Eduardo Cerqueira, Um exame às cadeias de Aveiro, em 1822, Vol. XVII, pp. 277-283.

UM EXAME ÀS CADEIAS

DA COMARCA DE AVEIRO,

EM 1822

Ao contrário do que a maior densidade de população actual e o consecutivo progresso económico naturalmente nos conduziriam a supor, o número de cadeias, ou pseudo-cadeias, existentes há século e meio na comarca de Aveiro − e, decerto, nas demais − era muito superior ao dos dias de hoje. Eram muitas mais as cadeias, muito mais disseminadas, como se tornava conveniente num tempo em que eram dificílimas as comunicações, mas eram muito piores.

Os próceres do liberalismo haviam experimentado e duramente sofrido, algumas vezes, os horrores dessas cadeias insalubres, despidas de toda a espécie de comodidades, masmorras infectas, sem ar nem luz. Uma vez alcançado o poder, movidos pelo humanitarismo ideológico que os impelira à luta e aos sacrifícios, e aconselhados pela experiência própria, logo se lhes impôs a necessidade de melhorar as condições dos encarcerados. Viria, assim, a Carta Constitucional a estabelecer (art. 145.º, § 2.º) que as cadeias deveriam ser, não apenas seguras − pois cadeias eram − mas limpas e bem arejadas − uma vez que se destinavam a seres humanos.

Entretanto as Cortes haviam votado que se procedesse ao «exame do estado e melhoramentos das cadeias». A Secretaria de Estado dos Negócios de Justiça, em 7 de Novembro de 1821, publicou a portaria designando as pessoas propostas para as diversas comissões encarregadas de efectuar o inquérito às condições em que, nessa data, aquelas se encontravam. Note-se que elas, na generalidade das vilas, ocupavam, com a sala de audiências e outros compartimentos adstritos aos serviços judiciais, dependências dos Paços do / 278 / Concelho. A vistoria tinha, porém, como objectivo os lugares de reclusão, e quando muito, acidentalmente, poderia olhar às deficiências de instalação dos demais serviços.

Para a comarca de Aveiro recaiu a nomeação em João Nepomuceno da Silva, Manuel Rangel Varela de Quadros, Ricardo José da Maia Vieira, António Maria de Abranches Lobo e José António de Amorim, uns residentes na cidade, outros fora.

Temos presentes os documentos que sobre esta comissão conservou o último. Servir-nos-ão para lançar um relance − muito breve, pois o assunto não dá grande aprazimento − ao estado em que se apresentavam nessa época as trinta e nove cadeias que pertenciam à comarca aveirense, então de extensão muito diferente, claro está, da que hoje abrange. Em relação ao maior número, só por eufemismo ou hipérbole se poderia chamar cadeias a esses lúgubres e sórdidos tugúrios, sem requisitos, ainda os mais comezinhos, para alojar, com algum vislumbre de dignidade e decência, seres da nossa espécie. Uma grande parcela não representava já mais do que simples lugares de passagem dos detidos para cadeias de outras localidades, com melhores condições de segurança e, vamos lá, de higiene e conforto. Algumas, de todo desprezadas, reduziam-se a lastimosas ruínas, sem préstimo nem utilização, inaproveitáveis sequer ao menos para eventuais reconstruções. Eram já hipóteses de cadeias, cadeias simbólicas ou apenas restos a recordar a função passada, como hoje sucede mencionadamente com a cadeia do Sardão, nos arrabaldes de Águeda, reduzida a escombros e que mal suscita ao observador a probabilidade de haver sido uma das / 279 / prisões mais importantes e mais bem apetrechadas da área em que superentendiam os magistrados aveirenses. Havia povoações onde mal se lobrigavam os alicerces a assinalar a antiga edificação, e frequentes vezes, a ruína dos velhos prédios empregados como cárceres chegava a ponto de a armação ser sustida com um forte esteio ao qual, por via da regra, se encontrava ligado um cadeame de ferro, destinado a manter com segurança algum preso, até ulterior remoção para cadeia de maior confiança.

As cadeias existentes na comarca, teórica ou efectivamente, e visitadas pelos membros da comissão, eram as seguintes: Brunhido, Aguieira, Assequins, Sardão, Aguada de Cima, Avelãs de Cima, Ferreiros, Anadia, Couto de Mogofores, Couto de Paredes, S. Lourenço do Bairro, Sangalhos, Couto de Óis do Bairro, Oliveira do Bairro, Avelãs do Caminho, Couto de Barrô, Vouga, Trofa, Segadães, Serém, Pinheiro, Frossos, Angeja, Estarreja, Bemposta, Albergaria-a-Velha, Couto de Esteves, Fermedo, Sever do Vouga, Préstimo, Vagos, Sorães, Ermida, Ílhavo, Sôza, Arada, Mira, Esgueira e Aveiro.

Vamos, em resumo, apreciar os resultados do inquérito − demorado e um tanto dificultoso, como verificaremos − a que procederam os comissionados, socorrendo-nos, especialmente, de uma cópia fiel do relatório que elaboraram em 27 de Março de 1822, ou seja quatro meses e meio após a nomeação.

Entretanto, notemos, de passagem, o tom em que são redigidas as considerações preambulares da exposição sobre as diligências efectuadas. Poderá achar-se uma de três coisas: aduladora subserviência, exagero de formalismo ou desmesurado / 280 / entusiasmo. A comissão, na realidade, ao iniciar as suas considerações, deseja em «tão feliz ocazião render a V. Mag.e Fidelífsima a devoção, respeito e fidelid.e que lhe consagra, e à Sua adhezão ao Systema constitucional e ao Sobrano congrefso a q.m' de mãos dadas V. Mag.e ancioso S'unio, e de cuja união e adherencia tantos e tão asignalados benef.os tem rezultado ao todo desta Nação, talves com inveja dos outros Povos, e cada dia os Portugueses são testemunhas de tantas beneficencias quantas conduzem para a felicid.e da Nacão inteira». Estavam abertas, parece, as portas largas do Paraíso... Agora, era só entrar! Ou não fosse uma dessas inestimáveis beneficências, «e que se pode considerar de grande monta, a do bom regimen dos encarçerados para cujo fim e devido exame foi V. Mag.e servida crear comifsoens em todo o Reino». Não estranhemos, todavia, estas ditirâmbicas louvaminhas, pois o pendor nacional para os superlativos encomiásticos continuou a medrar pelos tempos adiante.

As cadeias consideradas em melhor estado na área da comarca foram as de Mira e Esgueira, que dispensavam qualquer melhoramento, e a de Aveiro, que apenas precisaria de «gradame nas janelas da sacada, porque se o tivefse mais formosiava este edificio.»

Esta última, como é bem conhecido, era de construção recente, pois, instalada no magnífico edifício dos Paços do Concelho onde se conservou até aos fins do primeiro quartel deste século [séc. XX], datava de 1797(1). A elegante construção, sobre ser nova e, porventura, a de melhor traça arquitectónica da cidade, não permitia desmazelos de tomo, uma vez que não só alojava as repartições municipais, mas até dispunha de dependências especiais para a aposentadoria, e nesta se hospedaram visitantes da qualidade de Beresford.

Se Vagos, Oliveira do Bairro, Sardão, Avelãs de Cima, Anadia, Angeja, Estarreja, Bemposta, Couto de Esteves e Sever, por exemplo, possuíam cadeias susceptíveis de melhoramentos capazes de as tornarem satisfatórias, e mesmo Ílhavo e Sangalhos, apesar de as suas apresentarem estragos consideráveis, na maioria das outras terras encontravam-se num estado de desprezo e ruína que já não admitia reparos possíveis. Em Avelãs do Caminho e no Brunhido, a comissão, como já tivemos ocasião de referir, apenas encontrou os sinais dos alicerces, e em Segadães nem mesmo esses derradeiros vestígios, mas «só hua pedra levantada q dizem serve de Pelourinho». / 281 /

Para aquelas que se encontravam em sofríveis condições ou consentiam reparos mais ou menos prontos e eficientes, os comissionados recomendavam, quase sem excepção, a abertura de frestas para renovação do ar nas enxovias; a instalação de tarimbas; a colocação de portais de madeira nas janelas, por fora do gradame − para as protegerem das
intempéries e evitar comunicações perigosas, durante a noite, dos encarcerados com o exterior − e ainda as convenientes providências para dotar as prisões de necessárias ou privadas.

Este problema, que hoje colocaríamos na rubrica das instalações sanitárias, parece que merecia, na época, particular atenção. Por aí se avaliará como teria andado esquecido e a que extremos havia chegado a infecta imundície desses calabouços soturnos, muitas vezes térreos e até subterrâneos, abafados e sombrios, com os reclusos a dormir no chão, sobre palha, poucas vezes renovada.

Na cadeia de Aveiro − nova como já vimos, e magnífica, pode dizer-se, em relação às demais − havia latrinas. Mas nem sempre, apesar disso, se trataria da respectiva limpeza convenientemente, pois o caso foi objecto de uma deliberação camarária, em 15 de Novembro de 1817, determinando a edilidade que se «limpafsem os lixos das cloacas da caza da cadeia de quinze em quinze dias, sem que nellas se conservem mattos, ficando a limpeza ao cuidado do Procurador do Concelho, em poder do qual estaria a chave do embude da porta exterior do corredor das mesmas cloacas, e em poder do carcereiro a chave do ferrolho da mesma porta». Dava-se tamanha importância ao assunto, que se nomeavam dois claviculários e se confiava a limpeza ao cuidado − entenda-se na acepção de vigilância e não na de obrigação efectiva de limpar, evidentemente − ao próprio procurador. Que, aliás, em boa verdade, este zelo higiénico podia não significar apenas uma generosa intenção a favor da comodidade e saúde dos encarcerados, mas uma providência destinada principalmente a preservar a Domus Municipalis de indesejáveis pestilências. Por uma ou outra razão, a medida aproveitaria a ambas as partes e esse facto é que importa agora assinalar.

Um pormenor que mereceu franca condenação foi a existência de alçapões para a entrada dos presos nas enxovias. Em algumas cadeias, como as de Oliveira do Bairro, Anadia e Angeja entravam nos cárceres, descendo por esses alçapões.

No relatório propõe-se, como mais prática e humana, a sua substituição por pequenas portas, de acesso directo às clausuras.

Nas localidades onde os edifícios das cadeias se mostravam em estado de mais acentuada ruína recorria-se à solução de levar os presos para casas particulares e conservá-los aí «até serem transportados para cadeias seguras, agrilhoados / 282 / com hum cadeame de ferro chumbado a hua grande pedra, ou seguro a hum g.de tronco de madr.ª firmado no meio da caza, que também serve de suster a m.ma caza.» Para o transporte dos presos, por seu turno, adoptava-se também uma prática reprovável, pois «observou mais a Comifsão que na maior parte dos Districtos indicados se conserva o cruel systema de serem os presos conduzidos às cadêas amaneatados com cordas por falta de algemas.»

A propósito de correntes e cadeames, vejamos por transcrição, o que era a cadeia de Sorães e qual era ali o regime prisional: «A Cadeia desta villa he hũa caza terrea sem forro, de 20 a 25 palmos de vão, e hũa fresta de meio palmo, com hũa pedra de mó, com hũa corrente xumbada, à q.l se prendem hum e dois presos pelo pé, q pelo seu comprimento vão para o Sol fora da porta: está em sitio despovoado, aonde não tem mais q dois vesinhos»... Boa índole seria a desses presos que, por um lado, não se evadiam e, por outro, aceitavam, humildemente, essa estranha condição que suscita a lembrança de algum cão preso à casota!

Da cadeia do Préstimo há notícia não só de um grilhão «imbutido em huma pedra semilhante a de hum moinho, e servio de lavrar ao pe do desgraçado q alli he prezo», o que é comum, mas de outros instrumentos mais antipáticos, que enchiam «huma boa canastra de vindima» e entre os quais «ferros de lançar ao pescozo, e outros m.to antigos», felizmente e, por bom sinal, inutilizados, «por estarem a hum canto da caza sobre a terra, e chuver nella».

O número de cadeias foi considerado excessivo para as necessidades e inútil a manutenção e reconstrução da maioria delas. De entre as mais arruinadas preconizou-se, em especial, a reconstrução da de Albergaria-a-Velha, por se encontrar situada na estrada Lisboa ao Porto, a meio caminho entre o Sardão e Bemposta. As povoações viviam, aliás, «em penúria» e sem possibilidades financeiras para obras daquela natureza, ainda mesmo de pequena monta. Apenas se afigurava viável um único meio: serem satisfeitos os encargos pelos senhorios ou donatários dos respectivos distritos. Nem este, porém, seria praticável, pois, como se verifica a respeito de Vagos, a donatária, na altura a marquesa de Vagos, quando a Câmara, que havia custeado sempre os pequenos reparos, quatro anos antes, comunicara àquela titular que a cadeia se encontrava em mau estado, ela respondeu «q como se lhe tinha tirado a posse de confirmar as justiças; em esta lhe sendo restituida, cuidaria em compor a cadeia».

Os restantes senhorios que encontramos mencionados são os seguintes: Assequins, conde da Ponte; Aguada de Cima, Oliveira do Bairro, Vouga e Sôza, duquesa de Lafões, D. Ana de Bragança; Avelãs do Caminho, Ferreiros e Ílhavo, / 283 / D. José Lobo da Silveira; Couto de Mogofores e Couto de Paredes, bispo e cabido de Coimbra; Sangalhos, freiras de Santa Clara, de Coimbra; Trofa, Pedro de Melo Brinco, embaixador em Roma; Serém, herdeiros do desembargador do Paço Alexandre José Ferreira Castela; Pinheiro, Angeja e Bemposta, marquês de Angeja; Frossos, comendador de Malta; Estarreja, freiras de Arouca; Albergaria-a-Velha, freiras de Jesus, de Aveiro; Couto de Esteves, bispo de Viseu e marquês de Marialva; Fermedo. Francisco Peixoto Coelho, do Porto; Préstimo, barão de Quintela; e Anadia, ao que parece, a duquesa de Alverca.

No que respeita «á limpeza e profumes (sic) nas enxovias, alias de importancia para melhor comodid.e e subsistencia dos presos, por via da regra se acha em tutal abandono e esquecimento pelos carcereiros». A comissão verberou esse desmazelo, aliás sem apreciável resultado, pois parte deles continuou «no tutal esquecimento do seu dever». No que se referia «ao tratamento dos presos, estes se não mostravão escandalizados à Commifsão».

Para encerrar esta resenha vejamos como organizou os seus trabalhos a comissão, e qual as causas alegadas para justificar as demoras na conclusão da sua tarefa.

O serviço foi dividido, encarregando-se os comissionados que residiam mais próximo uns dos outros de visitar as cadeias das respectivas redondezas. Além da comodidade que daí advinha, evitavam, assim, na medida do possível, «o incommodo das Camaras e Povos no arranjo para os aquartelamentos principalm.e das noutes para esta commifsaõ quando toda andafse reunida, por faltas de estalagens aonde se recolhese, e mais ainda para emprovizadam.e serem visitadas as cadeias e se não dar lugar a ser acautellada qualquer omifsaõ q houvesse da parte dos Carcereiros e Justiças».

A demora, oficialmente, teria sido devida sobretudo «à tenebrosa tempestade do mês de dezbr.º proximo pafsado com a qual ficarão os caminhos invadiaveis já pelos grd.es fossos, e ribanças q às estradas acudirão, já pelas faltas de Pontes com q ficarão os rios». Claro que esta razão e a das distâncias, também apresentada, embora ambas fossem verdadeiras, não representavam as causas principais da delonga. Efectivamente o que sucedeu foi alguns dos membros da comissão pertencerem ao género, que mestre AQUlLINO RIBEIRO haveria de crismar, mais tarde, de «estassemarimbandistas». E foi o cabo dos trabalhos para que estes se desempenhassem das vistorias que lhes haviam sido cometidas. Aqueles tempos também já não iam muito para maçadas.

EDUARDO CERQUEIRA

_________________________________________

(1)Segundo a tradição, a cadeia de Aveiro foi estreada pelo próprio construtor do edifício, o mestre Manuel de Pinho, natural de Ovar, que se estabeleceu na cidade e deixou numerosa prole.

Página anterior

Índice

Página seguinte