Alexandre do Amaral, Cantiga de Santa Maria, Vol. XVI, pp. 227-228.

CANTIGA DE SANTA MARIA (1)

«Apostos miragres faz todavia
por nos, et fremosos, Santa Maria.»
             Afonso X, o Sábio


Na minha aldeia não se reza essa oração.
Ouvi-a, ainda menino, a vez primeira,
Na pequena cidade prazenteira
De Frei Pantaleão:
O vento já despira os parques e os quintais
E caía uma chuva persistente,
Enchendo de água as ruas e os canais
Da chamada Veneza do Ocidente...
Saíam das escolas revoadas
De criancinhas, de pezitos nus,
A rir, a chapinhar, deliciadas,
Nas poças da Vera-Cruz.


E foi então
Que no tom arrastado do pregão
Com que, na gare, a eterna vendedeira
Apregoava numa voz dolente
Quer comprar ovos moles, ó mexilhão!
Ouvi cantar a vez primeira,
Sem devoção,
A ingénua prece, à miudagem inocente:
− Senhora da Conceição,
Manda sol, e chuva não!

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...

Esta manhã, ao despertar,
Ouvindo a chuva fustigar,
Puxada a vento, os vidros da janela,
Entristecido, sem pensar,
Ergui as mãos, pus-me a rezar
Não sei porquê − mas talvez Ela
Saiba melhor
Uma ansiosa Ave-Maria
Que por estranha fantasia
Do coração pecador,
Me fez cantar na memória
A velha jaculatória
E concluir com fervor:
Senhora da Conceição,
Manda sol, e chuva não!

 

E logo um sol de Verão de S. Martinho
Varreu, secou os céus, devagarinho...

Assim Nossa Senhora
− A Única que o é −
Exalça quem lhe implora
Um milagre, com fé.

19-XI-1950

ALEXANDRE DO AMARAL

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(1)Honra-nos com este delicioso inédito, inspirado em reminiscências de quando, menino e moço, frequentava o Liceu de Aveiro, o nosso prezado Colega e Amigo Dr. Alexandre do Amaral, que também durante anos exerceu o ensino em o nosso Liceu. J. T.

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