Ao
contrário do que a maior densidade de população actual e o consecutivo
progresso económico naturalmente nos conduziriam a supor, o número de
cadeias, ou pseudo-cadeias, existentes há século e meio na
comarca de Aveiro − e, decerto, nas demais − era muito superior ao dos
dias de hoje. Eram muitas mais as cadeias, muito mais disseminadas, como
se tornava conveniente num tempo em que eram dificílimas as
comunicações, mas eram muito piores.
Os próceres do liberalismo haviam experimentado e duramente sofrido,
algumas vezes, os horrores dessas cadeias insalubres, despidas de toda a
espécie de comodidades, masmorras infectas, sem ar nem luz. Uma vez
alcançado o poder, movidos pelo humanitarismo ideológico que os
impelira à luta e aos sacrifícios, e aconselhados pela experiência
própria, logo se lhes impôs a necessidade de melhorar as condições dos
encarcerados. Viria, assim, a Carta Constitucional a estabelecer (art.
145.º, § 2.º) que as cadeias deveriam ser, não apenas seguras − pois
cadeias eram − mas limpas e bem arejadas − uma vez que se destinavam a
seres humanos.
Entretanto as Cortes haviam votado que se procedesse ao «exame do
estado e melhoramentos das cadeias». A Secretaria de Estado dos
Negócios de Justiça, em 7 de Novembro de 1821, publicou a portaria
designando as pessoas propostas para as diversas comissões encarregadas
de efectuar o inquérito às condições em que, nessa data, aquelas se
encontravam. Note-se que elas, na generalidade das vilas, ocupavam,
com a sala de audiências e outros compartimentos adstritos aos serviços
judiciais, dependências dos Paços do
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278 /
Concelho. A vistoria tinha, porém, como objectivo os lugares de
reclusão, e quando muito, acidentalmente, poderia olhar às deficiências
de instalação dos demais serviços.
Para a comarca de Aveiro recaiu a nomeação em João
Nepomuceno da Silva, Manuel Rangel Varela de Quadros,
Ricardo José da Maia Vieira, António Maria de Abranches Lobo e José
António de Amorim, uns residentes na cidade, outros fora.
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Temos presentes os documentos que sobre esta comissão conservou o
último. Servir-nos-ão para lançar um relance − muito breve, pois o
assunto não dá grande aprazimento − ao estado em que se apresentavam nessa
época as trinta e nove cadeias que pertenciam à comarca aveirense, então
de
extensão muito diferente, claro está, da que hoje abrange. Em relação ao
maior número, só por eufemismo ou hipérbole
se poderia chamar cadeias a esses lúgubres e sórdidos tugúrios, sem requisitos, ainda os mais comezinhos, para alojar, com algum
vislumbre de dignidade e decência, seres da nossa espécie. Uma grande
parcela não representava já mais do que simples lugares de passagem dos
detidos para cadeias de outras localidades, com melhores condições de
segurança e, vamos lá, de higiene e conforto. Algumas, de todo desprezadas, reduziam-se a lastimosas ruínas, sem préstimo nem utilização,
inaproveitáveis sequer ao menos para eventuais
reconstruções. Eram já hipóteses de cadeias, cadeias simbólicas ou apenas restos a recordar a função passada, como hoje sucede
mencionadamente com a cadeia do Sardão, nos arrabaldes de Águeda,
reduzida a escombros e que mal suscita ao observador a probabilidade de
haver sido uma das
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prisões mais importantes e mais bem apetrechadas da área
em que superentendiam os magistrados aveirenses. Havia
povoações onde mal se lobrigavam os alicerces a assinalar a
antiga edificação, e frequentes vezes, a ruína dos velhos prédios
empregados como cárceres chegava a ponto de a armação ser sustida com um forte esteio ao qual, por via da regra,
se encontrava ligado um cadeame de ferro, destinado a manter com
segurança algum preso, até ulterior remoção para cadeia de maior
confiança.
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As cadeias existentes na comarca, teórica ou efectivamente, e visitadas
pelos membros da comissão, eram as
seguintes: Brunhido, Aguieira, Assequins, Sardão, Aguada
de Cima, Avelãs de Cima, Ferreiros, Anadia, Couto de Mogofores, Couto
de Paredes, S. Lourenço do Bairro, Sangalhos, Couto de Óis do Bairro,
Oliveira do Bairro, Avelãs do Caminho, Couto de Barrô, Vouga, Trofa,
Segadães, Serém,
Pinheiro, Frossos, Angeja, Estarreja, Bemposta, Albergaria-a-Velha,
Couto de Esteves, Fermedo, Sever do Vouga,
Préstimo, Vagos, Sorães, Ermida, Ílhavo, Sôza, Arada, Mira,
Esgueira e Aveiro.
Vamos, em resumo, apreciar os resultados do inquérito
− demorado e um
tanto dificultoso, como verificaremos − a
que procederam os comissionados, socorrendo-nos, especialmente, de uma cópia fiel do relatório que elaboraram em 27 de
Março de 1822, ou seja quatro meses e meio após a nomeação.
Entretanto, notemos, de passagem, o tom em que são redigidas as
considerações preambulares da exposição sobre as diligências efectuadas.
Poderá achar-se uma de três coisas: aduladora subserviência, exagero de
formalismo ou desmesurado
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280 / entusiasmo. A comissão, na realidade, ao iniciar as suas
considerações, deseja em «tão feliz ocazião render a
V. Mag.e Fidelífsima a devoção, respeito e fidelid.e que lhe
consagra, e à Sua adhezão ao Systema constitucional e ao
Sobrano congrefso a q.m' de mãos dadas V. Mag.e ancioso
S'unio, e de cuja união e adherencia tantos e tão asignalados
benef.os tem rezultado ao todo desta Nação, talves com inveja
dos outros Povos, e cada dia os Portugueses são testemunhas
de tantas beneficencias quantas conduzem para a felicid.e da
Nacão inteira». Estavam abertas, parece, as portas largas do
Paraíso... Agora, era só entrar! Ou não fosse uma dessas inestimáveis
beneficências, «e que se pode considerar de
grande monta, a do bom regimen dos encarçerados para cujo
fim e devido exame foi V. Mag.e servida crear comifsoens em todo o
Reino». Não estranhemos, todavia, estas ditirâmbicas louvaminhas, pois o
pendor nacional para os superlativos encomiásticos continuou a medrar
pelos tempos adiante.
As cadeias consideradas em melhor estado na área da comarca foram as de
Mira e Esgueira, que dispensavam qualquer melhoramento, e a de Aveiro,
que apenas precisaria de
«gradame nas janelas da sacada, porque se o tivefse mais
formosiava este edificio.»
Esta última, como é bem conhecido, era de construção
recente, pois, instalada no magnífico edifício dos Paços do
Concelho onde se conservou até aos fins do primeiro quartel
deste século [séc.
XX], datava de 1797(1). A elegante construção, sobre
ser nova e, porventura, a de melhor traça arquitectónica da
cidade, não permitia desmazelos de tomo, uma vez que não
só alojava as repartições municipais, mas até dispunha de
dependências especiais para a aposentadoria, e nesta se hospedaram
visitantes da qualidade de Beresford.
Se Vagos, Oliveira do Bairro, Sardão, Avelãs de Cima,
Anadia, Angeja, Estarreja, Bemposta, Couto de Esteves e
Sever, por exemplo, possuíam cadeias susceptíveis de melhoramentos capazes de as tornarem satisfatórias, e mesmo
Ílhavo
e Sangalhos, apesar de as suas apresentarem estragos consideráveis, na maioria das outras terras encontravam-se num
estado de desprezo e ruína que já não admitia reparos possíveis. Em Avelãs do Caminho e no Brunhido, a comissão,
como já tivemos ocasião de referir, apenas encontrou os
sinais dos alicerces, e em Segadães nem mesmo esses derradeiros vestígios, mas «só hua pedra levantada q dizem serve
de Pelourinho».
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Para aquelas que se encontravam em sofríveis condições
ou consentiam reparos mais ou menos prontos e eficientes, os comissionados recomendavam, quase sem excepção, a
abertura de frestas para renovação do ar nas enxovias; a instalação de
tarimbas; a colocação de portais de madeira
nas janelas, por fora do gradame − para as protegerem das
intempéries e evitar comunicações perigosas, durante a noite,
dos encarcerados com o exterior − e ainda as convenientes
providências para dotar as prisões de necessárias ou privadas.
Este problema, que hoje colocaríamos na rubrica das
instalações sanitárias, parece que merecia, na época, particular
atenção. Por aí se avaliará como teria andado esquecido e
a que extremos havia chegado a infecta imundície desses calabouços soturnos, muitas vezes térreos e até subterrâneos,
abafados e sombrios, com os reclusos a dormir no chão,
sobre palha, poucas vezes renovada.
Na cadeia de Aveiro − nova como já vimos, e magnífica,
pode dizer-se, em relação às demais − havia latrinas. Mas nem sempre,
apesar disso, se trataria da respectiva limpeza
convenientemente, pois o caso foi objecto de uma deliberação camarária, em 15 de Novembro de 1817, determinando a edilidade que
se «limpafsem os lixos das cloacas da caza da
cadeia de quinze em quinze dias, sem que nellas se conservem mattos, ficando a limpeza ao cuidado do Procurador do Concelho, em
poder do qual estaria a chave do embude da
porta exterior do corredor das mesmas cloacas, e em poder do carcereiro
a chave do ferrolho da mesma porta». Dava-se
tamanha importância ao assunto, que se nomeavam dois claviculários e
se confiava a limpeza ao cuidado − entenda-se na acepção de vigilância e
não na de obrigação efectiva de
limpar, evidentemente − ao próprio procurador. Que, aliás,
em boa verdade, este zelo higiénico podia não significar
apenas uma generosa intenção a favor da comodidade e saúde
dos encarcerados, mas uma providência destinada principalmente a preservar a
Domus Municipalis de indesejáveis
pestilências. Por uma ou outra razão, a medida aproveitaria a ambas as
partes e esse facto é que importa agora assinalar.
Um pormenor que mereceu franca condenação foi a
existência de alçapões para a entrada dos presos nas enxovias. Em algumas
cadeias, como as de Oliveira do Bairro, Anadia
e Angeja entravam nos cárceres, descendo por esses alçapões.
No relatório propõe-se, como mais prática e humana, a sua substituição
por pequenas portas, de acesso directo às clausuras.
Nas localidades onde os edifícios das cadeias se
mostravam em estado de mais acentuada ruína recorria-se à solução
de levar os presos para casas particulares e conservá-los aí «até serem transportados para cadeias seguras, agrilhoados
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com hum cadeame de ferro chumbado a hua grande pedra,
ou seguro a hum g.de tronco de madr.ª firmado no meio da
caza, que também serve de suster a m.ma caza.» Para o
transporte dos presos, por seu turno, adoptava-se também uma
prática reprovável, pois «observou mais a Comifsão que na
maior parte dos Districtos indicados se conserva o cruel systema de
serem os presos conduzidos às cadêas amaneatados com cordas por falta de
algemas.»
A propósito de correntes e cadeames, vejamos por transcrição, o que era
a cadeia de Sorães e qual era ali o regime prisional: «A Cadeia desta villa he hũa caza terrea sem forro, de 20 a 25 palmos de vão, e hũa
fresta de meio palmo, com
hũa pedra de mó, com hũa corrente xumbada, à q.l se prendem hum e dois
presos pelo pé, q pelo seu comprimento vão
para o Sol fora da porta: está em sitio despovoado, aonde
não tem mais q dois vesinhos»... Boa índole seria a desses presos que,
por um lado, não se evadiam e, por outro, aceitavam, humildemente, essa
estranha condição que suscita a lembrança de algum cão preso à casota!
Da cadeia do Préstimo há notícia não só de um grilhão «imbutido em huma
pedra semilhante a de hum moinho, e servio de lavrar ao pe do desgraçado
q alli he prezo»,
o que é comum, mas de outros instrumentos mais antipáticos, que enchiam «huma boa canastra de vindima» e entre
os quais «ferros de lançar ao pescozo, e outros m.to antigos»,
felizmente e, por bom sinal, inutilizados, «por estarem a hum canto
da
caza sobre a terra, e chuver nella».
O número de cadeias foi considerado excessivo para as necessidades e
inútil a manutenção e reconstrução da maioria delas. De entre as mais arruinadas preconizou-se, em especial, a
reconstrução da de Albergaria-a-Velha, por se encontrar situada na
estrada Lisboa ao Porto, a meio caminho entre o Sardão e Bemposta. As
povoações viviam, aliás,
«em penúria» e sem possibilidades financeiras para obras daquela
natureza, ainda mesmo de pequena monta. Apenas
se afigurava viável um único meio: serem satisfeitos os encargos pelos
senhorios ou donatários dos respectivos distritos.
Nem este, porém, seria praticável, pois, como se verifica a respeito de Vagos, a donatária, na altura a marquesa de Vagos,
quando a Câmara, que havia custeado sempre os pequenos reparos, quatro
anos antes, comunicara àquela titular que a cadeia se encontrava em mau
estado, ela respondeu «q como
se lhe tinha tirado a posse de confirmar as justiças; em esta
lhe sendo restituida, cuidaria em compor a cadeia».
Os restantes senhorios que encontramos mencionados são os seguintes:
Assequins, conde da Ponte; Aguada de Cima, Oliveira do Bairro, Vouga e
Sôza, duquesa de Lafões,
D. Ana de Bragança; Avelãs do Caminho, Ferreiros e Ílhavo,
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D. José Lobo da Silveira; Couto de Mogofores e Couto de
Paredes, bispo e cabido de Coimbra; Sangalhos, freiras de Santa Clara,
de Coimbra; Trofa, Pedro de Melo Brinco,
embaixador em Roma; Serém, herdeiros do desembargador
do Paço Alexandre José Ferreira Castela; Pinheiro, Angeja
e Bemposta, marquês de Angeja; Frossos, comendador de
Malta; Estarreja, freiras de Arouca; Albergaria-a-Velha, freiras de
Jesus, de Aveiro; Couto de Esteves, bispo de Viseu e marquês de
Marialva; Fermedo. Francisco Peixoto Coelho, do Porto; Préstimo, barão
de Quintela; e Anadia, ao que parece, a duquesa de Alverca.
No que respeita «á limpeza e profumes
(sic) nas enxovias, alias de
importancia para melhor comodid.e e subsistencia
dos presos, por via da regra se acha em tutal abandono e esquecimento
pelos carcereiros». A comissão verberou esse desmazelo, aliás sem
apreciável resultado, pois parte deles continuou «no tutal
esquecimento
do seu dever». No que se referia «ao tratamento dos presos, estes se não
mostravão
escandalizados à Commifsão».
Para encerrar esta resenha vejamos como organizou os seus trabalhos a
comissão, e qual as causas alegadas para justificar as demoras na
conclusão da sua tarefa.
O serviço foi dividido, encarregando-se os comissionados
que residiam mais próximo uns dos outros de visitar as cadeias das
respectivas redondezas. Além da comodidade
que daí advinha, evitavam, assim, na medida do possível,
«o incommodo das Camaras e Povos no arranjo para os
aquartelamentos principalm.e das noutes para esta commifsaõ
quando toda andafse reunida, por faltas de estalagens aonde
se recolhese, e mais ainda para emprovizadam.e serem visitadas as cadeias
e se não dar lugar a ser acautellada qualquer omifsaõ q houvesse da
parte dos Carcereiros e Justiças».
A demora, oficialmente, teria sido devida sobretudo «à tenebrosa
tempestade do mês de dezbr.º proximo pafsado com a qual ficarão os
caminhos invadiaveis já pelos grd.es fossos, e ribanças q às estradas acudirão, já pelas faltas de Pontes com
q ficarão os rios». Claro que esta razão e a das
distâncias, também apresentada, embora ambas fossem verdadeiras, não
representavam as causas principais da delonga. Efectivamente o que
sucedeu foi alguns dos membros da
comissão pertencerem ao género, que mestre AQUlLINO
RIBEIRO haveria de crismar, mais tarde, de «estassemarimbandistas». E
foi o cabo dos trabalhos para que estes se desempenhassem das vistorias
que lhes haviam sido cometidas. Aqueles tempos também já não iam muito
para maçadas.
EDUARDO CERQUEIRA |