O
DOUTO professor da Universidade de Coimbra, Doutor AMORIM GIRÃO, na
sua monografia «Viseu», 1925, estuda a estrada romana que daquela cidade
vinha às Bemfeitas e daí seguia, pelo vale de Lafões, em direcção a
Águeda, «a entroncar com a via militar de Aemínio a Cale» (págs. 14 e
segs.). − Documentos irrefutáveis desta estrada encontrou-os o activo
investigador até Bemfeitas, e são quatro marcos miliários, dois em
Reigoso e dois nas Bemfeitas, além de pedaços de calçada ainda perfeita.
A leitura das respectivas inscrições, que nos dá, é a seguinte, seguida
da tradução:
I M P. CAES
AR NVMEREA
P. F. INVICTO A V G. P M
T R P CONS P. P.
O C M. P. XXVIII
Ao imperador Cesar Numereano, pio, feliz, invencível, augusto, pontífice
máximo, tribuno do povo, cônsul, pai da pátria, procônsul, − milhas 28 −
CAESARI
DIVI CONSTAN
TII FlLIO
A Caesar filho do divino Constâncio.
E os dois das Bemfeitas:
I M P.
CAES:
FL. VAL
CONSTANTIO
P. FIM
A V G.
M. P.
XXVI
/
277 /
Ao imperador Cesar Flávio, Valéria, Constância, pio,
feliz, invencível, augusto, − milhas XXVI −
I M P. CAESAR D I U I
SEVERI PII FIL. DIVI
MARCI ANTONINl NEP DIVI
ANTONINI PII PRONEP DIVI
ADRIANI ABNEP DIVI TRAJANI
PART ET DIVI NERVAE ADNEP
M. AVRELlVS ANTONIUS
PIVS FELIX AVG PART MAX III GERM. MX PM TRB ...XX
IMP. III COS III P
PROCOS FEClT MP XXXI.
Marco Aurélio Pio, filho do divino Severo Pio, neto do divino Marco
Antonino, bisneto do divino Antonino Pio, terceiro neto do divino
Adriano, quarto neto do divino Trajano pártico do divino Nerva, feliz, augusto três vezes pártico Máximo Germânico máximo, pontífice máximo, investido na tribunícia
potestade vinte vezes, saudado imperador três vezes, cônsul, pai da
pátria, procônsul, milhas XXXI.
Comecemos por este miliário ainda perfeito e continuando,
lamentavelmente, a servir de esteio num pátio das Bemfeitas. Quem era
este Marco Aurélio? Será aquele imperador Marco Aurélio, o prudente e
bondoso marido de
Faustina, falecido em 182 D. C.? Não. Este Marco Aurélio era filho do
Sétimo Severo, por cuja morte governou o Império com seu irmão Geta.
Chamava-se Marco Aurélio Antonino Bassiano, por alcunha o Caracala.
Morreu em 217.
Há uma outra inscrição miliária deste imperador referida por
ANDRÉ DE
RESENDE e publicada por Frei BERNARDO DE BRITO, na Monarquia Lusitana,
aparecida na estrada entre Alcácer do Sal e Évora (Mon. Lus., vol. 5,
pág. 349). Para se ver a semelhança entre a inscrição das Bemfeitas e
esta, aqui a transcrevo:
I M P. CAES. DIVI
SEPTl : : SEVERI PIl
ARAB. APLAS. PARTHI
CL. MAX. BRIT. : AX. F.
DIVI M. ANTON. PlI
GERM. SARM. NEP.
DIVI ANTONINI PII PRONET
DIVI HADR. : ABNEP.
DIVl TRAIANI. PARTHIC.
E DIVI NERV : : ADNEP.
M. AVR; ANTONINI.
P. F. AVG. PAR. MAX.
BRI : : MAX. GERM. MAX.
PATER MILITVM. TRIB.
POT. XX. IMP. III COS. IIII
P. P. PROC. REST.
/
278 /
Imperador Marco Aurélio, Antonino, Pio, Venturoso, grão vencedor dos
Partos, grão vencedor dos Ingleses, grão vencedor dos Alemães, pai dos
soldados, filho do Imperador
Séptimo Severo, grão vencedor dos Árabes, dos Partos, dos
Ingleses, neto do Soberano Antonino Pio, vencedor dos Alemães, e dos
Sarmatas, bisneto do Soberano Antonino Pio, trineto do excelente
Adriano, quarto neto do sublime Trajano, vencedor dos Partos, quinto
neto do soberano Nerva.
Na inscrição das Bemfeitas falta o título de vencedor máximo dos
Bretões e isto significa que esta inscrição é anterior à ida de Caracala para a Inglaterra. E se ele foi morto em 219, a data da inscrição
das Bemfeitas deve estar entre 212 em que começou a reinar, e 218 em que
foi para a Inglaterra.
A inscrição de Reigoso dedicada ao Imperador Numereano
é do mesmo século, mas muito posterior à anterior,
pois este imperador foi assassinado em 284 depois de um governo de nove
meses apenas. Desta maneira a inscrição é deste ano de 284 ou fins de
283.
O marco em honra de Flávio Valéria Constância Claro, deve ser de 305 ou
306, pois a inscrição chama-lhe Augusto,
e Claro só tomou este título nos últimos quinze meses antes da sua morte
em 306.
Todos os monumentos miliários são portanto do século
lII e primeiros anos
do IV. Além destes marcos, outros vestígios seguros se encontram na
velha estrada romana: são os de calçada ainda bem conservada. A Poente
das Bemfeitas, a calçada subsiste ainda em larga extensão e na sua
primitiva largura. Pela orientação que traz, não há dúvida de que vinha
à Ereira e Talhadas. Acima da Ereira a calçada desapareceu, mas no
corte do caminho pode ainda reconhecer-se o lugar em que assentou, na
mesma largura da subsistente. É possível mesmo que em alguns lugares a
calçada nunca tenha existido, por desnecessária, visto o leito já ser
rocha firme.
O Sr. Doutor AMORIM GIRÃO, na falta de vestígios seguros, imaginou que
a estrada seguiria o Vale do Alfusqueiro
para vir entroncar em Águeda com a estrada mais larga de
Aemínio a Cale. Creio poder afirmar, com alguma segurança, que não era
este o rumo desta estrada, mas sim a encosta direita do rio do Beco,
cujo nome antigo me não foi possível descobrir. Na verdade, este é o
caminho mais fácil e mais curto para atingir aquela estrada, não em
Águeda, mas precisamente no MarneI. A Sudoeste das Talhadas há uma pequena aldeia chamada Doninhas que foi, há umas
centenas de anos, sede da freguesia. Da sua velha igreja estão ainda
de pé as paredes da frente e laterais, feitas de pedra moar esquadrada.
Não andará longe da verdade quem lhe atribuir a construção ao século XI
ou princípios do
/
279 /
século XII. Ao lado, no pequeno adro, as oliveiras guardam as ossadas
das gerações de há muitos séculos, e pias baptismais em granito, de
pequenas dimensões, com a base e coluna enterradas na terra mole do
adro, vão atestando às gerações que passam que eram cristãos os que ali
jazem.
Dava este templozinho para a via pública, para a calçada romana, como
lhe chama o povo. E razão tem para o fazer porque a velha calçada lá
está ainda, precisamente na mesma largura da das Bemfeitas, a mostrar
que era por ali que passava a velha estrada de Viseu. É em Doninhas
que o rio Marnel tem a sua nascente e é precisamente logo abaixo desta
que a estrada o atravessa para seguir por encosta suave e vir apanhar a
vertente direita do rio Beco, que nasce pouco acima da Macida da Serra,
Não há, a partir de Doninhas, outro caminho senão este para a saída
daquela estrada romana. Não há nela mais calçadas ou vestígios delas,
mas o corte fundo feito pelo rolar das rodas através dos séculos,
deixou
em muitos pontos, mais à superfície, restos do tabuleiro que
serviu de leito à estrada antiga. A Poente da Macida da Serra a estrada
abeirava-se do rio; tão fundos, porém, se tornaram os cortes, que o
caminho ficou intransitável e o povo viu-se forçado a subir e descer a
encosta para evitar um vale lateral, fundo. Em seguida, a estrada
galgava sem
dificuldade a altura para passar à esquerda da Moita e vir
ao Beco, a Carvalhal e ao MarneI. Da Moita ao Cabeço do
MarneI a estrada seguia quase em plano, pois numa extensão de
aproximadamente oito quilómetros não desce mais de cem metros.
As camionetas, depois de ligeiros consertos e de um desvio subindo a
encosta, para evitar o trecho em mau estado, já vão às Talhadas, e eu
posso assegurar que também lá pode chegar um automóvel, sem grande
incómodo. A velha via romana, que durante séculos foi trilhada pelas
legiões que naquela parte da Lusitânia guardavam o poder de Roma, está a
aconselhar uma nova estrada para Viseu pelas Talhadas, ainda que
isso pese à minha Arrancada, que a desejava ver construída por Adosferreiros.
Esta estrada romana que
ligava Viseu a Vaca, era uma estrada de 2.ª
ordem, mais estreita que a de Lisboa a Braga, pois tem apenas
aproximadamente três metros, A sua construção é muito posterior à daquela. Se não foi construída no século IlI,
por aqueles imperadores aos quais foram dedicados os marcos miliários de Reigoso
e Bemfeitas, é bem possível que
estes a tenham completado ou melhorado na zona em que eles apareceram.
Também a natureza da construção é diferente das primitivas, pois a
calçada está assente directamente sobre o terreno firme, isto é, a
summa crusta (calçada) assentava sobre o statumen sem as camadas intermediárias
/
280 / roderatio e
nucleus. Até Doninhas, a pedra é abundante
(granito). Nesta localidade a calçada muda de aspecto, porque também a
pedra é diferente, sendo as lájeas mais pequenas e algumas de cor preta.
A Poente, as montanhas são pobres de pedras e a calçada deveria ter sido
feita com material trazido da região granítica que termina junto das
Talhadas. A minha observação mostrou-me que em todas as regiões pobres
de pedra as calçadas romanas desaparecem inteiramente, sem dúvida porque o homem no correr do tempo as
foi aproveitando para as suas construções.
Ao contrário, nas regiões graníticas, não só se encontram ainda calçadas
romanas perfeitas, como o hábito e forma de as construir se conservaram
através dos tempos, sendo abundantíssimas nalgumas regiões. A diferença
entre estas calçadas e as romanas está na imperfeição e variabilidade da
largura, que nos romanos era certa e constante.
Só me ocupo desta estrada a Poente de Reigoso, visto estarem estudados
todos os vestígios dela daí a Viseu, segundo creio.
E a propósito desta estrada seja-me permitido dizer alguma coisa sobre
a etimologia destas palavras Bemfeitas e Talhadas. É campo
muito alheio à minha alçada e às minhas possibilidades, mas se com esta
invasão bem não consigo, também mal não faço. Penso que não pode haver
dúvida de que este topónimo Bemfeitas deriva da forma adjectiva verbal
benefactas do
latim benefacere. E este verbo traduz a acção perfeita do homem na
elaboração de qualquer objecto. CÍCERO usa este verbo como outros: «pulcherrime
facere optime facere», para mostrar a perfeição em grau superlativo do
manum factum, isto é do que é feito pela mão do homem.
Se assim é, que coisas bem feitas fez o homem naquele local para que
Bemfeitas lhe ficasse por nome? Subindo a Serra pelo lado norte desta
aldeia, há na encosta, a um quilómetro mais ou menos dela, um lugar a
que o povo chama Ferraduras Pintadas. Vem este nome do facto de haver
ali uma face de rocha à superfície da terra e voltada em leve inclinação
para o Nascente, na qual se vêem ainda umas insculturas de origem
desconhecida. O povo diz que aquilo são coisas de mouras, de tempos
muito antigos. Isto contradiz alguns que julgam tratar-se de meros sinais
feitos pelos pastores. É possível que já muito se tenha falado deste petrógrifo e de outros semelhantes que há perto do lugar. Nada li. A
impressão que transmito não tem outro apoio que não seja o que me vem da
observação dIrecta. Penso que se trata de uma estação de arte rupestre
pré-histórica, de uma página de feitos daquelas épocas escuras onde ainda
não foi possível fazer penetrar a luz da história. É pequena a
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281 /
superfície insculpida e poucos os petrógrifos. À esquerda,
um circulo irregular com 0,15 a 0,20 de diâmetro com cruz interna. Ao
centro, um círculo menor com covinha central; no lado direito quatro
grupos de cinco covinhas formando pentágono. A irregularidade da pequena
circunferência do centro e da respectiva covinha dá-lhe forma semelhante
a uma ferradura e daí o nome de Ferraduras Pintadas. Ao lado desta pedra
é o monte eriçado de pedras que afloram como pequeninos torreões. Os
mais altos pouco excederão de um metro. Pois todos eles têm na parte
superior e alguns até lateralmente covas de 0,10 a 0,20 de diâmetro e
profundidade variável de 0,05 a 0,15 aproximadamente. Olhando estas
covinhas logo nos acode esta pergunta: são obra do homem ou da natureza?
O granito é duro e de constituição
uniforme. Não será fácil explicar como a chuva e o vento tenham podido
fazer aquele trabalho. Parece ter havido mão do homem. Para quê? Não
podemos adivinhá-lo, mas, se pudéssemos ler aqueles petrógrifos, talvez
eles nos revelassem algum aspecto das crenças daqueles povos, caminhando
a passos de século para os primórdios da civilização. Petras benefactas
− Bemfeitas.
Também as Talhadas receberam o nome daqueles dois monólitos gigantes
pelo meio dos quais passa a estrada actual e passou outrora a romana.
Estes dois blocos são as
metades de um todo, que, rolando da maior altura, partiu-se em partes
iguais, uma das quais, revoluteando, veio prostrar-se a alguns metros de
distância com a face voltada para a companheira, mas de base invertida.
E foram estas pedras assim talhadas que deram o nome à terra. Quando?
Donde
promana o verbo talhar? De talere? Quando apontou no linguajar português? Um desafio aos filólogos.
AUGUSTO SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |