◄◄◄
/
221 /
Voltando, adiante, ao assunto, o historiador REIS SANTOS explicou ainda(1):
«Aqui temos a fotografia do retrato de
Santa Joana
do Museu Regional de Aveiro, e a respectiva radiografia
(diaps. n.os 68 a 70). Este é um caso de que já falei.
Deu-se aqui o contrário do que várias vezes tenho observado,
infelizmente, nos restauros. Talvez por causa dos fracassos verificados,
e decerto por não ter sido radiografada a tábua, foram deixadas na
pintura coisas que lhe não pertencem e lhe modificam muito a expressão.
O inchaço da face, do lado direito, é posterior e de menor densidade,
como se vê na fig. n.º 33.
Neste caso a culpa não foi de quem fez
o restauro, mas, sem dúvida, de quem o ordenou e orientou.»
A discussão subsequente acima referida, na Imprensa
aveirense, pode seguir-se através dos n.os 433, 436 a 442, e 446 de
"O
Povo de Aveiro", de 29 de Março de 1936 a 28 de Junho.
Deu-lhe início a seguinte local, não assinada, do n.º 433:
«Restauromania
O que se tem feito ultimamente no que respeita a restauro de monumentos
e obras de arte excede quanto se possa conceber. Haja em vista o que
sucedeu com o célebre retrato de Santa Joana, do nosso Museu. Este retrato nem parece o mesmo, tão desfigurado ficou com o restauro dum
pintor de Lisboa, conforme mostraram
as projecções radiográficas feitas nas conferências de Reis Santos, no
Porto.
A restauromania vai mutilando a arte monumental portuguesa do que dá
nota o dr. Adolfo Faria de Castro, no seu recente livro «Impressões de
Arte».
No n.º imediato, de 5 de Abril, o Director do Museu,
Senhor Dr. ALBERTO SOUTO, contesta o conteúdo da local, declarando,
substancialmente:
«Os mestres restauradores que trataram a preciosa tábua
quatrocentista – o falecido Luciano Freire e os pintores srs. Mardel e
Ortigão Burnay – por ordem da Inspecção Geral dos Museus e a meu pedido,
não tocaram na figura da filha de D. Afonso V, que está tal qual todos
nós a conhecemos há muitos anos.» E mais
/
222 /
adiante: «O que posso garantir a V. Ex.ª e a todos aqueles que se
interessam pela conservação do nosso património artístico é que o
«retrato de St.ª Joana» não sofreu no último restauro a mais pequena
alteração.»
Respondeu o Dr. FARIA DE CASTRO socorrendo-se das
considerações de REIS SANTOS nas conferências do Porto e acentuando,
fundamentalmente, que no restauro do quadro de Aveiro houve «alteração
das linhas do rosto, diferente expressão da boca, e artificial factura
do cabelo.» (n.º 436, de 19 de Abril).
O Director do Museu, no número seguinte, de 26 desse mês, anuncia a
próxima publicação, no mesmo jornal, de tudo quanto, a respeito do
retrato, é de seu conhecimento; e HOMEM CRISTO, director do "Povo de
Aveiro", que iniciara a discussão, vem por sua vez declarar as impressões
que recolheu do exame a que pessoalmente procedeu, ao retrato, dizendo,
em contradição com o suelto inicial:
«Ha já bastantes annos que não viamos o retrato de Santa Joana. Mas
conservavamos d'elle uma viva memoria. Para nos tirarmos de duvidas
fomos vê-lo de novo esta semana, na ultima terça feira, depois do
decantado
restauro. E o mesmo, precisamente o mesmo que não viamos. ha uma duzia
d'annos. Ha só uma differença: é que está limpo, agora, por assim dizer
lavado, e, portanto, mais agradavel á vista.
A verdade é uma só. E nunca fugimos a ella, nem
jamais fugiremos, sem attenção a amigos ou a inimigos.
Ella ahi fica.
H.C.»
Em 3 de Maio (n.º 438) o Director do Museu iniciou a
prometida história do retrato de Santa Joana, que veio a concluir em 31
desse mesmo mês (n.º 442).
Entretanto, a 24 (n.º 441), REIS SANTOS publica uma carta datada do
Porto, de 13 de Maio, refutando as afirmações do Dr. FARIA DE CASTRO na
parte que pessoalmente lhe dizia respeito, e declarando, por sua vez:
«O retrato, conquanto tenha sofrido alterações, foi muito cuidadosamente
tratado graças ao talento e ao
saber do snr. Fernando Mardel a quem se deve – creio eu – a limpeza da
preciosa tábua.
Devia o restauro ter sido orientado por forma diferente? Acho que sim,
mas isso é outra história; e não me parece que a responsabilidade seja
do restaurador.
/
223 /
Se tivermos de nos queixar. desta vez, será da insuficiencia a que aludi no meu ultimo serão dos Fenianos.»
|
Fig. 14
Gravura reunindo as duas
radiografias feitas ao retrato do Museu de Arte de Aveiro
– redução das provas
existentes no arquivo do Ex.mo Senhor Luís Reis Santos |
Em 31 (n.º 442), o debate transforma-se nitidamente em
questão pessoal com novo comunicado do Dr. FARIA DE CASTRO, vindo a ser
de 28 de Junho (n.º 446) o último articulado do inglório processo (carta
de REIS SANTOS a HOMEM CRISTO exautorando, em termos violentos, o Dr.
FARIA DE CASTRO);
da peça principal, constituída pela série de artigos do Senhor Dr. ALBERTO SOUTO historiando o retrato, limitar-nos-emos a extratar o que
aos pontos a comentar no presente estudo interessa, já que nos não é
possível, como desejaríamos,
reproduzir na íntegra o valioso depoimento; a isto se opõe não só a sua
grande extensão, como, ainda, a circunstância de o referido trabalho
haver sido, depois de ligeiramente retocado, inserto também, em forma
definitiva, no Arquivo do Distrito de Aveiro (voI. III,
págs. 161 a 178),
revista essa em que as nossas presentes considerações são igualmente
publicadas; era, pois, uma duplicação que se não justificava.
Coloca o Senhor Dr. ALBERTO SOUTO em acentuado relevo o facto, a que
adiante haveremos de nos referir também, de D. João de Melo, Bispo de
Coimbra, ter levado do Convento, com assentimento das religiosas, «um
dos retratos da Princesa Infanta, também em traje do século» «quando em
1669, por ordem do papa Inocêncio XI, veio a Aveiro proceder ao exame
das cinzas de D. Joana e fazer o inquérito para o processo da sua
beatificação. Esse retrato estava exposto no altar-mor da igreja de
Jesus», e pergunta, a propósito, o ilustre Director do Museu, se não
«seria esse o retrato original,
e o que hoje possuímos uma mera cópia dele?», dirigindo
«um apelo a todos os investigadores de velharias e de história da Arte,
para que continuem as pesquisas encetadas por MARQUES GOMES em Coimbra,
a ver se aparece ainda esse retrato da Infanta, cujo achado teria, sem
duvida, uma altíssima importância.»
Da iconografia de Santa Joana declara:
«Não considero também como um retrato, na rigorosa e corrente acepção
do termo, a gravura publicada
no Anacephalaeoses, do padre ANTONIO DE VASCONCELOS, a página 392 do
Tômo I, edição de 1773, Coimbra, Typis Academicis.
Será essa a reprodução, alterada embora, da gravura
de Boutats de que nos deu notícia o falecido mestre Dr. JOAQUIM DE
VASCONCELOS, afirmando que fôra feita na Flandres, sôbre o retrato de
Aveiro, na primeira
/
224 /
metade do século XVII, hàbilmente, mas com pouca fidelidade?
Confesso que não compreendo bem esta passagem do erudito crítico de
arte, pois não sei explicar-me como é que Boutats, na Flandres, poderia
gravar o retrato de Aveiro sem o ter presente, a não ser que lhe fôsse
remetida uma cópia ou um desenho.
Ou será essa gravura do Anacephalaeoses (inferior, como gravura, à da
primeira edição, segundo me informa
António da Rocha Madahil) uma reprodução de qualquer outro retrato dos
muitos que existiram?» – fig. 15 –.
Acentua, e bem, «que estamos em presença de um painel do século XV» e recorda a sua hipótese, de 1927, segundo a qual
Dona Joana estaria representada no painel do Infante, do Museu Nacional
de Arte Antiga, a que acima fizemos já devida referência; a essa
hipótese, contudo, opõe agora reservas que enuncia por esta forma:
«Depois de observar
directamente os painéis do Museu das Janelas Verdes, fiquei com maiores
dúvidas. São certas as afinidades: mãos, corpete, rendas, colo, pescoço,
olhar e sobrancelhas, ombros descaídos, expressão fisionómica; mas os
lábios e o nariz parecem-me diferir tanto que me retraí muito na defesa
da hipótese da identidade dos dois retratos.»
O Senhor Dr. ALBERTO SOUTO historia as exposições de
Aveiro e extrata dos artigos de JOAQUIM de VASCONCELOS no "Comércio do
Porto", após a exposição de 1895, parte do que a
respeito do retrato da Infanta lá se encontra, comentando
sabiamente as afirmações de VASCONCELOS naquele jornal e, depois, na
Arte Religiosa em Portugal, que ao leitor oferecemos acima, também, em
transcrição integral. Abordando
o problema da autoria do retrato, com VASCONCELOS e JOSÉ
DE FIGUEIREDO, termina o seu valioso estudo hesitando na aceitação da
tese deste último crítico de Arte, segundo a qual o quadro seria a cópia
efectuada «por um pintor alemão, e na Alemanha, de um retrato original
ido de Portugal e aqui pintado por Nuno Gonçalves.» «Como se
justificaria», escreve o ilustre Director do Museu de Aveiro, «a vinda
do retrato da Alemanha para Portugal quando o lógico seria a sua remessa
de Portugal para o estrangeiro?»
E como no erudito artigo de que nos permitimos extratar uma ou outra
passagem (para melhor compreensão, por
parte do leitor de hoje, de quanto adiante relacionaremos),
generosamente se considera «não estar encerrado o debate
/
225 / [Vol. XVIII -
N.º 71 - 1952]
sobre a origem e autoria do
retrato» (A. D. A. citado, pág.177), muito à
vontade nos sentimos trazendo a público os nossos apontamentos, mesmo
ligeiros como são, de iconografia da
Infanta, através dos quais alguns dos problemas da tábua quatrocentista
do Museu de Aveiro se encontrarão em face de novos elementos de
apreciação.
/
226 /
Na sequência cronológica do assunto, importa registar, após a publicação
que deixamos extratada, nas páginas acima,
de 1937, o aparecimento da nossa edição integral, em 1939, da Crónica da
Fundação do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e Memorial da Infanta Santa
Joana, filha deI Rei D. Afonso V; nela se recolhem elementos
fundamentais para o debate do apaixonante problema iconográfico, em
depoimento coevo de Soror MARGARIDA PINHEIRO, como é sabido.
No ano seguinte, 1940, por ocasião das
Comemorações Nacionais,
aproveitou-se com superior intuição a excepcional oportunidade e
realizou-se em Lisboa uma assombrosa «Exposição de Os Primitivos
Portugueses (1450-1550») no Museu Nacional de Arte Antiga; do que foi
essa maravilhosa apresentação, que permitiu confrontos directos, até aí
considerados praticamente impossíveis, muito facilitando os estudos da
pintura antiga entre nós, ficou público testemunho no Catálogo-guia
então saído, e no opulento volume – Os Primitivos Portugueses – onde a
superior competência do Prof. Doutor REINALDO DOS SANTOS soube pôr em
merecido relevo as obras-primas da pintura primitiva nacional.
O quadro do Museu de Aveiro ocupou na exposição lugar de justo
destaque, como não podia deixar de ser, cabendo-lhe no catálogo a ficha
que a seguir registamos, sob a epígrafe de – MESTRES NÃO IDENTIFICADOS:
15 – Retrato da Princesa Santa Joana (1451
– sic –
1490)
Pintura em madeira (carvalho)
– Dimensões:
A. 0,60 x L. 0,40.
Cópia de um original da 2.ª metade do século
XV – Estilo de Nuno Gonçalves.
Aveiro – Museu Regional.
(cat. ref., pág. 9)
Já dos últimos tempos é a publicação, em 1941, da prestimosa História da Gravura Artística em Portugal, do Professor ERNESTO
SOARES, que veio, verdadeiramente, abrir horizontes novos ao
conhecimento do que entre nós se praticou adentro dos domínios um tanto
misteriosos, até então, dos gravadores e dos litógrafos: nela se
reproduz a célebre gravura de BOUTTATS, em que muitos falaram e, até à
data, só JOAQUIM DE VASCONCELOS mostrara conhecer (vol. I, pág. 148);
complemento imprescindível da citada História é o monumental Dicionário
de lconografia Portuguesa, do mesmo autor e de FERREIRA LIMA, entretanto
falecido, que publica novamente
/
227 / a estampa de BOUTTATS (voI. lI,
pág. 178; 1948) enumerando quinze
gravuras iconográficas da filha de D. Afonso V
(2).
Da existência da gravura de BOUTTATS e da respectiva proveniência
icónica, expressamente declarada na própria chapa pelo artista, com
inteira clareza – fig. 11 –, fácil conhecimento podia qualquer estudioso
ter desde que houvesse, algum dia, percorrido o inestimável catálogo dos
Retratos colligidos por Barbosa Machado, organizado por ZEFERINO MORAIS BRUM e publicado no Rio de Janeiro (onde a colecção se encontra) no ano
já distante de 1893; antes, portanto,
da perturbadora e lacónica referência de JOAQUIM DE VASCONCELOS, de
1895, nunca suficientemente explicada: nem por ele próprio, nem por
nenhum outro comentador do retrato da Infanta, aliás.
A explicação dava-a o catálogo da colecção Barbosa Machado, é certo;
mas o que, todavia, se tornava particularmente difícil para quem não
quisesse mandar vir do Rio de
Janeiro fotografias da misteriosa gravura, era encontrar entre nós
exemplares acessíveis para estudo; prestou portanto o Prof. ERNESTO
SOARES à erudição nacional relevantíssimo serviço divulgando o buril em clara zincogravura nas obras acima referidas;
o mesmo exemplar, pertença do erudito Historiador, foi por nós agora
utilizado para minuciosa observação e para a fidelíssima fotogravura que
acima acompanha estes desvaliosos apontamentos.
Teremos ocasião de historiar com minúcia os problemas
que à volta da gravura de BOUTTATS se nos deparavam, e que,
:felizmente, conseguimos deslindar.
Em 1942 (26 de Junho), o suplemento literário
Bazar, do jornal de
Lisboa, "A Voz", publica um artigo do MARQUÊS DE JÁCOME CORREIA, póstumo,
apresentado por MARIA BARJONA
DE FREITAS, e subordinado ao título de «O retrato da Infanta D. Joana do Museu de Aveiro». Conquanto de certo modo
desconcertante, entendemos por dever não o omitir, uma vez que temos
conhecimento da sua existência. É como segue:
«O museu de Aveiro é um destes núcleos artísticos que valem a pena
serem visitados. Não encerra peças do valor das do museu de Viseu ou de
Lamego, nem possue raridades como as colecções da Misericórdia de
Setubal, mas no conjunto, o número de exemplares
/
228 /
modelos é tão profuso desde os primitivos ensaios de porcelana da
fábrica da Vista Alegre, aos quadros de várias escolas, que se não sai
de lá sem considerar o tempo que levou a visita, como tempo profíquo para
o estudo da arte nacional.
Uma das curiosidades que contém o museu é um retrato da Infanta D.
Joana, que morreu, no mosteiro e aonde jaz no sarcófago em mosaico de
mármores mandado construir no século XVII por D. Pedro lI.
A Infanta foi uma das grandes protectoras da fundação de Jesus e por
essa razão, por ser princesa real, ter rejeitado casamento para se
consagrar á clausura e à vida monacal em prol da religião, chamaram-na
Santa Joana.
O seu retrato com todas as características da escola portuguesa do
século XVI em reprodução fotográfica faz lembrar a factura do pintor da
Renascença que pintou a Madona com o menino que se encontra tambem no
corredor do Museu; e perde por isso de valor histórico, e talvez mesmo o
artístico estando a desconsiderar a colecção por estar filiado numa obra
genuína quando a sua mistificação é flagrante a uma pequena análise
crítica.
Não sendo contemporâneo da Infanta e não tendo
portanto conhecido o pintor autor do quadro a sua retratada, é ela uma
personagem moldada e copiada do retrato da prima, a Infanta D. Catarina
a quem cabe a atribuição da efígie, não sendo de estranhar o encontro,
da táboa em Jesus por isso que ela não foi estranha à fundação do
mosteiro com senhoras da côrte.
O vestido com o decote, a expressão fisionómica, tudo se assemelha ao
retrato dos paineis de Nuno Gonçalves nas Janelas Verdes.
Identificada a pessoa do quadro na princesa D. Catarina estar-se-ia
numa mais verdadeira senda histórica da origem dela, mas em nada
influiria na apreciação da obra artística.
A pintura que reveste a madeira é uma pintura de tintas baças a vários
tons de castanho, sem óleo, em gouache ou a cré e cola, como se
encontram exemplares
no meado do século XVII. É certo que o preparo parece do século XVI e
executado pelo artista autor da Madona onde as tintas são próprias da
época numa obra prima de mestre. Essas tintas nem impregnadas de óleo
gordo nem distintas das usadas por Nuno Gonçalves, por Vasco
Fernandes, ou mesmo pelo autor da série da vida da
Virgem que se acha no museu da Virgem (sic) e que se caracterisa pelas
cores vivas que emprega nas suas cenas,
/
229 /
essas cores são de um brilhante quase de esmalte que as separa da época
em que pintavam os mestres referidos os quais usavam de maneiras e
processos tão diferentes que não é necessário confronto para os
distinguir.
Mas a infanta só se assemelha no desenho à maneira como este
quinhentista pintava e só em gravura pode ser tomada como obra
trabalhada pejo seu pincel, mas não à vista, por isso que essas cores e
essa natureza de tintas são próprias do século XVII e só o indumento
espesso e branco é da época ou parece, do autor da Madona.
O retrato parece que foi executado depois da morte
de qualquer das
infantas e no século XVII sobre qualquer tábua onde o original
existisse estragado ou sobre outra cena ou retrato que não pudesse ser
aproveitado.
Como este quadro é uma peça de colecção que inspira a imaginação dos
guias, para lhe não prejudicar a atenção dos amadores de belas artes,
aponto aqui as considerações que merece para entrar no devido valor
artístico que lhe compete no Museu de Aveiro.
Além disso, como as escolas de pintura nacionais estão pouco estudadas
na literatura vulgarizada ao viajante, não sendo raro filiarem-se os quadros em pintura
híbrida flamenga, lombarda ou genovesa, a suspeita de mistificação em
informes desta natureza prejudica e perturba a disposição de qualquer
amador mesmo bem humorado que peregrine por esses locais de curiosidades
arqueológicas.
E há ainda o risco de se deixar passar para além fronteiras um mérito nacional de autêntico valor porque na desconfiança
a lei do menor esforço arrima-se ao que lhe faculta prontamente a
memória e o que ocorre são as celebridades para autenticarem autores de
obras desconheddas.
Eu próprio, que de há muito me couracei contra as dúvidas, achando-me
na Madeira na primavera de 1925, pouco afeito a olhar quadros nacionais
e menos identificado então do que hoje com as escolas de pintura
nacionais, tomei várias táboas dos principios do século XVI que existem
nas igrejas do Funchal e das Velas por quadros dessas escolas híbridas
onde li influência de processos de uns e outros é incontestável.
A crítica que delas fiz num livro que publiquei com o título «A ilha da Madeira» não deixa de servir à apreciação da
pintura dessa época de mestres nacionais e estes não ficaram
desmerecidos pela desnacionalização que lhes dei, no entanto não só
reconheço o dever de os
naturalizar como de apontar o exemplo do que pode influir a dúvida e a
desconfiança no ânimo do mais convicto
/
230 / quando a desorientação veio substituir a inclinação natural e
confiante do amador para apreciar a obra, de arte.
Lisboa, 4 de Novembro.
Marquês de Jácome Correia»
E já agora, não ficará também sem adequado registo a estranha
identificação conferida ao célebre quadro do Museu de Aveiro pelo
distinto romancista e académico, Senhor Dr. SOUSA COSTA, na obra de
grande tiragem que em 1943
publicou sob o título de Imortais do Amor na História e na Lenda; de
pág. 221 por diante decorre o capítulo Camões e a Infanta D. Maria,
sendo toda a página 226 ocupada por uma
esplêndida reprodução a ofset, em grande formato – 229mm, por 152
–
do retrato do Museu aveirense; simplesmente, a legenda que o apresenta
declara, sem hesitação nem justificação também, de espécie alguma:
«Retrato duma Princesa – Época da Infanta D.
Maria.
Por Sanchez Coelho
Museu Nacional de Arte Antiga»
Não diz o consagrado escritor em que fundamenta as suas atribuições de
autoria e de época; conquanto SOUSA COSTA se não tenha evidenciado, propriamente, como historiador ou crítico de Arte, a invulgar expansão
que a sua obra alcançou através da editorial de "O Primeiro de Janeiro" e
o seu nome respeitabilíssimo de escritor, obrigam-nos a arquivá-las
nestas páginas de imparcial comentário(3).
Iniciámos esta primeira parte do nosso estudo com a declaração formal,
de 1890, de que não existia retrato algum autêntico da Infanta Santa
Joana. Encerramo-la agora com a interpretação do quadro do Museu, em
1943, como representando uma princesa, inominada, da época da Infanta D.
Maria, de significado manifestamente equivalente àquela
inicial declaração(4).
/
231 /
Haverá, de facto, razões para se dever regressar ao ponto
de vista de 1890?
De nada terá valido então quanto até hoje se escreveu
a cerca do retrato?
Adiante veremos como a pintura do Museu de Aveiro é
publicamente
considerada, há mais de três séculos, como o retrato autêntico de Santa
Joana.
Deixámos nas páginas acima elementos suficientes para se acompanhar a
história do retrato do Museu de Aveiro de há um século a esta parte.
Pouco mais haverá pertencente a esse período, certamente, e cremos, até,
que de importante nada ali faltará. Resolvamos, contudo, por
involuntária, alguma omissão sempre possível.
Mas o retrato da Princesa tem, ligado a si, razoável quantidade de
problemas; e como o leitor pôde já observar pelas estampas que
apresentámos e que pela primeira vez se
agrupam em gravação que permita confrontá-las, a de 1621,
da qual todas as restantes derivam, identifica-se em absoluto com o
retrato encontrado por JOAQUIM DE VASCONCELOS em 1895 no coro alto do
mosteiro de Jesus de Aveiro.
Importa portanto, antes de entrarmos na apreciação dos problemas
adstritos àquela pintura, seguir também na bibliografia anterior ao
século XIX o rasto que porventura dela por lá tenha ficado, além da sua
reprodução gráfica no Anacephalaeoses do P.e ANTÓNIO DE VASCONCELOS, o
que é, como bem se compreende, de capital importância.
Até 1755 a bibliografia principal acerca da Infanta encontra-se coligida
na obra a que já de passagem nos referimos,
«Epitome da vida de S.ta Joanna, Princeza de Portugal, Religiosa da
Ordem de S. Domingos, chamada vulgarmente a Santa Princeza.
Traduzido do italiano em Portuguez, e accrescentado por hum seu devoto, Lisboa, Na Officina de
Manoel Soares, Anno de MDCCLV»(5).
O original italiano é a «Breve narratione Della Vita della Beata Giovanna Principessa
di Portogalio Dell'Ordine di San Domenico.
Appellata communemente la Santa Principessa. Raccolta da un Religioso
dell'istess' Ordine di Lei Deuoto. In Roma, Nella Stamp. della R. C. A.
MDCXClII»
(6), que também termina por uma lista bibliográfica.
Destinavam-se ambas, embora em épocas diferentes, a
criar ambiente para a desejada canonização da Infanta.
/
232 /
Para metodização de trabalho e, ao mesmo tempo, para fornecer elementos de
utilidade ao estudioso, visto que o Epítome se
não encontra já facilmente, a seguir transcrevemos a relação bibliográfica exarada no final da obra (pág. 203),
a que juntamos em nota algumas observações de carácter
bibliográfico também, que se nos afiguraram convenientes.
«Breve notícia dos Escritores da vida da Santa Princesa
– A Madre Soror MARGARIDA PINHEIRA foi a primeira
que escreveu a vida da Santa Princesa em língua portuguesa: e sendo
coetânea e indivisa companheira da Serva de Deus no Mosteiro de Jesus de
Aveiro, pela observar continuamente em tudo que dizia ou obrava, não
se pode duvidar que pusesse todo o possível cuidado para compor a sua
vida completamente verdadeira, como ela muitas vezes afirma também com
juramento.
Esta vida foi já produzida e compulsada no processo que se formou no ano
de 1626 sobre a fama da santidade e sobre os milagres da serva de Deus,
pelo Bispo de Coimbra, como Juiz ordinário; no qual processo se vê a
sentença proferida
pelo dito Bispo, que ao livro da sobredita vida convém dar,
em Juízo e fora dele, plena e indubitável fé.
Da vida escrita por esta Venerável Religiosa dimanaram, como de
claríssima fonte, os copiosos rios de outras
vidas, que saíram à luz por sujeitos célebres, assim em doutrina como em
virtude
(7).
– Escreveu a vida da Santa Princesa, GARCIA DE RESENDE na
crónica de El Rei D. João II em língua portuguesa, a qual foi impressa em
Évora no
ano de 1554.
– Escreveu-a depois o Padre Mestre Fr. ANTÓNIO DE SENA, da Ordem dos
Pregadores, inserta nas crónicas da mesma Ordem por ele compostas na
língua portuguesa e dadas à luz no ano do Senhor de 1585
(8).
/
233 /
– Escreveu-a da mesma sorte em
língua portuguesa o Padre Mestre Fr.
NICOLAU DIAS, que a estampou no ano de 1594.
– Escreveu-a o Padre Fr. JERÓNIMO ROMÃO, da Ordem
de Santo Agostinho, historiador régio, e a deu à luz em língua espanhola no ano de 1595
(9).
– Escreveu-a o Padre Mestre Fr. JOÃO LOPES, da Ordem
dos Pregadores, que depois foi Bispo de Monopoli, e a deu à estampa em
língua espanhola no ano de 1613.
– Escreveu-a S. PIO V, da Ordem dos Pregadores, no terceiro tomo das
vidas dos Santos, e Beatos da mesma Ordem, em língua italiana, impresso
no ano de 1620.
– Escreveu-a em língua portuguesa o Padre Fr.
LUÍS CÁCEGAS, da Ordem dos Pregadores, no livro das Histórias
de S. Domingos, impresso no ano do Senhor de 1623
(10).
– Escreveu-a em língua latina o Padre ANTÓNIO DE VASCONCELOS, da
Companhia de Jesus, no livro que compôs, intitulado: Anacephalaeosis Regum Lusitaniae, que foi dado à
luz no ano de 1621.
– Escreveu-a em língua latina o Padre Mestre Fr. ABRAÃO BZOVIO, da Ordem
dos Pregadores, Analista Pontifício, na
continuação dos Anais do Cardeal Barónio no tomo 18
impresso no ano do Senhor de 1627.
– Escreveu-a Monsenhor CARAMUEL
(11) no livro intitulado:
Philippus
prudens, impresso em Anvers no ano de 1639.
– Escreveu-a em língua portuguesa o Padre Fr. LUÍS DE SOUSA, da Ordem
dos Pregadores, na segunda parte da História da Província de Portugal,
impresso em Lisboa no ano de 1662
(12).
– Escreveu-a em língua italiana O Padre PEDRO FRANCISCO TRESILEO, da
Companhia de Jesus, no seu livro impresso no ano de 1664.
– Escreveu-a JORGE CARDOSO em língua latina no seu
Agiológio Lusitano, no ano de 1666
(13).
/
234 /
– Escreveu-a em língua italiana o Padre Mestre MARCHEZI, da Ordem dos
Pregadores, que foi depois Bispo de Pozzuolo no terceiro tomo do seu
Diário Sacro Dominicano, dado à luz no ano do Senhor de 1670.
– Escreveu-a em língua portuguesa D. FERNANDO CORREA DE LACERDA, Bispo
do Porto, impressa em Lisboa no ano de 1674.
– Escreveu-a MANUEL DE FARIA E SOUSA, em língua espanhola, no segundo
tomo da Europa Portuguesa, impresso em Lisboa no ano de 1679.
– Escreveu-a, em língua francesa O Padre Fr. TOMÁS SOVEGIO, da Ordem
dos Pregadores, no terceiro tomo do Ano Dominicano, dado à luz em Amiens
no ano de 1686.
– O Padre DANIEL PAPEBROCCHIO, da Companhia de Jesus, em um livro
separado dos outros volumes deu à luz, em língua latina, traduzida com
as suas eruditas anotações, a vida da Santa Princesa, escrita na língua
portuguesa pela Madre Soror MARGARIDA PINHEIRO, no ano do Senhor de
1688.
– Escreveu-a o Padre Fr. LUCAS DE SANTA CATARINA, cronista da Ordem dos
Pregadores, nas suas Estrelas Dominicas impressas em Lisboa no ano de
1709.
– Escreveu-a o Padre Fr. MANUEL DE LIMA, da Ordem dos Pregadores, no
segundo tomo do Agiológio Domínico impresso em Lisboa no ano de 1710.
– Escreveu-a finalmente o Padre Fr. DIOGO DO ROSÁRIO, da Ordem dos
Pregadores, no primeiro tomo do seu Flos Sanctorum impresso em Lisboa no
ano de 1741.)
Posteriormente à publicação do Epítome (que podia ter sido actualizado
com mais bibliografia, visto datar de 1755) obras importantes se
ocuparam da Infanta; deixando de parte,
pelo seu carácter de mera compilação, as notícias dos Dicionários, das
Enciclopédias, e das Histórias gerais de Portugal, bem como os simples
artigos de Revistas ilustradas, de vulgarização, que nada adiantam,
merecem-nos ainda atenção, pelo menos, a Oracion Panegyrica de la
Beatificacion de Santa
Joana Princesa, de Fr. GABRlEL PALAZUELOS (1695), o Céo aberto na terra,
do P.e FRANCISCO DE SANTA MARIA (1697),
a História Genealógica da Casa Real, de D. ANTÓNIO
CAETANO DE SOUSA (1737), Dissertações cronológicas e críticas, de
JOÃO
PEDRO RIBEIRO (1810), Quadro elementar, do VISCONDE DE SANTARÉM (1853),
os Estudos biographicos ou noticia das pessoas retratadas nos quadros
historicos pertencentes á Bibliotheca Nacional de Lisboa, por JOSÉ BARBOSA CANAES DE FIGUEIREDO CASTELLO-BRANCO (1854), e as mais obras que
deixámos citadas em 1939 no prefácio à nossa edição da crónica, de
MARGARIDA PINHEIRO.
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A. G. DA ROCHA MADAHIL |