dirige ao leitor,
importa notar estas palavras, de interesse para a crítica artística da
obra:
Vt effigies suis essent lineamentis
absolutæ, lectissimus conquisitus est in Belgio incisor, cui pro Dædalo
& Polycleto adfuit Emmanuel Sueyro Antuerpiæ incola,
Lusitanis editus parentibus, equestris in Lusitanæ aulæ
família dignitatis assignato in menses singulos nobili
congiario, & illustrissimæ inter nostros Christi militiæ insignibus
exornatus, vir & multarum linguarum, & optimarum scientiarum laude clarus, & vbiq;
summo loco habitus, tam propter
eximias animi & corporis dotes,
quàm ob luculentos libros, quos edidit, & alios, quos in
lucem fætura proxima emittet. Qui cum in promptu
haberet optimas Regum effigies ex tota Lusitania
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241 /
[VoI. XVIII -
N.º 72 - 1952]
diligenter comparatas, & singularum notas ex historijs attentè collectas,
curauit, ne quid in archetypis industriæ & elegantiæ desideraretur.
Regibus omnibus coronas apposuimus, quamuis ijs aliqui in antiquis
exemplaribus carerent, ne quis nodum in scirpo inesse putet, ex
discrimine aliquid à veritate absonum coniectans.
Nulli antiqua armorum insígnia, quorum suo cuiusque tempore
usus erat,
apponimus, quia nodosæ illæ clauæ, rubigineæ secures, informesque
thoraces plus habent vastitatis, quàm maiestatis, nec ad viuida cuiusque
lineamenta spectantibus offerenda quidquam conferunt. Ideo singulos
recentibus, & ideo gratioribus insignibus exornamus.
A segunda obra que nos
transmitiu o retrato da Infanta
foi, como vimos, o PHILIPPVS PRVDENS CAROLI V. IMP. FILlVS LVSITANIÆ
ALGARBIÆ, INDIÆ, BRASILIÆ LEGITlMVS REX DEMONSTRATVS.
A D. Ioanne Caramuel Lobkowitz Religioso Dunensi Ord. Cister. S. T.
Doctore Louaniensi et Melrosensi Abbate.
Antverpiæ, Ex officina Plantiniana Balthasaris
Moreti. M.DC.XXXIX.
Diz CARAMUEL, no final das páginas preliminares, que
intitulou «occasio scribendi»:
«Regvm effigies.
Expresserunt varij auctores Imagines Portugallensium Regum. Exstant in Avlâ Vlyssiponensi ad viuum, vnde diligentia
Marizij eas excepit; in hoc infelix, quòd nactus fuerit sculptorem
incurium. Vasconcellius apud Belleros editur anno 1621. Regum omnium
effigies continens, sed non ad viuum: etenim penicillus audax eò
respexit, vt pulchras potiùs efficeret quàm veras: alij aliter
delineauerunt. Mediâ viâ insistens, Marizias effigies donaui subtili
perfectione, & Vasconcellias veritate, nactus Pictorem celeberrimum E.
Quellinum, & C. Gallæum optimum sculptorem. Vterque in suâ arte
perfectissimus solertiâ summâ satisfecit. His felices delineationes
debes; Domino autem Balthasari Moreto,
& mihi, eos impendisse, vt seruiremus tuæ curiositati.»
Mas a história do retrato continua; D. FERNANDO CORREA
DE LACERDA «Indigno Bispo do Porto», refere o mesmo caso de Soror Ana
da Apresentação na Virtvosa vida e sancta morte da Princesa Dona Ioanna
que se imprimiu em 1674, dizendo:
«Estando no anuo do noviciado a Madre Soror Anna da Apresentação, lhe
derão hũs grandes accidentes, que
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242 /
a privavão de todos os sentidos, trouxeraõlhe o retrato da Sancta
Princesa, encomendouse a elle, & ficou saã; desta sorte, começou a ser
milagrosa aquella imagem,
em signal que aquella alma era sancta.»
De 1688 é dedicada pelo P. DANIEL PAPEBROCHlUS, S. J.,
ao Arcebispo de Lisboa D. LUÍS DE SOUSA, a biografia da Infanta
publicada na colecção dos Acta Sanctorum, onde este precioso depoimento
ocorre:
«Celebratur solenniter ibidem ipsius
Joannæ festum hoc die, assistente toto oppidi Senatu, cum paramentis perquam splendidis, Missa & Sermone
de Omnibus Sanctis, coram ejusdem imagine exposita in altari majori;
quæ quidem imago, ipsam ad vivum repræsentat in habitu seculari,
qualem apud P. Antonium de Vasconcellis in Anacephaleosi Regum Lusitaniæ
ære expressam videre est. Non desunt tamen per provinciam aliæ, tam picturæ, quam
statuæ, repræsentantes ipsam in habitu
Dominicano, cum spinea corona in capite, crucifixo in manu, radiisque
seu diademate, æque ac si esset ab Apostolica Sede Beatificata; haud
dubie ideo, quia usque hodie a devoto populo invocatur cum titulo
Sanctæ Principis, ex tacito saltem Prælatorum consensu. Quapropter
etiam prædicto die, supramemoratum sepulcrum ostenditur inquilinis,
illuminatum cereis; & per decursum anni etiam extraneis, non absque
lumine, nec citra difficultatem: distribuitur etiam ab antiquo tempore
terra, quæ in vaso porcellano servatur, a die suæ translationis: nec
hodiedum deficit medicina istæc contra febres, quotidianis & patentibus
miraculis comprobata.»
O leitor que tenha acompanhado o encadeamento das
referências ao retrato do Museu de Aveiro encontra acima a reprodução
da gravura que ilustra a narrativa de PAPEBROCHlUS – fig. 11 – e bem
assim a da obra do P.e ANTÓNIO DE VASCONCELOS, Anacephalæoses
– fig. 4 –; esta última decalca, sem controvérsia possível, o retrato de Aveiro
actual – figs. 10 e 13 –; por sua vez, PAPEBROCHlUS afirma que a gravura
do Anacephalæoses reproduzia expressamente o quadro então existente no
Mosteiro de Jesus.
A seguir aos Acta Sanctorum temos o depoimento de Fr. LUCAS DE SANTA
CATARINA, com a sua prolixa e ultra-gongórica Estrella Dominica
novamente descuberta no Ceo da Igreja. História Panegyrica ornada com
todo o genero de erudiçaõ Divina e humana (dois tomos, respectivamente
de 1709 e de 1713, das oficinas de Valentim da
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Costa Deslandes e Real Deslandesiana, de Lisboa; o 1.º apresenta,
contudo, licenças para impressão datadas de 1704).
Através daquelas infindáveis páginas e páginas de palavrosos comentários perfeitamente inúteis, que raríssimos leitores terão
conseguido suportar, Fr. LUCAS escassamente alude à iconografia da
Infanta; no entanto, é talvez nessas páginas esquecidas que pela
primeira vez terá ficado registada a notícia muito explorada por JOAQUIM DE VASCONCELOS,
e, depois, por outros comentadores, de que o Bispo de Coimbra, D. João
de Melo, trouxera para o seu paço um retrato da Infanta, hoje
desconhecido. Adiante analisaremos, por nossa vez, esta declaração de
nossos dias, e possivelmente se esclarecerá o assunto, sem dificuldades
de maior.
Começa Fr. LUCAS por anotar que no altar fronteiro à porta da igreja do
Convento de Jesus, de Aveiro, se colocou uma imagem de Santa Joana «em
obra de talha, & a mais primorosa», ...«avultada em estatura humana»
(T. II,
pág. 149); divaga, em seguida, e, na página imediata, dá conta dos
prodígios obrados pela memória da Infanta, registando então:
«Outra imagem havia no Mosteyro, em Retrato, que se copiou da Santa ao
espirar, que como se herdàra vida do Original, assim escutava as
supplicas aflligidas, que só a tibieza da Fé as fazia baldadas. Naõ o
forão as
do Prior do Convento (do mesmo hábito, & na mesma
Villa) Fr. Jacinto das Neves, que achando-se atormentado de huma
erysipella, que lhe tomava toda huma parte do corpo, & crecendo assim o
mal rebelde às medicinas, que o mandàraõ sacramentar os Medicos,
começando a contar-lhe as horas da vida, como a quem só esperavaõ
vizinha a da morte; elle accendendo a Fé nos desenganos, pedindo que lhe
trouxessem o Retrato da Santa, assim foy subita a melhora, que ao
seguinte dia, antes pareceo resuscitado, que convalecente. Religioso que
assistio ao prodigio, mo referio, & o jurou.
Este Retrato (aconselhado da fama de suas maravilhas) levou o Bispo de
Coimbra D. Joaõ de Mello,
prenda escolhida, & avaliada só nos piedosos acertos do seu Espirito.
Nas suas mãos o depositáraõ as Religiosas, como equivalente desempenho
das demonstraçoens singulares, que o Mosteyro deve a este grande
Prelado,
estendendo-as o seu animo a toda a Família Dominicana, naõ menos
agradecida que penhorada. Não deyxou a Santa sem premio a veneraçaõ,
desempenhando-o em alguns casos, que só a inconsideraçaõ negaria de
prodigios. O que nos chegou com mais clareza à noticia, foy o que
succedeo ao Conego da Se da mesma Cidade
/
244 /
Manoel Bello, que chegando de huma enfermidade às
portas da morte, pedindo-o, & trazendo-selhe o Retrato,
& fazendo-selhe huma viva supplica, & por seu respeyto hũa esmola às
suas Religiosas da Casa de Aveyro, sarou repentina, & milagrosamente.
Assim he venerado este Retrato em Coimbra, como a terra daquella
sepultura em Aveyro. Aquella terra como argumento para Joanna luzida,
este Retrato como sombra de Joanna Estrella»...
Mais adiante, já na pág. 152, anota ainda:
...Era inda Noviça no mesmo Mosteyro a Madre Soror Anna da Apresentaçaõ: padecia crueis accidentes, que a privavaõ dos sentidos.
Como era achaque, naõ havia que recorrer a Medicos. Derão lhe hum Retrato
da Santa, & venerando-a naquella sombra, com protestos de verdadeyra, & eterna devota, desde aquella hora
se despedio de sorte aquella molestia, que a naõ sentio
mais em sua vida.
A título de mera curiosidade e como exemplo da torturada expressão literária de Fr. LUCAS, reflexo natural da sua
época, aqui se arquiva a descrição do tipo físico da Infanta, tal como
por ele nos foi legada, e que o leitor poderá,
querendo, comparar com as sóbrias e objectivas palavras de
Soror MARGARIDA PINHEIRO, desprovidas de pretensões estilísticas:
«Era a Princeza de idade de trinta & oyto annos, & tres mezes, de
estatura alta, & senhoril; rosto proporcionado; olhos verdes, &
rasgados; nariz igual às mais
feyçoens; boca grossa, & vermelha; a cor alva, & rosada;
o cabello louro, & em grào taõ subido, que passando a verdades os
idiomas do encarecimento, antes pareciaõ
raros, que cabellos; propriedade que inda naõ perderão,
defunto o Sol de que foraõ raros, como se quizeraõ mostrar que fora nelles a morte antes nuvem, que eclipse.
Verdade he de que póde testemunhar a vista, & de que a ventura me fez
tambem testemunha. Presença magestosa; ar, & graça nativa, nas acçoens,
como nas palavras; de sorte que a via o respeito, & a escutava o
agrado.»
(págs. 100 e 101).
JOSEPH PEREYRA BAYAM no seu
Portugal glorioso, e illustrado com a vida, e virtudes das bemaventuradas Rainhas santas Sancha,
Theresa, Mafalda, Isabel, e Joanna. Breve noticia dos seus milagres, de
seus cultos, e Trasladações...
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245 /
«Lisboa occidental, Na Officina de Pedro Ferreyra. M.DCCXXVII.»,
regista, por sua vez, divergindo de Fr. LUCAS em pormenores da maior
importância acerca do retrato:
«Alli «(no túmulo de ébano para onde se trasladou em 1577 o corpo da
Infanta)» esteve depositado por muytos annos o thesouro do mayor valor
daquellas prodigiosas Reliquias sem mais culto, que o de huma Missa
cantada de todos os Santos com Sermaõ, em que conformando-se com as disposiçoens Pontificias, se lhe referiaõ suas virtudes, e milagres com
protesto de naõ terem mais approvaçaõ da Igreja, que a que lhe dava o
tacito consentimento, e a pia veneraçaõ dos Fieis, a qual Festa se
celebrava em 12. de Mayo, dia de seu precioso tranzito; porèm com
paramentos ricos, expondo no Altar môr hum quadro, em que ella està
retratada ao natural trajada da maneyra que andava no seculo, e
assistindo o Senado da Villa, mostrando-se tambem no mesmo dia o
referido sepulchro a todos os Fieis, que alli concorriaõ, exornado de
luzes, e pelo discurso do anno aos forasteyros com alguma difficuldade,
o que jà hoje se faz com muyto mayor hostentaçaõ.
Este Quadro, ou Retrato verdadeyro tem sido
instrumento de raras maravilhas. Com a sua vista
desappareceo huma grave erysipela, que atormentava gravemente ao Padre
Frey Jacintho das Neves, Prior do Convento de Saõ Domingos de Aveyro,
encomendando-se a ella. Presentàraõ-no as Freyras ao Bispo de Coimbra Dom
Joaõ de Mello, quando alli foy no anno de 1689, formar os Processos
para a sua Canonizaçaõ, como adiante se dirà, o qual namorado delle lho
pedio, e trouxe para o seu Paço, onde tem continuado os mesmos favores.
Pedio-o o Conego Manoel Bello, estando gravemente enfermo, e tanto que
lho trouxeraõ, pondo os olhos nelle, e fazendo huma fervorosa supplica à
Santa, recebeo a Saude desejada, e por este respeyto fez huma boa esmola
às Freyras do dito Mosteyro de JESU.
Havia já com tudo pela Provincia outras muytas Imagens suas, assim de
pintura, como de vulto no Habito de Saõ Domingos, com coroa de espinhos
na cabeça, porque era a sua Real empreza, e Crucifixo na maõ,
resplandores, e diademas, como se estivera jà Beatificada pela Sé Apostolica: porque a fama de sua Santidade foy sempre tão grande, que
depois de sua morte continuamente for invocada pelo pio, e devoto povo,
com o titulo de Princeza Santa, com tacito consentimento dos
Prelados.»
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246 /
Para encerrarmos esta segunda parte da bibliografia do retrato da
Infanta, constituída pelas referências colhidas em obras de data anterior a
1890, já que daí até à actualidade a passámos
primeiramente em revista, em consequência de termos escolhido aquela
data para ponto de partida do nosso estudo, convém mencionar ainda os já
citados Retratos, e elogios dos Varões, e Donas que illustraram a
Nação Portuguesa... datados, na capa, de 1817, mas iniciados cerca de
dez anos antes.
Biografando a Infanta, remata o artigo respectivo por estas palavras, já
nossas conhecidas também, pois JOAQUIM DE VASCONCELOS as transcreveu em
nota à sua descrição do
retrato na Arte Religiosa em Portugal, como acima vimos:
«No Altar mór da Igreja daquelle Convento estava collocado um quadro de
pincel vera effigie sua, trajada á maneira que andava no seculo, que o
Bispo D. João de Mello por occasião do processo da sua Beatificação,
tresladou com licença das Religiosas ao seu Paço de Coimbra. Muitos
consta que havia na Provincia, em que estava no habito Dominico.
Offerecemo-la conforme ao primeiro quadro, segundo a traz o P.
Vasconcellos na Anacefaleosis, e bem similhante ao que vem no Acta Sanct.
Maio Tom. III. pag. 692.)(2)
Nessa mesma colecção de Retratos e Elogios dos Varões
e Donas se encontra igualmente a biografia do Bispo de Coimbra D. João
de Melo; e lá vem, em duas breves linhas embora, a notícia de que «Fez
conduzir do convento de Jesus de Aveiro o retrato original de Santa Joanna Princeza, para o seu paço.»
Em reforço desta bibliografia útil, toda por nós lida e seleccionada com
não pequeno trabalho, pois necessário se tornou recorrer a várias
bibliotecas públicas e particulares e nem tudo quanto buscávamos apareceu
– alguma coisa de novo se pode ainda aduzir.
Foi a Infanta
beatificada por Decreto da Sagrada Congregação dos Ritos
de
20 de Dezembro de 1692, confirmado
per vivæ vocis oraculum pelo Papa
Inocêncio XII a 30 desse mês
/
247 /
e, depois, pela Bula de 4 de Abril de 1693; levou, contudo, seu tempo
até se atingir esse resultado; dois processos se organizaram: o primeiro
no ano de 1626 e o outro em 1686, com Autoridade Ordinária
respectivamente dos Bispos de Coimbra D. João Manuel, que governou a
diocese até 1633, e D. João de Melo, que não ultrapassou o ano de 1704(3).
A meticulosidade dos referidos processos foi grande; depuseram peritos
acerca dos restos mortais da Infanta, acerca dos prodígios observados
por intercessão dela, acerca da Crónica de MARGARIDA PINHEIRO, e – acerca do retrato pintado, original, inquirindo-se não só da sua
antiguidade, como da autenticidade e do culto que no Convento se lhe
prestava.
No Arquivo Secreto do Vaticano, segundo observação pessoal a que
recentemente procedeu o Rev. Raul de Almeida Rolo O. P.
(4),
encontram-se seis processos organizados para a causa da beatificação da
Infanta, assim sumariados:
1 – Processo ordinário, corrido em Coimbra, e iniciado a 13 de Janeiro
de 1686, no qual aparece compulsado outro, organizado em 1626.
2 – Processo ordinário, corrido em Coimbra, iniciado a 11 de Março de
1687, sobre o culto, veneração, prodígios e maravilhas da Infanta.
3 – Processo apostólico, corrido em Lisboa, iniciado a 4 de Abril de
1689 em virtude de letras da Sagrada Congregação dos Ritos, em que se
dava faculdade de reconhecer as imagens da Infanta expostas à veneração
pública desde tempos antigos.
4 – Processo apostólico, corrido em
Évora, iniciado a 2 de Maio de 1689
em virtude de letras da Sagrada Congregação dos Ritos, em que se dava
faculdade para visitar, reconhecer e descrever a imagem da Infanta.
5 – Processo apostólico, corrido em Coimbra, iniciado a 2 de Janeiro de
1689 em virtude de letras da Sagrada Congregação dos Ritos, tendo por
objecto o culto da Infanta.
/
248 /
6 – Processo apostólico «super virtutibus et miraculis
in specie», corrido em Coimbra de 1749 a 1752.
Os processos encontram-se traduzidos para italiano, mas conservam-se
igualmente os textos portugueses; do processo de 1749 a 1752 existe,
mesmo, o original.
Sob a cota n.º 490 (que abrange os textos portugueses e
a tradução para
italiano dos processos corridos em 1689 em Évora, Lisboa e Coimbra)
fornece o Arquivo importantes elementos para a história das pinturas
alusivas à Infanta e existentes, naquela data em Évora e em Lisboa.
Pelo que respeita a Évora, verifica-se terem sido peritos na
autenticação e exame das pinturas Francisco Nunes Varela e Diogo
Rodrigues Pinto, e o acto teve lugar em 9 de Maio de 1689; as pinturas
analisadas foram:
«imagem que está pintada em a parede de huma meia laranja que está sobre
a escada que vai para o dormitório do
Convento de S. Domingos» e
«quadros que estão na sacristia do ditto Mosteiro e tem pintada a ditta
serva de Deos.»
Fez-se igualmente o reconhecimento duma pintura do coro do referido
Convento, bem como a autenticação dum quadro pertencente ao Convento de
S. Domingos, de Montemor o Novo, que para esse efeito se apresentou aos
peritos, em Évora, naquela mesma data.
Procederam, ainda, ao reconhecimento doutro quadro pertencente ao
Convento de Santa Catarina de Sena, de Évora também.
Em Lisboa, foram peritos em idêntica autenticação, Bento
Coelho da Silveira e António Freitas Franco.
Pinturas ali examinadas em 28 de Novembro de 1689:
Quadro do coro do
Noviciado do Convento do Salvador.
Quadro de um arco do dormitório do
Convento da Anunciada, contraposto a outro de Santa Catarina de Sena, tendo, no meio,
uma pintura que representava Nossa Senhora do Rosário.
Oportunamente desenvolveremos estes
elementos, sumariamente apontados,
se obtivermos, como desejamos, uma cópia integral da parte dos processos
que diz respeito à iconografia da Infanta
(5).
/
249 /
Em Coimbra, onde os originais dos processos aqui organizados parece que deviam ter ficado (vimos
já, em todo o
caso, que o de 1749 a 1752 se encontra no Arquivo Secreto
do Vaticano), alguma coisa se pode recolher também, embora muito se
haja extraviado pelas conhecidas vicissitudes dos
tempos.
Quando em 1933, por delegação expressa do Director do
Arquivo e Museu de Arte da Universidade de Coimbra, o Prof. Doutor Ferrand de Almeida
– procedi à incorporação de doze camionetas de documentos que se encontravam,
nas mais precárias circunstâncias de conservação e de instalação, na Câmara Eclesiástica, da Diocese, vieram milhares e
milhares de papéis que só muito mais tarde, por falta absoluta
de pessoal (visto que de 1932 a 1948 fomos o único funcionário técnico da Casa), puderam ser vistos e agrupados; justamente nos últimos tempos que antecederam a transferência
do Arquivo para as novas instalações da Cidade-Universitária, apareceram, entre os papéis avulsos recolhidos em 1933,
uns cadernos desirmanados que depois de lidos verifiquei
pertencerem a dois processos, truncados, de canonização:
um, das Infantas Sancha e Teresa, do Mosteiro de Lorvão; o outro, da
Infanta Joana, do Convento de Jesus, de Aveiro.
Sempre à espera de que o acaso fizesse aparecer o restante, necessário à reconstituição integral dos processos, não
copiei por completo os cadernos que então li, e dos quais fui
tomando alguns apontamentos; entretanto o Arquivo transferiu-se para as
novas instalações e presentemente desconheço
o paradeiro daqueles papéis, preciosos para agora.
Anotei então, no entanto, que os peritos chamados a pronunciar-se acerca dum retrato o acharam autêntico e declararam que tinha
mais de duzentos anos de pintado.
Pormenorizando, tanto quanto neste momento nos é
possível, desses cadernos incompletos consta, referido a 1689,
que em 22 de Julho se realizou nas casas de residência do
Prelado D. João de Melo, em Aveiro, a 27.ª sessão para
«nomear oficiais, como escrivães, pintores, carpinteiros e
pedreiros peritos para haver de assistir à visita do Sepulcro
da Venerável Serva de Deus a Princesa Dona Joana», tendo
sido escolhidos os seguintes:
– Manuel João Madahil e Roque de Matos, escrivães
do Judicial de Aveiro
(6).
/ 250 /
– António da Mota, Francisco Alberto e Francisco da
Mota, pintores.
– Manuel André Camarada e António Rodrigues Pardal,
carpinteiros.
– João Dias, João Rodrigues e Manuel Caldeira, pedreiros.
Todos de Aveiro.
Iniciadas as vistorias a 28 de Julho, aberto o túmulo
antigo, de pau preto com aplicações de bronze e supedâneo
de pedra de Outil, lavrada, que os peritos declararam dever
ser obra com mais de 180 anos, medido tudo, examinados os ossos,
passaram ao coro de cima; uma vez aí, foram presentes
várias relíquias da Infanta consistindo em peças de vestuário
e «huma trança ou madeixa de cabelos metidos em hum listam encarnado», dos quais se assentou «serem tam louros
como o fio douro» e não apresentarem sinais de corrução
(deles foram retirados alguns fios com destino ao Rei e
à Rainha).
Passando-se ao exame das pinturas, ainda no coro de
cima, registou-se em primeiro lugar que existia um retrato
da venerável serva de Deus, pintada em trajes de secular, como se diz
nos autos, «na forma em que veio para aquelle
Convento, a qual pintura e imagem he a que se expoem
publicamente em hum altar juncto a seu sepulchro em o dia
que as Relligiosas celebram solemnemente seu obito que he
a
doze de mayo».
A seguir, continuam os autos, uma imagem que está
pintada em um quadro grande, de corpo inteiro, no mesmo
coro, da parte esquerda, entre outros da Ordem, no qual
/
251 /
se vê a Santa Princesa com uma palma na mão e também
uma coroa de espinhos; tem resplendor, e três coroas aos pés; uma
legenda diz: Sancta Princeza; era obra de Manuel da Costa, pintor da
cidade do Porto, e teria 12 ou 14 anos.
Ainda no coro de cima, outra pintura colocada num altar colateral, do
lado esquerdo, consagrado a S. Domingos, apresentava a Infanta com
hábito de dominicana sustendo nas mãos uma coroa de espinhos. Media
palmo e meio de altura e atribuiu-se-lhe a antiguidade de 180 anos.
Sobre a cadeira dos Prelados, no coro de cima, volta a referir-se que
estava a pintura em meio corpo, em trajo secular, conforme veio para
aquele convento; e sendo mostrada aos pintores António da Mata e
Francisco Alberto, que muito minuciosamente a examinaram, «declararam
ser a ditta pintura o proprio original da Veneravel Serva de Deos, e nam
copia delle»; atendendo à forma da pintura e ao trajo, como oficiais
antigos que eram, declaravam que a dita pintura seria feita «ha mais
passante de duzentos e vinte annos pouco mais ou menos», registando-se
novamente que as Religiosas a expunham num altar no coro de baixo.
Na capela da enfermaria, que era toda apainelada, por cima, adornada com
muitas pinturas de Santos da Ordem, via-se, sobranceira ao retábulo do
altar, a Infanta com hábito de Dominicana, três coroas aos pés, uma
açucena em uma das mãos e um livro na outra; tinha também resplendor e
era obra de António André, pintor da cidade do Porto. Atribuíram-lhe 70
anos de antiguidade.
Passaram em seguida à igreja do Convento e anotaram uma pintura do tecto,
do lado esquerdo, entre outros Santos da Ordem; a Infanta envergava o
hábito dominicano, tinha três coroas aos pés, e, ao lado, as armas de
Portugal.
Mais depoimentos existiram, evidentemente, e mais até podíamos ter
extratado dos cadernos por nós coleccionados; não o fizemos, porém, e
agora só a cópia pedida para Roma
poderá acrescentar o que deixamos acima.
Mas nem tudo se perdeu, e o que em apontamento me
ficou pode cá receber confirmação e sem dificuldade. Existe no Arquivo
Histórico do Ministério das Finanças um tombo de propriedades do antigo
Convento de Santa Joana, de Lisboa, que minuciosamente compulsei por
mais de uma vez; nele se encontram quatro pequenos impressos sem data
respeitantes à Infanta Santa Joana, e muito úteis para a fixação da
iconografia, pois sumariam, de certo modo, o processo organizado em
1626, do qual seriam cópia truncada os cadernos recolhidos da Câmara
Eclesiástica de Coimbra ao Arquivo da Universidade em 1933.
/
252 /
Intitulam-se os raríssimos impressos:
SACRA RlTVVM // CONGREGATIONE
// Eminentissimo & Reuerendissimo Domino // CARD. DE ABDVA // COIMBRIEN.
//
Canonizationis // B. lOANNÆ, FILIÆ // ALPHONSI V. // Regis Lusitaniæ, &
Religiosæ Ord. S. Do- // minici, Sanctæ Principis nuncupatæ. // MEMORIALE
// CVM RESVMATVR // Pro confirmatione Sententiæ Iudicis Delegati, // super Cultu immemorabili, & casu
//
excepto prolatæ.
s. d. (posterior a 1689, data do processo da canonização mais recente,
aí citado); 6 págs., continuadas adiante, de 7 a 11, pelo impresso
seguinte:
COIMBRIEN. // Beatificationis, & Canonizationis
// SERVÆ DEI // lOANNÆ // Filiæ Alphonsi V. Regis Lusitaniæ, & // Religiosæ Ordinis S.
Dominici. // ANIMADVERSlONES // Reuerendissimi Domini Fidei // Promotoris.
//
s. d. (referências ao ano de 1689).
COIMBRIEN // CANONIZATIONIS
// B. lOANNÆ // Filiæ AIphonsi V. Regis Lusitaniæ, & // Religiosæ Ordinis S. Dominici, San-
// ctæ Principis nuncupatæ. // SVMMARIVM. // Ex Processu Coimbriensi
fabricato anno 1626 // super Fama
Sanctitatis Beatæ.
s. d. (apresenta referências ao ano 1689).
COIMBRIEN. // Canonizationis
// B. lOANNÆ, FILIÆ // ALPHONSI V // Regis Lusitaniæ, & Religiosæ Ord. S. Do-
// minici,
Sanctæ Principis nuncupatæ. // RESPONSlO // AD ANIMADVERSIONES // Reuerendissimi D. Promotoris Fidei.
s. d. (referências ao ano de 1689)
Do primeiro destes impressos, estabelecendo a antiguidade do culto prestado à
Infanta, consta:
... Sed euidentius demonstratur hæc antiquissima Sanctæ denominatio
ex vetusto pergameno anni 1496. Summario Positionis Num. 19. pag. 31.
ante medium, quo dicitur: Sentenza dell'Hauere dell'lnfanta Santa. Et
ex Codice Vitæ, exarato paulò post obitum Beatæ, vbi centies Sancta appellatur
dicto Num. 19. pag. 130.
& 131. & latius in Responsione pág. 18 §. Rursus. Ex
quibus binis antiquissimis documentis augetur fides Testium dictorum
trium Processuum, asseuerantium hanc vetustissimam, & immemorabilem
nuncupationem Beatæ, & Sanctæ.
/ 253 /
Ex Processu verò dicti anni 1689. clariores species publici Cultus
habentur ex Imaginibus Beatæ, quas tantum hic adducemus, quæ certius
demonstrant antiquitatem centenariam Cultus, completam ante dictum
annum 1634.
Refere depois a existência de dez imagens de Santa
Joana: a 1.ª, que todos os anos era exposta junto do sepulcro da Princesa
– em Aveiro, portanto – no dia da festa, era considerada centenária já
pelas testemunhas do processo de 1626. Não a descreve, e passa à imagem
n.º 3.
Estava a 3.ª imagem sobre o altar de S. Domingos, em Aveiro, ao que é de
presumir, entre as imagens das 11.000 virgens e dos 40 mártires. Também
a não descreve, passando a referir a n.º 7. Essa era «sita in fornice
Collegij Sanctæ Thomæ» e tinha a inscrição SANCTA IOANNA, afirmando
os peritos ter sido pintada por ocasião da fundação daquele Colégio, no
tempo de D. João III, que principiou a reinar em 1521; trata-se,
evidentemente, do Colégio de S. Tomás em Coimbra. Passa à n.º 10,
colocada no altar da igreja do convento de S. Domingos da cidade de
Lisboa, com o título de SANCTA IOANNA; no meio estava a imagem de S.
Domingos, do lado do Evangelho a de St.ª Catarina de Sena, e do lado da
Epístola a da Princesa; os peritos consideravam-na, em 1689, pintada «à
biscentum annis»...
Diz ainda, a seguir:
Cultus itaque centenarius completus ante dictum annum 1634. resultat ex
annua, et solemni Festiuitate cum Cereis, et Candelis accensis ad
Sepulchrum ex vniuersa, et antonomastica denominatione Beatæ et
Sanctæ, cum veneratione Sepulchri, et Reliquiarum, ac ex quatuor
Imaginibus præmemoratis, et aliquæ ex his speciebus Cultus habent
Centenariam completam ante annum 1625. vti ostendimus.........
Remata, na continuação que apresentamos em segundo
lugar, respondendo as «animadversiones» do Promotor da Fé,
«abunde liquet, ex dicta publica denominatione, & quatuor Imaginibus
vetustioribus probari centenarium Cultum completum, nedum ante annum
1634. sed etiam ante
annum 1625.» assinado: Paulus Petrus Lampatinus E Colleg. Patr. Caus. S. PaI. Apost. Revisto por Andreas Pierius Subpromotor Fidei.
/
254 /
O impresso que enumerámos em terceiro lugar sumaria depoimentos de
testemunhas, freiras e outras, dizendo que a Princesa era tida por Santa
e fazia milagres, venerando o povo as suas relíquas
(7).
*
Esgotada, deste modo, a bibliografia útil, antiga e moderna, do retrato
do Museu de Aveiro que foi possível compulsar – e pela primeira vez um
trabalho desta natureza, sempre fundamental, foi tentado – é tempo de
equacionarmos com os elementos recolhidos os problemas adstritos ao
quadro.
Desde a fundação do Museu – há quarenta anos
– que a preciosa pintura
nos é familiar, e de então para cá repetidas vezes perante ela nos temos
detido, procurando penetrar os segredos que a sua vida multissecular
ciosamente
esconde; são de 5 de Novembro do corrente ano as últimas horas que junto
dela passámos, completando apontamentos
e esclarecendo dúvidas, pois grandes divergências a seu respeito se
apresentam entre os historiadores, como certamente o leitor terá notado
ao acompanhar os extratos que acima
fomos deixando.
Na verdade, e principiando...
pelo princípio, nós encontramos, por
exemplo, que, para JOAQUIM DE VASCONCELOS, o retrato é pintado em tábua
de castanho; para JOSÉ DE FIGUEIREDO, o suporte da pintura é
nogueira; e finalmente, na opinião do Prof. REINALDO DOS SANTOS, não é uma coisa nem outra, pois identifica por sua
vez a tábua como sendo carvalho.
Uma espessa camada de tinta arroxeada, aplicada por ocasião do último
restauro a todo o reverso do retrato, dificulta hoje, lamentavelmente, a
identificação definitiva do suporte; alguém, todavia, raspou um pouco em
dois pequenos pontos o referido revestimento, deixando a descoberto uns
centímetros de madeira, que parece, efectivamente, carvalho; mas só o levantamento completo da extemporânea
camada de tinta roxa permitirá uma opinião definitiva, tanto
/
255 /
mais que é assunto controvertido e três eminentes críticos de arte
divergem nas conclusões.
Procurando no arquivo do Museu Nacional de Arte Antiga o processo
relativo aos restauros ali efectuados, com
o fim de conhecermos a versão oficial de tão desconcertante caso, muito
obsequiosa e prontamente ele foi posto à nossa disposição, nada, no
entanto, esclarecendo, pois a ficha dactilografada, portadora de um
questionário minuciosamente elaborado, encontra-se completamente por
preencher e diz apenas ter o quadro saído da oficina de restauro em 1936
(sem indicação de dia nem de mês) e voltado (para segundo tratamento) em
7 de Maio de 1941.
O processo, que tem o n.º 413, regista na capa, unicamente, a atribuição
do quadro à «escola portuguesa», e não diz como é constituído o suporte
nem que tratamento lhe
foi ministrado ou quem o restaurou; dentro, encontrámos
apenas recortes dos n.os de 5 e de 19 de Abril de 1936 do semanário
"Povo
de Aveiro".
Como a data de 1936 se nos afigurasse estranha para a saída do quadro da
oficina, porquanto são justamente de 29 e de 30 de Janeiro desse mesmo
ano, como vimos, as referências publicamente feitas ao restauro pelo
distinto crítico de Arte Senhor Reis Santos, procurámos esclarecer no
Museu de Aveiro as datas exactas das saídas do quadro para Lisboa, mas
também isso nos não foi possível alcançar.
Passando agora à pintura propriamente dita:
Coeva e intacta a considerava JOAQUIM DE VASCONCELOS
em 1895; mas já em 1914, continuando embora a considerar o retrato
autêntico e obra da escola portuguesa de pintura da 2.ª metade do
século XV, acha que o primitivo encanto dos cabelos loiros foi destruído
pelo restaurador, que as faces estão inchadas, com indiscretos retoques
na carnação, e que é visível a técnica esfumada do retocador.
MARQUES GOMES regista a tradição de ter o retrato sido
pintado do original, mas declara não haver documentos disso.
Para MELO FREITAS o retrato é quase coevo. Para JOSÉ
DE FIGUEIREDO a pintura é coeva mas não original; em vez de ser tirado
do natural, o retrato é cópia feita no estrangeiro dum outro pintado cá
por Nuno Gonçalves e enviado para qualquer corte lá de fora.
Predominam na sua técnica as velaturas sobre cola e cré, diz ainda
FIGUEIREDO, ao passo que para JOAQUIM DE VASCONCELOS não há velaturas,
mas unicamente tinta delgada e com pouca transparência. aplicada sobre o
intonaco.
Para o Prof. EGAS MONIZ o retrato revela a mesma maneira de pintar de
Nuno Gonçalves; JOSÉ DE FIGUEIREDO,
porém, considera que ele não é daquele artista e nem sequer
português é; aliás, JOAQUIM DE VASCONCELOS rejeitava também
/ 256 /
o nome de Nuno Gonçalves para solução do problema da autoria.
Para REIS SANTOS o inchaço da face é
acréscimo tardio, e no restauro de
1935/36 «foram deixadas na pintura coisas que lhe não pertencem e lhe
modificam muito a expressão».
Para o Senhor Dr. ALBERTO SOUTO o retrato do Museu será «mera cópia» do
original que o Bispo D. João de Melo levou para Coimbra e que se torna
necessário procurar, pois tal «achado teria, sem dúvida, uma altíssima
importância.»
O Marquês de JÁCOME CORREIA declara que a pintura não é contemporânea da
Infanta, não é a óleo mas a gouache ou a cré e cola, e parece-lhe mesmo
feita no século XVII sobre outra pintura (o que, aliás, a radiografia
não confirma).
Para SOUSA COSTA, finalmente, o retrato representa uma princesa da época
da Infanta D. Maria, e foi pintado por Sanchez Coelho (que viveu, como é
sabido, de 1515 a 1590...).
Problemas, portanto, de autenticidade, de técnIca, de autoria, de data
e de restauro.
Que ele represente a Infanta D. Joana e não uma princesa da época da
Infanta D. Maria, não nos parece que possa ainda constituir motivo de
controvérsia depois de se ponderarem os relatos bibliográficos e as
gravuras que acima compilámos: pouco tempo decorrido após o falecimento
da Infanta se deu início, como vimos, ao seu culto no Mosteiro de Jesus,
colocando-se junto ao sepulcro, no dia da festa, o retrato em que ela
era representada trajando à moda da corte; e em 1621 publicava-se esse
mesmo retrato, finamente gravado a buril, e condizendo em tudo com a
tábua do Museu de Aveiro; rotulou-se a gravura, solenemente integrada,
demais a mais, na série dos Reis de Portugal, de IOANNA PORTVGALLIÆ
PRINCEPS e sem hesitação de espécie alguma.
Está pois, identificado gráfica e literariamente o retrato de Aveiro há
mais de três séculos, e poucos retratos antigos disfrutarão, até, de tão
sólida documentação como ele.
O facto de em 1689 o retrato ter sido levado para Coimbra pelo Bispo-Conde
D. João de Melo, que tão grandes preocupações modernamente trouxe à
crítica local, chegando a considerar-se que dois retratos idênticos
terão coexistido,
não sendo o actual, de Aveiro, senão uma cópia do que o Prelado terá
levado para Coimbra, não se nos afigura motivo de inquietações a
respeito da autenticidade da tábua nossa conhecida, nem há necessidade
de complicar hipóteses: o retrato terá muito simplesmente voltado a
Aveiro após a morte do Prelado, que tanto empenho fazia nele, ou, então,
em 1711, quando a 21 de Outubro, segundo o acrescento da Crónica, os restos mortais da Infanta foram solenemente trasladados para
o novo mausoléu, de belos mármores embutidos,
/
257 /
[Vol. XVIII -
N.º 72 - 1952]
sob a significativa presidência do novo Bispo-Conde,
D. António de Vasconcelos e Sousa, assistido do seu próprio Cabido.
Não esquecemos que Fr. LUCAS DE SANTA CATARINA, possivelmente o
historiador que pela 1.ª vez terá referido a saída do retrato para
Coimbra (op. cit., T. lI, pág. 150), diz que ele «se copiou da Santa ao
expirar», e nesse caso já se não tratava do retrato em trajo de corte
nem havia necessidade de procurar explicação para o regresso do quadro a
Aveiro. A esse cómodo argumento preferimos contudo qualquer das
hipóteses que apresentamos; Fr. LUCAS era mais literato do
que historiador; compunha a frase e não investigava; não deve ter tido
conhecimento directo do retrato, que outros escritores, como JOSEPH
PEREIRA BAYAM, poucos anos depois
dizem ser o de trajo secular, bem como os depoimentos
dos processos da beatificação.
Outra data se pode ainda propor para o regresso do retrato ao Mosteiro
de Jesus, e com idêntica verosimilhança:
a de 1749-1752, quando o processo da canonização se organizou, em Aveiro, com repetidas sessões no Mosteiro de Jesus, e exame de relíquias
e pinturas. O original desse
processo apostólico, encontra-se, como acima notámos, no
Arquivo Secreto do Vaticano.
Numa ocasião ou noutra, o retrato voltou para Aveiro, e a sua
autenticidade, atestada pela gravura de 1621 e pelas referências
impressas e manuscritas, é, quanto a nós, manifesta.
Após 1834, com a extinção das Ordens religiosas, o culto afrouxou; o
quadro, que no regresso de Coimbra voltou, possivelmente, a ocupar o
seu antigo lugar no coro alto, onde as monjas se reuniam e podiam gozar
da presença figurada da sua padroeira, foi esquecendo, até pela razão
simples de se haver extinguido o serviço do coro. E em 1882, MARQUES
GOMES, embora muito chegado sempre ao Convento, já o não reconheceu nem
ninguém lho apontou.
Só JOAQUIM DE VASCONCELOS, que conhecia a gravura dos Bolandistas, única
por ele citada, o pôde identificar.
Os problemas da técnica pictural e da autoria, intimamente ligados entre
si, encontram-se condicionados pela
repintura que em data impossível de precisar (mas talvez contemporânea
do seu regresso ao Mosteiro) foi infligida ao retrato.
Todo ele foi repintado, e sem se proceder ao levantamento dessa camada
de tinta que o desfigura, nem a técnica original se pode determinar
convenientemente nem importa formular hipóteses de autoria.
Não só a radiografia que apresentamos permite localizar um acrescento
substancial na face esquerda, como o simples
/ 258 /
exame directo, com o auxílio duma boa lupa, mostra a quem quer que
observe demoradamente a pintura transformações fundamentais em toda ela.
A modelação do rosto quase desapareceu, sensivelmente planificado agora,
outro tanto acontecendo ao busto e ao corpete branco bordado a preto.
Os famosos olhos verdes mũi fremosos, que verdadeiramẽte pareciiã
smeraldas muyto fynas, no dizer de Soror MARGARIDA PINHEIRO, e que numa
tela que em Novembro
deste ano encontrámos nas arrecadações do Museu apresentam essa precisa
tonalidade, bem como numa miniatura em cobre, pertença do Senhor Dr.
Serafim Gabriel Soares da Graça, são na tábua quatrocentista francamente
castanhos, por efeito de repintura, que se estendeu às pálpebras e aos
cílios.
A boca foi igualmente repintada, e a linha das comissuras deixa a
impressão de primitivamente não descer tanto; o lábio superior, do lado
esquerdo, foi nitidamente mexido; face e boca ficaram assimétricas.
O pescoço, em cuja configuração presentemente se pretendem encontrar
exteriorizações de bócio, tem a sua modelação transformada; e os
cabelos, a que Soror MARGARIDA tanto exaltava a formosura, aparecem
agora ruivos, vergonhosamente repintados, com toques de sombra que vão
inexplicavelmente até ao preto retinto.
O que se passa com o corpete branco, bordado a preto, em graciosos
arabescos, excede quanto possa imaginar-se e reclama, por sua vez,
intervenção imediata do nosso magnífico Instituto Nacional de Restauro;
sobre essa peça de vestuário, agora igualmente planificada, foi
estendida uma camada de alvaiade em cima da qual se repintou o bordado
preto; mas é visível ainda, através do branco, o traçado a que a
decoração primitiva obedecia e que nem sempre coincide com a actual
(8). Houve manifestamente o piedoso propósito de
planificar o busto da Infanta, que, apesar da sua tenra idade,
apresentava originariamente volume de seios, como facilmente se deduz
das curvaturas do colete exterior, dum lado e doutro, só explicáveis
pela pressão interior duma razoável massa glandular, que, aliás, na
gravura de 1621 perfeitamente se exibe e compreende.
Da repintura deve ser, ainda, aquela espécie de nó, ou laçada, do cordão
de ouro que a Infanta tem ao pescoço e que lhe vela o sulco
inter-mamário: não só não existe na
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gravura de 1621, como do seu exame directo parece deduzir-se que não faria parte da pintura primitiva.
O laço, formosíssimo, que enfeita o pulso visível da
Infanta, foi realçado a toques de branco, nitidamente posteriores, outro
tanto acontecendo ao aro do anel de rubi, cuja
arquitectura, digamos assim, foi modificada a pinceladas
claras.
A mão ainda é das melhores coisas que o retrato conserva, e sem grande
repintura; em todo o caso, a fita por baixo da qual ela passa, foi
marginada a terra de Sena, e mal.
Torna-se urgente o exame detido de todo o quadro, não só radiografando-o
de novo, com moderna técnica, mas submetendo todos os seus pormenores
fundamentais à prova da macrofotografia, que revelará muito mais de
quanto a simples observação à lupa, por nós empregada, nos apresentou; a
própria chapa de vidro que presentemente protege a pintura e que não foi
retirada, nos impediu, devido aos reflexos que provocava, de levar mais
longe a nossa observação.
Inútil, portanto, discutir técnica e autoria do retrato enquanto ele não
for libertado de todos os acrescentos que o conspurcam e desfiguram.
Registe-se, apenas, que no estado actual dos conhecimentos de pintura
antiga portuguesa não é possível entregar
a um pintor nacional a autoria do retrato, porquanto nenhum, que se
saiba, pintou no século XV sobre intonaco; e como
a Crónica, de Soror MARGARIDA, regista que de várias Cortes da Europa
vieram a Portugal artistas encarregados de retratar a Infanta, o que determinava pedidos de casamento que
D. Afonso V rejeitava alegando a tenra idade da filha, temos, para nós,
que a pintura do Museu de Aveiro é, muito simplesmente, obra de um
desses pintores estrangeiros, impossível, por enquanto, de identificar.
Vários retratos se terão feito, ao que é lícito concluir; de admirar
seria que na Corte não ficasse um deles, pelo menos; e, ou D. Filipa,
tia da Infanta, o levou consigo para Aveiro quando ali se instalou, ou,
após o falecimento da Santa, as freiras de Jesus pediram à Corte, muito
naturalmente, essa lembrança viva da que fora sua companheira dilecta e ao
depois padroeira.
Tinha quinze anos e parecia de vinte e cinco, «tã grãde
ẽ statura e
fremosura era», diz a Crónica.
Não consideramos de mais de 15 anos a retratada, atenta a declaração
supra; isso levará para 1467 a data da pintura, com grande
verosimilhança; 1470 a 1472 propunha JOAQUIM DE VASCONCELOS, ou sejam 18
a 20 anos de idade; mas aos 19 entrou a Infanta para Odivelas, e não
era, positivamente, depois dessa ocorrência, de especial significado na
sua vida,
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que ela se retrataria em trajo de corte, para ser mostrada a possíveis
pretendentes.
Considerei sempre o retrato anterior ao regresso de D. Afonso
V de
Arzila em 1471, data em que publicamente
se concertou o ingresso da Infanta em convento; esta pintura tem de ser
coeva da vida activa da Princesa na Corte, datando de quando a hipótese
dum casamento não se afastara ainda definitivamente do seu espírito, e a
sua firme vontade se não sobrepusera à razão de Estado.
Aguardando o resultado da limpeza da preciosa tábua, que desejamos se
não faça demorar, para então se enquadrar na pintura da época,
estudando-se, definitivamente, os problemas com ela articulados,
afigura-se-nos preferível não ir além de quanto acima fica e aceitar o
prudente laconismo da etiqueta do Museu que desta forma a apresenta ao
visitante:
RETRATO DA PRINCESA ST.ª JOANA
Pintura da segunda metade do séc. XV
*
Propondo-nos, com o presente estudo, esboçar a iconografia da Infanta,
aproveitaremos, como não podia deixar de ser, os elementos carreados
pelos investigadores que nos precederam, e aos quais prestamos a nossa
homenagem respeitosa e compreensiva.
Tendo, porém, oportunidade de acrescentar a quanto está apontado
numeroso material inédito, entendemos dever agrupar tudo em séries com
afinidade formal, para sua melhor apreciação e estudo; e assim,
referir-nos-emos sucessivamente aos exemplares que conhecemos em
a) Pintura
b) Escultura
c) Gravura
a) Pintura
1 – Dito, como acima está, quanto até
ao presente se pode apresentar
acerca da peça capital da iconografia infantista, que é o retrato do
Museu de Aveiro, – figs. 10 e 13 –
debalde se terão procurado, quer no País quer fora dele, outras espécies
coevas; se existem, como é natural, encontrar-se-ão por identificar em
galerias do Estrangeiro à espera
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dum acaso que sobre elas faça pousar o olhar esclarecido de alguém para
quem a iconografia régia de Portugal, ou, sequer, da dinastia de Avis,
não seja de todo estranha.
2 – Um problema que nos parece merecer ainda a atenção da crítica, muito
embora o seu principal propugnador o haja abandonado já, é o da figura
que ajoelha à direita de São Vicente, no painel do Infante, do Museu
Nacional de Arte Antiga – fig. 12 –.
Apresentada em 1927 pelo Senhor Dr. ALBERTO SOUTO, como vimos, bem como pelo Senhor Dr. ARMANDO SOUSA GOMES, ela seria
então o retrato da filha de D. Afonso V, indispensável, na verdade, num
agrupamento em que, por hipótese plausível, se encontram o pai e o
irmão.
Se a figura que ajoelha em frente de São Vicente é D. Afonso
V, como
parece dever ser, a outra ajoelhada, em lugar de igual categoria, não
pode ser senão a Infanta.
Para o ilustre Director do Museu de Aveiro, porém, postas em confronto
as duas figuras – a de Aveiro e a de Lisboa – as diferenças verificadas
nos lábios e no nariz são agora de molde a afastarem-no da sua primitiva
hipótese, apesar das afinidades de «mãos, corpete, rendas, colo, pescoço, olhar e sobrancelhas, ombros decaídos, expressão fisionómica»,
que lhe reconhece ainda.
Também nós, tal como o distinto Director do Museu de Aveiro, algumas
horas passámos perante qualquer dos originais, colocando a par,
respectivamente, uma boa reprodução da pintura a comparar, e a nossa
conclusão não só não afasta a sua primitiva opinião, como singularmente a
reforça.
O nariz, visivelmente aquilino na figura dos painéis, porque se
apresenta a 3/4, é, se bem observarmos, aquilino também no retrato de
Aveiro, e mais notoriamente ainda, por singular curiosidade, na
radiografia; faça-se a experiência de observar bem de frente, como na
tábua aveirense, um nariz aquilino, e a modelação dos seus ossos
próprios apresentar-se-á como no retrato da Infanta; quanto aos lábios,
mais carnudos no quadro do Museu de Aveiro, como acima dizemos, foram
mexidos na repintura do painel, afigurando-se-nos também que a linha das comissuras no retrato era outra e não
descia tanto; tal como a boca, também o olho direito desta figura dos
Painéis foi refeito, e bem defeituoso ficou.
Experimente-se, como nós fizemos, colocar uma coifa que desça até às
sobrancelhas, na figura de Lisboa, em substituição do toucado alto que ela apresenta, e
a semelhança das duas
personagens sairá singularmente reforçada desta prova.
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De resto, à paridade de vestuário e de adornos, já em 1927 e 1936 acentuada
(9), acrescentaremos nós um pormenor que não nos
recorda ter sido ainda evidenciado em função do problema que
presentemente nos ocupa: à figura ajoelhada pende das mãos, um rosário
de ouro e não será certamente exagerada a hipótese de tal acessório,
numa época de tão vincado simbolismo, como era o século XV, ter a
especial intenção de querer aludir às místicas tendências da futura
Santa Joana, desde muito cedo manifestadas. Supomos que isto não foi
ainda dito, e também nos não parece indiferente para as conclusões a
tirar.
Se, como acima referimos, consideramos o retrato do Museu de Aveiro
datando muito aproximadamente de 1467, isto é, dos 15 anos de idade da
Infanta, ocasião em que o Rei seu pai lhe estabeleceu casa própria, a
figura de Lisboa,
pela sua diminuta estatura e pequeno volume de rosto em
relação às restantes do quadro (e para mais está colocada em primeiro
plano), acusará menos idade; se lhe dermos, portanto, menos dois anos,
por exemplo, corresponderá aos 13 anos da Infanta (não esqueçamos que
aos 15 parecia ter 25), isto é, a 1465.
Ora em 1465 tinha o irmão 10 anos, pois nascera em 1455; dez anos,
para o jovem, parecidíssimo com a Infanta, que figura entre o Infante D.
Henrique e D. Afonso V, também são de aceitar.
Não podemos, evidentemente, ir até 1460, último ano em que se verificava
a coexistência do Infante D. Henrique
com D. Afonso V, a Infanta D. Joana e o príncipe D. João; a essa época,
data do falecimento de D. Henrique, contaria D. Afonso V 28 anos de
idade, a Infanta D. Joana apenas 8, e o príncipe 5. Uma conclusão,
portanto, a nossa hipótese impõe: a de que a figuração do Infante D.
Henrique, nos painéis do Museu Nacional de Arte Antiga, é póstuma, e
isso nada tem de extraordinário; outras igualmente assim têm
sido consideradas, como é sabido, até desde o início das tentativas de
identificação; o agrupamento é meramente simbólico, e nem todos os retratados viveriam à data da composição do quadro: o Infante D. Henrique seria um desses.
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A. G. DA ROCHA MADAHIL |