No decorrer dos tempos, têm surgido dúvidas e pleitos, por causa das
demarcações entre Esmoriz e as freguesias vizinhas.
Esmoriz confina pelo norte com Paramos, pelo
sul com Cortegaça, e pelo nascente com Riomeão.
Quero, hoje, referir-me, apenas, às contendas havidas
entre Esmoriz e Cortegaça.
Os marcos da praia serão o maior pomo da discórdia, já porque as
delimitações entre as freguesias, em questão, não correm sempre em linha
recta, já porque o marco da praia era subterrado, de quando em vez,
pelas dunas, ou até derrubado, e os pescadores, de boa ou má fé, não
dizimavam do pescado na igreja, em cuja praia tiravam as redes, levando,
com isso, o pároco lesado a defender os seus direitos.
Quando surgiria o primeiro conflito? Difícil será dizê-lo. Já aí por
1617, ou até uns anos atrás(1), se tinham levantado dúvidas entre os
Abades Baltazar Jorge, de Esmoriz, e Manuel Álvares, de Cortegaça, mas
tudo foi derimido pelos louvados.
Novo conflito se esboçou, por cerca de 1633, «sobre o
dizimo de hũ copioso lanço de robalos». Procedeu-se, porém,
a uma louvação e, de comum acordo, o Pároco de Esmoriz,
[VoI. XVI -
N.º 64 - 1950]
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João de Pinho, e o de Cortegaça, o Licenciado Pantaleão da Costa e (ou
de) Vasconcelos, mandaram pôr um marco no areal.
Sucedeu, porém, que este marco «se tirou ou o gastou
o tempo», ou, como é também de presumir, o cobriram as dunas.
Sentindo-se lesado nos dízimos do pescado, o Abade de Esmoriz, João de
Pinho, apresentou em 1657 no Auditório do Vigário Geral, o Cónego Dr.
João Rodrigues de Araújo, um libelo contra o de Cortegaça, Miguel
Rodrigues. Em 11 de Janeiro de 1663 o Vigário Geral mandou proceder a
uma vistoria, efectuada na sua presença, em 21 de Outubro do ano
seguinte. Todos de acordo até ao marco das gandras do rio de Carriçal.
Avançando até ao outeiro da Cantareira, que dividia as duas freguesias,
não chegaram a entender-se os dois Abades na demarcação daí para o mar.
Sustentava o de Esmoriz «que havia de correr algum tanto ao Sul, e o
R. Ab.e de Corteg.ª ao Norte». É que, segundo o Abade João de Pinho,
«vai a demarcação das ditas Igrejas [de Esmoriz e de Cortegaça], sempre carregando a parte do Sul, como são as mais demarcaçoens da praia do mar
das Igrejas circumvisinhas do Norte para o Sul».
Vendo que as partes interessadas não chegavam a uma solução, nomeou o
Vigário Geral dois louvados de cada freguesia pleiteante, para derimir
a contenda, concordando estes em que «a devizão das dittas Freg.as pella
p.te do mar era na Estremeira que estava junto
ao mar em alto da Areia
que de presente está entre os outr.os
(2) dos faxos de Cortegaça e
Esmoriz, e ahi em presença de todos meterão hũa pedra lousa, que ficava
servindo de marco p.ª comforme a elle direito ao mar se pagarem os disimos
da p.te do Sul a Freg.ª de Corteg.ª e do Norte a de Esmoriz; e que dahi p.ª terra lhe
(3) paresia q hia rodiando, e emdireitando aos maismarcos passando por este lugar
(4) donde se fes este termo e que esta
lhe
(3) paresia a verdadr.ª demarcação, que podião fazer, e assim o
entendião em suas consiençias, e juram.to q recebido tinhão»
Os Párocos aceitaram a demarcação
que foi julgada por sentença,
proferida pelo Vigário Geral em 6 de Novembro de 1664.(5)
Meio século após esta sentença, surgiu novo conflito de
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direitos. É agora a vez do Pároco de Cortegaça se queixar do de Esmoriz.
Eis a questão: como o marco da praia desaparecesse sob as dunas e os
pescadores, por vezes, fossem
entregar ao Abade de Esmoriz o dízimo do pescado que pertencia ao de
Cortegaça, intentou este, o P.e Alexandre Gomes Ferreira, uma acção no
Tribunal Eclesiástico, em 1722, contra o P.e António Nunes de Aguiar.
É,
precisamente, a repetição do pleito julgado em 1664. O Abade de
Esmoriz, contestando o libelo, dizia que se devia pôr, à custa de ambas
as partes, um marco entre os outeiros dos fachos de Cortegaça e Esmoriz,
por ser o lugar onde estava o antigo, «sempre carregando a parte do Sul
como hião as mais demarcaçois da Praya do Mar das Igreias circumvezinhas».
E o mais que dizia o Autor quanto aos marcos de terra, não vinha à
questão, por existirem e não ser preciso louvação.
Faleceu o P.e António Nunes de Aguiar, sem ver a questão terminada,
sucedendo-lhe na paroquialidade D. Bento da Assunção Pimenta, que
requereu comissão para que o Abade de Silvalde, o P.e Tomás Pinto Machado
de Magalhães, desse juramento aos louvados para procederem à demarcação.
Autorizado pelo despacho: «Como pede não havendo duuida algũa das
partes», procedeu-se, em 28 de Setembro de 1724, à demarcação, pondo os
louvados «hum Marco de pedra de lousa aonde lhes pareceo estaria pouco
mais ou menos o marco antigo e declararão que o dito Marco emdireitaua
ao Mar pella parte do Sul e por ahi julgauam deuia ser a dita deuizam da
praya de ambas as freguezias».
O Dr. Manuel Barbosa que servia de Vigário Geral, pronunciou, em 24 de
Janeiro de 1725, a sentença: «Julgo o termo por sentença Cumprasse como
nelle se contem; e paguem os autos», a qual, no dia seguinte,
foi
proferida em audiência pública, pondo fim à contenda
(6).
Novo conflito, agora já não por causa do marco da Praia, mas pelo lugar
do Monte, que extrema as duas freguesias. Aconteceu que o tanoeiro José
Fernandes de Oliveira construiu uma casa no dito lugar do Monte, em
terreno que dizimava à igreja de Cortegaça. Levantaram-se dúvidas sobre
a freguesia a que pertenceria a nova casa; então, para evitar demandas,
os dois Abades, de comum acordo, D. Bento da Assunção Pimenta, de
Esmoriz, e João Gomes Moreira, de Cortegaça, requereram ao Vigário
Geral, o Dr. João Ramos,
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que mandasse proceder a uma vistoria e julgasse a questão por sentença.
No dia 9 de Outubro de 1747, o Vigário Geral e o escrivão Luís da Silva
Guimarães, juntamente com dois louvados e as partes, apareceram no local
para proceder a uma vistoria. Estudado o caso pelos louvados, «se achou
que a devizão destas freguezias de Cortegaça e esmoris neste sitio se
indireitava do marco do monte ao do Fajó».
Verificou-se, então, que o Abade de Cortegaça dizimava de três cortinhas
que tinham alguma terra já dentro dos limites de Esmoriz; que tinha como
da sua freguesia duas casas que, de facto, não lhe pertenciam; que José
Fernandes de Oliveira dizimava, indevidamente, em Cortegaça, e que a
nova casa, em questão, estava toda construída em terreno de Esmoriz.
Em audiência pública de 6 de Novembro do dito ano de 1747, julgou o
Vigário Geral, por sentença, que a prescrição e o dizimar em Cortegaça
não eram razões bastantes, como invocava este Pároco, para
considerar da
sua igreja tais terrenos e casas, mas que pertenciam a Esmoriz
(7).
E assim terminou mais uma questão. Não viveram,
porém, as duas freguesias muito tempo em paz. Novo litígio se moveu em 1787 entre o Cónego Regular D. Ildefonso da Madre de Deus Carneiro e (ou
de) Sá, Abade de Cortegaça, e o Dr. André António Pinto da Cunha, Abade
de Esmoriz. Sustentava aquele que, segundo o Tombo da Comenda de Riomeão,
feito em 1630
(8) «se posera hum
marco na mamoa do Caminho de Cortegaça, dizendose expresamente no Tombo,
que neste marco acaba a Demarcação, que a Comenda tem com Cortegaça», e
que «citado o Abade de Esmoris se posera o marco junto a estrada de
Ovar, alem da Mamoa do Caminho de Cortegaça, aonde principia a
demarcação, que a Comenda tem com Esmoris».
Para apoiar a sua pretensão, aduzia a sentença de 1664, a que acima nos
referimos, e segundo a qual «a comua partilha, e antiga q de tempo
antigo se dizia por onde partião entre si as freguezias era no monte, e
alto dele, que estava junto do lugar de Cardielos: e no alto do dito
Monte estava hum
Marco da Comenda de Riomeão».
Este marco, segundo o seu pensamento, é o que falta na Mamoa do caminho
de Cortegaça que identifica com a chamada, então, Mamoa de Cima, um
pouco ao sul do marco de
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Lagoelas, e requer que seja reposto nesse lugar, apendoando-se, depois,
até à praia
(9).
Desta sorte, tocar-lhe-ia, como pretendia, uma gandra ou «monte inculto,
e despovoado», entre os marcos de Lagoelas e de Cardielos.
O requerimento, porém, de D. Ildefonso labora em contradição, pois diz
que as duas freguesias se dividem por meio da dita gandra e acrescenta,
em seguida, que Esmoriz começa do marco de Lagoelas para o norte... Não
reparava que a freguesia de «Cortegaça está dividida de todos os lados
com huns vaIados, q tem mais de 80 añ. a que chamão Partilhas do Coutto
[...]» e que «dentro daquelles vallados a q chamão as partilhas
(10) do Coutto, sempre de tres, em tres
añ reparthião os matos, e touregas, por
ordem da just.ª do mesmo Coutto», sem nunca avançar para o norte do
marco de Cardielos
(11). Demais, os baldios de Esmoriz não estavam
tapados.
Acresce, ainda, que «costuma a just.ª daquelle Coutto e
Freg.ª fazer
correição, e examinar se estão os dittos vallos tapados, e nunqua andou
o juiz, e seus companr.os por fora dos dittos marcos, que estão juntos
aos vallos, tanto da p.te de Maceda, como de Esmoriz». Por outro lado,
aí por 1783,
«os moradores, e Freg.ª [de Esmoriz] com o juiz» venderam
um pedaço da gandra em questão... e nem o Abade, nem a Justiça do
Couto de Cortegaça os inquietaram. Só em 1787 ou 1788 é que o Abade
se
lembrou de que a gandra era da sua freguesia... A vistoria, por ele
requerida, efectuou-se em 24
(12) de Fevereiro de 1791, sendo presentes o
Dr. Fernando José Marques Soares, Juiz do Tombo da Comenda de Riomeão,
com cinco louvados de Esmoriz, Cortegaça e Riomeão. Foi continuada e terminada apenas em 9 de Maio com
os louvados Alferes Domingos Fernandes Valente da Beira e Manuel Guedes
Barbosa, senão considerado o marco da Mamoa do caminho de Cortegaça,
isto é, o marco do Monte
ou marco de Cardielos, como termo divisório das duas freguesias em
litígio
(13).
A última página sobre a demarcação de Esmoriz e Cortegaça foi escrita pelas Juntas de Paróquia de ambas as freguesias
/
246 / em 26 de Dezembro de 1910. «Resolveram terminar a questão por
mutuo accordo ficando os limites de futuro a serem constituidos por
linhas rectas comprehendidas entre o marco de Cardiellos e da Camboa,
Camboa e Feijô, Feijô e Gandra, do Rio do Carriçal, Rio do Carriçal e
Rua Marques Reis, seguindo depois até ao mar por meio della abaixo»
(14).
*
* *
Disse que em 26 de Dezembro de 1910 se tinha escrito a última página
sobre a demarcação das duas freguesias. É caso para perguntar se, de
facto, será a última... Numa coisa, parece, se podem orgulhar os dois
povos: é que, não obstante tantas rivalidades, discórdias e pleitos,
sempre se portaram irmãmente, sem haver efusão de sangue.
E aos Párocos, defendendo o território do seu benefício com direitos e
obrigações, a cuja testa foram colocados pelos Prelados, que devemos a
delimitação das duas freguesias. Se não pugnassem pelos seus direitos,
levando até por vezes, como acima se mostrou, o caso ao Tribunal
Eclesiástico, não teríamos hoje resolvido este importante problema.
Foi lutando pelos direitos da sua igreja, que a legislação civil então
respeitava, que o Abade de Esmoriz D. Bento da Assunção Pimenta pôde
entrar na acção judicial, ao lado dos seus fregueses, contra o déspota
Morgado de Paramos, Aires Pinto Henriques Freire de Albuquerque. Doutro
modo, talvez nunca eles cantassem vitória.
Nem se pense que o problema da delimitação do território surgiu apenas
para Esmoriz e Cortegaça; também outras freguesias, algumas até
vizinhas, viram-se a braços com ele, p. ex.: Paramos, Riomeão, Arada,
Ovar
(15).
Dez.º de 1950.
P.e AIRES AMORIM |