B. Xavier de Magalhães, Aventuras de um aveirense ilustre, Vol. XV, pp. 227-240.

AVENTURAS DE UM

AVEIRENSE ILUSTRE

É VELHO o pendor de portugueses para a vida aventurosa. Não falando dos homens que se prestaram, em tempos de D. João lI, a desvendar o mistério do Prestes João − os célebres Pero da Covilhã e Afonso de Paiva, nunca mais regressados a Portugal −; nem de FERNÃO MENDES PINTO, o da «Peregrinação», muitas vezes riquíssimo e outras tantas mergulhado em extrema miséria; nem de outros viajantes do século XVI, que como MENDES PINTO deixaram notícia escrita de suas andanças através de regiões inexploradas por europeus; nem dos «bandeirantes», desvendadores do sertão brasileiro; nem dos impertérritos exploradores da selva africana, cuja audácia e patriotismo nunca é demais encarecer, − muitos outros aventureiros, desconhecidos e obscuros, atestaram, através dos tempos, que nos gira nas veias algum do fogo que  atirou os antigos para essas viagens cheias de perigos, na ânsia, nunca satisfeita, de conhecer o desconhecido, ou na mira de riquezas. / 228 /

Na nossa literatura moderna, acham-se fixados dois curiosos tipos de Português: o Alpedrinha, de EÇA DE QUEIRÓS, e o Sr. Ventura, de MIGUEL TORGA.

*

Aveiro também teve os seus pioneiros da aventura; não deu, porém, à vida aventurosa somente homens do mar ou aquela destemida e heróica Antónia Rodrigues, cujas façanhas tantos escritores consideraram e acerca de quem o Sr. Dr. ANTÓNIO CRISTO, há pouco publicou inteligente e substancial estudo(1). Em tempos mais próximos de nós, se bem que já distanciados um século completo, aqui nasceu um homem que sem necessidade se arriscou à viagem do Porto à Austrália, num simples brigue; que ali se manteve, em situação mais ou menos precária, pelo menos três anos, e que da sua aventura deixou dois manuscritos curiosíssimos: o primeiro, espécie de relatório da viagem; o segundo, a cópia de várias cartas dirigidas do seu voluntário desterro a pessoas de família, a quem transmitira o que ia sofrendo e vendo. Trata-se de BERNARDO XAVIER DE MAGALHÃES, membro de uma das mais ilustres famílias de Aveiro.

BERNARDO XAVIER DE MAGALHÃES era filho de Luís Rodrigues de MeIo, círurgião-mor do regimento de milícias de Aveiro, e de D. Maria Clementina Xavier de Magalhães(2). Nasceu no dia 23 de Outubro de 1830. Era irmão do Dr. Bento Rodrigues Xavier de Magalhães, advogado, a quem se dirigem as referidas cartas; de D. Maria Casimira e de D. Ana Augusta Xavier de Magalhães. Cursou algum tempo a Universidade de Coimbra, mas em breve abandonou os estudos. Dado à poesia, já fazia versos aos dezoito anos. Em 1851, publicou no "Campeão do Vouga" a poesia Salineira, de sabor local, que mais tarde, em 1862, deu de novo à estampa no "Distrito de Aveiro", onde também apareceu outra com o título de Saudades da Salineira(3). Deixou ainda outras poesias, umas originais, outras traduções do francês e do inglês.

Partiu do Porto, com destino a Sidney, no dia 23 de Abril de 1853, rapaz, portanto, de vinte e três anos, e esteve na, Austrália pelo menos até 1856.

Regressando a Portugal, foi professor de Francês e de / 229 / Inglês no Liceu de Aveiro, já então instalado no actual edifício, lugar para que foi nomeado em 20 de Abril de 1862. A primeira acta do Conselho Escolar que assinou é de 10 de Julho desse ano, e a última de 23 de Junho de 1879. Da acta de 24 de Novembro deste ano se depreende que no dia 22 fora atacado de paralisia, de que veio a falecer no dia 14 de Abril de 1882.

Casara-se com D. Paula de Faria e Melo, enteada do Dr. Bento Rodrigues Xavier de Magalhães, de quem teve três filhos: José Carlos Faria e Melo Magalhães, falecido muito novo; Paulo de Faria e Melo Magalhães e D. Crisanta de Magalhães.

No trigésimo dia do seu falecimento, realizaram-se exéquias solenes num dos templos da cidade, promovidas por uma comissão de antigos alunos, constituída por José Fernandes Mourão (presidente), Adriano Pereira da Cruz (secretário) e Firmino de Almeida e Brito (tesoureiro), com oração fúnebre do P.e Manuel Rodrigues Vieira, também antigo aluno do finado, então apenas «estudante do 3.º ano do curso teológico e clérigo subdiácono», o qual mais tarde foi professor do Liceu de Aveiro (desde 1890 a 1927) (4).

*

Não se podem explicar cabalmente os motivos que levaram Bernardo Xavier de Magalhães à Austrália. O P.e MANUEL RODRIGUES VIEIRA, na oração fúnebre a que atrás nos referimos, disse: − «... transpoz as fronteiras da patria, cruzou a amplitude azulada do Oceano, envolveu-o a neblina da Grã-Bretanha, e insaciável, resoluto até á temeridade, como um viajante apaixonado que se interna affoito nos seios d'uma floresta virgem, guiado por uma estrella que lhe bradava: − caminha! − que o levava sem dizer-lhe aonde... foi, como um marinheiro de profissão, affeito aos perigos da tormenta, por sobre as ondas crespas d'azul e prata, aportar ás regiões da Austrália, ao regaço d'essa natureza esplendida, pujante / 230 / e ubérrima, onde o ar é depurado e vivificador, onde a verdura se ergue e entrelaça em festões soberbos...».

Não seria, porém, somente o espírito aventuroso a causa do seu afastamento da terra natal. A poesia − A Salineira −, o testemunho de pessoas de avançada idade que consultámos e se lembram muito bem do que, em sua infância, corria acerca da vida de BERNARDO DE MAGALHÃES e ainda o passo da carta 3.ª − («Mulheres!... Alucinaram-me já; hoje rio delas!») − connvencem-nos de que só em desgostos amorosos se poderia achar a explicação do desterro do aveirense, «insaciável» e «resoluto» de natureza.

Mas o que nos interessa é o conhecimento do teor dos citados manuscritos, hoje pertença do Dr. Ferreira Neves. O relatório da «Viagem do Porto a Sydney» incompleto, foi escrito a lápis e ocupa doze páginas, em linguados do tamanho de metade do usual papel almaço branco. A cópia, a tinta, das cartas que BERNARDO DE MAGALHÃES dirigiu à mãe e ao irmão Bento, em folhas do mesmo formato das do relatório, ocupam quarenta e oito páginas. Ao todo, portanto, sessenta páginas.

A descrição da arriscada viagem, com referência às principais peripécias − abalroamento com um navio, tempestades, etc. −; impressões de outros climas; visão do Rio de Janeiro de há um século; notícias da fauna, flora e costumes da Austrália; processos primitivos da extracção do oiro nas minas australianas; referências a coisas e pessoas de Aveiro; afectividade familiar do autor − eis o que, em sua linguagem despretensiosa e sugestiva, ainda hoje pode interessar o leitor.

Aqui reproduzimos os dois manuscritos, tal qual foram redigidos, apenas com a ortografia actualizada. Temos razões para afirmar que, pelo menos em parte, já foram publicados em qualquer jornal local. Não obsta isso, porém, a que registemos no Arquivo os valiosos documentos desse aveirense ilustre, que, além de «professor modelo», foi cidadão notável pela «rigidez de carácter», pela «honestidade», pelo «coração magnânimo e generoso»(5).

Aveiro, 15 de Março de 1949.

JOSÉ TAVARES

/ 231 /

VIAGEM DO PORTO PARA SYDNEY

No dia 23 de Abril de 1853, às 10 horas da noite, largámos a barra do Porto e começámos a navegar com velocidade, cortando as ondas do Atlântico com um lindo dia de Primavera. Assim fomos, continuando, até que no dia 27 passámos junto da ilha da Madeira. Encostado na amurada do navio, olhava eu, saudoso, para essa formosa e engraçada filha do Oceano, que me avivava as lembranças da minha pátria, que eu ia deixando. O brigue cortava as ondas com soberba; e, apesar das nenhumas comodidades do seu interior, contudo a sua figura elegante se desenhava, altiva, sobre a superfície das ondas. No dia seguinte, avistámos a ilha de Palma, nas Canárias, e daqui pusemos a proa a demandar as ilhas de Cabo Verde.

Antes de continuar estes apontamentos, será bom dar uma ideia das pessoas com quem eu tinha a tratar(6) durante esta viagem. Começaremos pelo capitão. Filho de um mestre-escola particular dos arrabaldes do Porto, foi mandado em pequeno para a Baía, a fim de seguir a vida comercial; mas, tendo sido maltratado alguns anos pelo patrão, voltou para Portugal e, aprendendo no Porto alguma coisa de navegação prática, começou a vida do mar, vindo(7) logo para o Rio de Janeiro, donde começou a fazer viagens no tráfico da escravatura. No fim de vinte anos de negreiro, somente tinha uns seis a oito contos de reis; e, voltando então ao Porto, de sociedade não sei com quem comprou uma escuna e foi para Guiné, a negociar. Foi infeliz nas suas especulações; e, pouco depois, tendo vendido a escuna, que naquele tempo se chamava Ligeira e que hoje é brasileira e se chama Despique do Sul, voltou ao Porto e, estando ali um ano, comprou, de sociedade com Floriano José Teixeira de Carvalho, este brigue, que destinaram logo sair fretado para Austrália.

Quanto ao carácter deste homem, vou dizer aquilo que penso. Nas primeiras conversas que se têm com ele, parece um boníssimo e honrado homem; porém, quando se continua por algum tempo, então aquele que tem alguma inteligência conhece logo facilmente o seu carácter: um egoísta / 232 / requintado, a par de um apoucadíssimo entendimento, são as suas principais qualidades. Neste mundo não conhece senão a sua felicidade. Jamais, ou raras vezes fala senão nos seus negócios, passados e presentes. Este homem, além disso, não tem instrução de espécie alguma. Ele somente sabe ler mal, pior escrever, e o seu pouco de náutica. Como é possível que um homem destes, acrescendo a sua acanhadíssima capacidade, tenha colhido alguma instrução prática do mundo? Em vinte anos de navegação negreira, ele nada mais aprendeu do que a desconfiar de todos; foi este o fruto daquele tráfico desmoralizador.

Quanto às suas conversas e disputas, como tem ouvido falar de tudo, tudo confunde, mas pouco entende. É um martírio ouvi-lo.

Eis a figura dele: um homem pequenino, de quarenta anos, figura insignificante e enfezada e que logo à primeira vista denuncia um tipo de pedanteria. Eis a pessoa principal do navio, com quem eu tinha a viver.

Quanto ao piloto e contramestre, tinha sido marinheiro desde criança nos navios de João da Maia, de Aveiro, e, aprendendo depois alguma coisa de náutica, fez viagens a Bordeaux, Cork, Quebec, New York, Rio de Janeiro, etc., já como oficial. Inteiramente destituído de conhecimentos, o seu carácter é muito diferente do do capitão. Franco e sincero, um pouco inteligente e conhecedor da sua arte, não direi que é de um ânimo a toda a prova, mas não é medroso.

Quanto aos marinheiros da equipagem, não faltarão ocasiões de falar deles durante o curso destes apontamentos.

O vento soprava bonançoso, e o navio começava já a navegar nesse formoso e indolente mar dos trópicos. Uma chuva miúda e espessa, o ar quente e enublado anunciava já a aproximação do arquipélago de Cabo Verde, quando no dia 5 de Maio avistámos de longe a ilha de Santo Antão. No dia 7, o capitão teve um ataque de erisipela, fruto das navegações de África, e ficou doente de cama durante quatro a cinco dias. Continuámos a navegar, umas vezes com a atmosfera sempre limpa e algumas vezes também com noites e dias chuvosos e escuros, sempre, porém, com um calor que ia aumentando progressivamente, à maneira que nos avizinhávamos do equador. À distância de seis a sete graus ainda do norte dele, o tempo fazia mudanças bastantes: hoje, um dia com a atmosfera inteiramente limpa, e amanhã, tudo coberto de espesso nevoeiro. As noites, principalmente, eram escuríssimas.

Encontrámos durante este tempo bastantes navios, mas nenhum foi possível conhecer quem e donde era. Era o dia 14 de Maio. O vento soprava fraco, e o navio cortava as ondas, preguiçoso, quando nos apareceu, ao nascer do dia, / 233 / um navio no extremo horizonte. Era uma escuna. No mesmo dia, às 10 horas da noite, passou prolongada de perto e no alvorecer do dia seguinte mal se descobria já pela proa. Disseras(8) que era aquele navio uma visão de Sue ou de Fenimore Cooper. Vendo-o desaparecer com a rapidez do relâmpago, lembrei-me dos piratas de Lord Byron. Soubemos depois que era uma escuna inglesa que ia com vinho do Porto, desta cidade para Sydney.

No dia seguinte, uma barca inglesa passou junto de nós para o Norte. Perguntámos-lhe, pelo telégrafo, donde vinha e para onde ia; mas içou segunda vez a sua bandeira, para nos significar que não tinha telégrafo.

Foi finalmente no dia que se seguiu a este, que eu pela primeira vez atravessei o equador. As antigas festas de Neptuno, que em outro tempo eram tão célebres na marinha portuguesa, quando ela era a senhora dos mares, hoje estão quase de todo esquecidas: foram-se com a glória de Portugal. Apenas um ou outro navio se lembra ainda disso, porém sem entusiasmo. A nós nem tal nos lembrou. A nossa festa de Neptuno neste dia foram dois judeus (dourados grandes) − é assim que os marinheiros lhe chamam −, que o piloto pescou à fisga e que o capitão ajudou a comer de muito boa vontade, posto que a erisipela lhe magoava ainda muito o pé, como ele dizia.

Agora sou chegado a um acontecimento dos mais frisantes desta minha viagem. Antes, porém, para inteligência dalgumas coisas, é preciso dizer que o capitão era um homem cobarde quanto é possível, de nenhum sangue-frio e pouco conhecedor da manobra; mas pretensões de superioridade sobre tudo é o que ele tinha de mais. Eis ocaso:

Pelas 5 horas da manhã do dia 18 de Maio, apareceu pela proa um grande navio e, daí a uma hora, estando junto de nós, lhe perguntámos pelo telégrafo para onde ia; e, como dissesse que para Liverpool, lhe pedimos para dar novas nossas à Companhia de Loyds − o que ela (sic) prometeu. Mal desaparecia ainda pela popa, quando pela proa nos apareceu outro navio, que em pouco tempo se reconheceu ser um patacho. Nós içámos-lhe a bandeira por curiosidade, e o patacho, içando a bandeira de Bremen, pôs logo de longe a proa no nosso brigue. Que queria isto dizer? Fosse o que fosse, o que é certo é que o capitão mandou atravessar para esperar, a ver o que ele queria. Então o patacho, sem orçar nem arribar, veio seguindo direito para nós. Foi então que / 234 / receámos algum desastre, porque, atravessados como estávamos, já não tínhamos tempo de nos livrarmos dele; toda a navegação estava do lado do patacho. Mas qual foi o resultado? O desastrado deixou-se vir de encontro à nossa proa e, encontrando-se ambos na carreira como dois paladinos em torneio, o patacho perdeu logo o gurupés e paus e cabos pertencentes, e o nosso brigue perdeu o pau de bujarrona, pica-puxe, o de giba, etc. Isto foi no primeiro encontro. Ao recuar do embate, uma onda levantou o nosso brigue e abaixou o patacho; e, quando a onda, passando, obrigou os dois navios a ficarem outra vez sobre o mesmo plano, o patacho, que tinha a sua proa por baixo da nossa, no esforço que fez para se erguer arrancou os cabeços da nossa proa por B. B. e assim caíram todas as tábuas da flor de água deste lado. Na segunda abalroação, a equipagem do patacho saltou para o nosso bordo como pôde, porque via que o brigue era mais forte e grande; porém, como um deles, único que não pôde saltar, reconhecesse na bomba que o seu navio não fazia água, todos saltaram outra vez para o patacho, na ocasião em que ele, depois dos dois embates, veio descaindo borda a borda com o brigue, finalmente foi descaindo pela nossa popa, e ainda a nosso bordo ficou um marinheiro deles, que pouco depois vieram buscar. Então tratou-se primeiramente de consertar o navio, isto é, de tapar do melhor modo possível os rombos, o que se fez com tábuas delgadas e lona oleada.

Durante este tempo jamais vi um homem que menos o parecesse do que o capitão. Com o pé a coxear ainda da erisipela, tremendo como um condenado, com o rosto desfigurado, gritava desta maneira:

− Misericórdia, meu Deus! Louvado seja Deus! (Isto foi repetido durante quatro a cinco horas) Estou desgraçado! Que há-de ser de mim?

Etc., etc., e quejandas palavras, que nestas ocasiões desacreditam para sempre um capitão perante a sua equipagem, que, espantada de ver pela verdadeira face o seu comandante, desde então lhe perdeu, se não todo, ao menos parte do respeito que lhe era devido. Na ocasião do desastre, crise terrível em que ambos os navios podiam sucumbir, só se viu em toda a nossa equipagem um homem desvairado, um homem mudar de cor, e este homem era o capitão do navio!

Quanto a mim, também lhe perdi desde então algum respeito verdadeiro que lhe tinha como meu capitão.

Acabado o conserto, o capitão propôs arribar a um porto do Brasil, porque o navio daquela maneira não ia suficientemente seguro para resistir aos mares e tempestades dos mares do Sul, se as tivéssemos. Estávamos então um pouco ao sul de Pernambuco e muito mais longe do Rio de Janeiro; porém, / 235 / como o dono do navio tinha correspondente nesta última cidade e não naquela, foi por isto que o capitão resolveu antes arribar a Rio de Janeiro, para consertar e protestar.

Resolvido assim, viajámos para a costa do Brasil. Foi deste dia em diante que o capitão começou as suas horríveis maçadas sobre a costa de África. Eu considerava na febre amarela e confesso que tinha medo do Rio de Janeiro, porque as últimas notícias em Portugal diziam que a epidemia continuava a segar vítimas, principalmente entre os não aclimatados. − Esquecia-me dizer que o nosso navio, depois da abalroação, começava a fazer quatro polegadas de água por hora, o que não era nada agradável; felizmente, conheceu-se depois que não aumentava daqui e mesmo depois diminuiu duas polegadas.

Foi daqui por diante que me começaram a aparecer as maravilhas dos trópicos. De dia, o Sol dardejava quase a prumo os seus raios insuportáveis; mas as noites... Oh, que belezas! Minha pátria, a tua Lua e as tuas estrelas são mui fraca comparação para estas. É verdade que aqui não há essa hora misteriosa e suave em que o Sol tão bem exprime as suas saudades, quando nos vai deixando − a hora formosa. do crepúsculo. Que importa? O Sol brilha com o mesmo fulgor até ao seu ocaso, e logo as estrelas surgem brilhantes como outros tantos sóis sobre o espaço, e a noite toda é um continuado crepúsculo; mas, quando a Lua acompanha a noite, oh! então é divina a natureza! Não! Nada há tão formoso como o céu dos trópicos.

No dia 24 de Maio, um tubarão nos acompanhou todo o dia. Este animal é muito preguiçoso; nada muito devagar; porém devora tudo quanto acha de carne. Na Costa Nova, de Aveiro, encontram-se muitos pequenos moluscos, ali chamados vinagreiras, que pertencem à mesma família dos tubarões. O nosso animal pôde ainda levar um golpe de arpão, mas arrancou-se este porque foi jogado muito no lado.

O calor continuava sempre insuportável, posto que muitos dias estivesse a atmosfera toda encoberta e apesar da chuva que por vezes caía.  / 236 /

 

CÓPIAS DAS MINHAS CARTAS, MANDADAS

PARA A EUROPA A MINHA FAMÍLIA

1.ª

Minha mãe e mano Bento (9)

Rio de Janeiro, 11 de Junho de 1853

No dia 21 de Maio(10) nos fizemos de vela para Sydney, como mandei dizer nas minhas últimas cartas que do Porto escrevi para aí, e começámos a nossa prolongada viagem. Lindíssima a fizemos até ao dia 25, em que avistámos as ilhas da Madeira e Porto Santo, e assim continuámos, até que vimos a de Palma, nas Canárias, no dia 28 do mesmo mês e a de Santo Antão, em Cabo Verde, aos 5 de Maio. Em seguida, determinámos dirigir o nosso rumo à ilha ilha Ascensão, para daí irmos em direitura ao Cabo de Boa Esperança. Com esta tenção atravessámos o equador e começámos a navegar muito mais encostados à Costa da América do que à de África, porque a navegação ao longo desta costa é terrível, e muito boa prolongando-se a outra. Nestes termos, chegámos à latitude de 3 graus, pouco mais ou menos (é a mesma do Maranhão) e à longitude de 21 graus a oeste de Lisboa.

Era o dia 18 de Maio, às 6 horas e meia da manhã, quando nos apareceu pela proa um patacho que nos içou bandeira e começou a procurar o nosso navio. A vista disto, estava conhecido, que procurava socorro, fosse qual fosse, e portanto atravessámos o pano e esperámos por ele, depositando nele toda a confiança da mareação, segundo era nosso dever. Porém o desastrado, sem orçar nem arribar vem direito sobre a nossa proa, abalroam os navios, e eis o patacho (que era de Bremen) com a proa partida, e o nosso com / 237 / um bocado de borda da proa escangalhado, e impossibilitado de continuar uma viagem em que havia a dobrar o cabo.

Determinou-se, pois, a arribada forçada, e aqui viemos parar ao Rio de Janeiro, para consertar. Entrámos no dia 1 deste mês, e portanto com quarenta e cinco dias de viagem, o que não é muito, atendendo a que é uma arribada. Sem querer, cá vim parar, mas é por pouco tempo. Dentro em quinze dias, a datar de hoje, creio que estaremos prontos a sair, e aqui não se esperam caprichos da barra, porque é uma baía, estreita, sim, na embocadura, mas muito boa para sair e entrar. Felizmente, oito dias antes da nossa entrada parece que choveu aqui extraordinariamente, o que aplacou, muito a epidemia. Tenho visto a lista dos óbitos e até admito ver só dois ou três casos de morte por febre amarela diariamente, e por via de regra estrangeiros, de países mais frios que o nosso. Ora, quando eu daí vim, tencionando embarcar no S. Manuel Segundo, trouxe uma carta do José Roque (11) para o Lourenço Salgueiro; essa carta a encontrei metida na carteira, durante a viagem. Como aqui arribámos, não foi debalde que a carta foi escrita. Já por ele perguntei e por outros daí, mas não encontrei nenhum ainda; mas, como tenciono escrever próximo à minha partida, para ficarem descansados sobre o meu estado de saúde, então direi o que àquele respeito tiver adiantado. − Agora, também quero dizer alguma coisa sobre o que me parece do Rio de Janeiro. Parece-me uma coisa muito inferior ao que eu imaginava. As margens da baía logo na sua entrada são feíssimas, e o mesmo digo da cidade, vista do centro da baía. Situada ao longo da praia, mas abafada por detrás por altos cerros que a impelem sobre a praia, o Rio mostra um aspecto acanhado. É verdade que tem muito bons edifícios, feitos no gosto moderno; tem algumas praças que não são más; mas, em paga, as ruas são porquíssimas, não têm a largura conveniente, e a cada passo o visitante se vê acometido por uma saraiva de lama, que espirra num moto-contínuo das rodas de um desasado cabriolet, puxado por um pequeno macho pardo, que à primeira vista se diria ser um jumento. Enfim, o que me parece deste país é que os naturais são uns mandriões, e acanhados, e o que faz a cidade sofrível são os estabelecimentos estrangeiros. Fazia-me uma impressão terrível, ao princípio, a quantidade extraordinária de negros e negras que giram pela cidade. A meu ver, talvez preencham dois terços da população. / 238 / Quanto ao clima, presentemente é Inverno, e não faz muito calor; quando o Sol está descoberto, é quente, mas não insuportável. Muitas vezes, está encoberto, mas é raro haver dia em que não apareça algum bocado. Calor ardentíssimo tivemos, porém foi na altura de Fernando de Noronha, desde o equador até quatro ou cinco graus ao Sul. Nada mais lindo do que as noites dos trópicos. O mar, aí, raras vezes se agita e, quando vem alguma tormenta, não dura mais de dois dias. Então o nascer e pôr do Sol excede tudo quanto a imaginação pode exceder. As estrelas têm um brilhantismo, que torna as noites mais claras que as nossas de bom luar.

Agora, falemos de outra coisa. O capitão e o piloto com que ando estimam-me quanto é possível. Como o Joaquim da Costa Leite me tinha dito, falando-lhe eu sobre o negócio da comida, que, visto terem-me aceitado, era para comer do navio, decerto não pago nada. E pode ser mesmo que no fim me dêem alguma coisa, mas é só no caso de a viagem ser de interesse, o que muito pouco me palpita. Em todo o caso, eu adquiro a prática, que é o que mais me convém. Quanto a saúde, tenho-a sempre tido, e o mesmo desejo que aconteça ao mano, mãe, manas, maridos e pequerruchas, a quem saudoso muito me recomendo. Enjoei dois dias à saída do Porto, e muito pouco, e hoje não há já mar que seja capaz de me fazer enjoar. Visitas a quem se lembrar de mim, e especialmente ao Jerónimo e Crispiniano(12). Repito que, quando estiver para sair, tornarei a escrever, e a mãe lance a sua bênção, e o mano acredite-me sempre

Ao seu filho, e o seu irmão muito
amigo, obediente e saudoso.


2.ª

Minha mãe e mano Bento

Rio de Janeiro, 27 de Junho de 1853

A receber esta carta, já vêem que estamos aqui há vinte dias, e para sair. O dia destinado é além de amanhã, dia de S. Pedro, e por isso escrevo esta para cumprir o que prometi na antecedente. − Agora vou contar o que tenho feito. Comecei de procurar pessoas de Aveiro indistintamente, / 239 / porque uma que me aparecesse me daria novas das outras. Baldadas foram as minhas indagações até antes de ontem, em que finalmente encontrei uma, o Miguel Sapateiro. Esse me dirigiu a casa do Manuel Salgueiro, e então foram aparecendo: o barbeiro Apóstolo, que esteve com o Bento; o filho do Manuel de Almeida; um dos sapateiros Marques, da rua de Jesus; o Joaquim Alfaiate; o rapaz, enteado do Serôdio, e outros que eu até nem conhecia, mas que conheciam a mim. O Manuel Salgueiro agarrou-me e levou-me a jantar a casa dele; embirrou em que eu pedisse licença ao capitão, para ficar aquela noite em casa dele, porque queria ir ao teatro comigo. Pedi, fui, e em casa dele dormi. O Lourenço já foi há meses para Montevideu, e parece que não muito corrente com o Manuel, segundo este me disse. A carta do José Roque dei-a ao Manuel, com quem conversei largamente e dele soube o que vou contar. Miguel Sapateiro até há seis meses atrás poucas vantagens teve; agora está estabelecido e com um bonito princípio de adquirir alguma coisa. A mulher, porém, está sempre doente, porque não se aclimata, e o marido está com a mania de se ir embora daqui a um ano. Já tem outro filhito, de nove meses. − O filho do Almeida é caixeiro numa casa não sei de quê, mas é boa casa; mas ainda não deixou de ser o mesmo filho do Almeida. − O José da Margarida esteve em Petrópolis (Petrópolis é a Sintra do Imperador, daqui oito ou nove léguas), associado num açougue; depois deixou-se disso, caloteou a muitos, por lá tem feito de valentão, dando e recebendo, amigado com uma preta, e hoje verdadeiramente nem o Salgueiro sabe o que ele faz, nem se lá está ainda. − O Gabriel de Pinho tem má fama entre os patrícios daqui, porque corre entre estes que, na época em que Roque Camelo o tratava aqui como a filho, aquele lhe roubara bastante dinheiro. Ele para aí foi, por se dar mal com o clima, mas aqui disse que voltava. − O Custódio Pimpão é caixeiro duma espécie de taberna. − O Joaquim Alfaiate começava agora a prosperar, mas a mulher está sempre doente, e os facultativos dizem que aqui pouco tempo poderá viver. Está, pois, resolvido − diz ele − a ir-se embora. − A Rita Salgueira já deve ter recebido, agora do marido uma porção de dinheiro, e não me lembro quanto me disse o Manuel Salgueiro. Este casou há dois meses com uma lindíssima brasileira de dezanove anos, e parece que ela não foi com as mãos vazias; está bem, tem dois escravos e duas escravas, e julgo que teria com que passar, se se quisesse ir embora. − Jerónimo Latoeiro e o filho são sapateiros, e diz-se que trabalham muito em Petrópolis. − Estas coisas ao mano pouco ou nada interessam; mas algumas são para o José Roque, e mesmo aí gostam de saber isto. Diz se que José da Margarida recebeu uma carta assinada / 240 / por Sousa da Vista Alegre, José Resende e não sei mais quem, a mandá-lo ir para Aveiro, dizendo-se-lhe que lhe seria paga a passagem. Não sei se isto é verdade, e a mãe e o mano melhor saberão disso, atendendo ao que aí se passou quando eu lá estava. − Tenho gozado saúde perfeita, apesar de que as febres continuam sempre, posto que com poucos estragos. Quando receberem esta carta, etc.

(O resto da cópia desta carta não me foi possível arranjá-lo, por falta de tempo, para mais na ocasião em que a mandei).

BERNARDO XAVIER DE MAGALHÃES

Continua na página 249 − ►►►

_________________________________________

(1)No Arquivo, vol. XIV, págs. 161-205. Dele se tirou separata.

(2)Falecida no dia 7 de Fevereiro de 1870. 

(3) − Estas produções foram publicadas no Arquivo, a primeira no Vol. II, págs. 15-18; a segunda no Vol. VIII, págs. 222-225.

(4)Esta oração foi publicada em Maio de 1882 com o seguinte título: − «Oração Funebre nas Solemnes Exequias do Sr. Bernardo Xavier de Magalhães, Professor de Francês e Inglês no Lyceu de Aveiro. Imprensa Aveirense − Largo da Vera Cruz» −, e à frente dela lê-se a seguinte dedicatória: − «Á / Excellentissima Senhora / D. Paula de Faria Melo e Magalhães / em testemunho do mais elevado respeito e da consideração mais profunda / e como ultima homenagem do discipulo mais humilde / à memoria / do seu chorado professor e amigo / consagra e dedica / Manuel Rodrigues Vieira».

(5)Cit. «Oração Fúnebre>, pág. 25.  

(6)A expressão «com quem eu tinha a tratar» − indica que os apontamentos não foram redigidos a bordo. J. T.

(7)Este gerúndio leva-nos a supor que a relação da viagem foi escrita no Rio de Janeiro. J. T..

(8)Esta forma, equivalente a dissereis, dir-se-ia, mostra que a BERNARDO JOSÉ MAGALHÃES não era estranha a prosa clássica. J. T. 

(9) O Dr. Bento Rodrigues Xavier de Magalhães, irmão de Bernardo X. de Magalhães, era mais velho do que este dez anos. Nasceu no dia 28 de Abril de 1820 e faleceu em 8 de Janeiro de 1869. Tendo-se formado em direito, advogou em Aveiro, onde ocupou lugares de importância, sempre respeitado pelos seus conterrâneos. MARQUES GOMES dá-nos dele uma ligeira biografia nas suas Memórias de Aveiro, págs. 196-198. J. T  

(10)Esta data está em desacordo com a indicada na relação da «Viagem do Porto a Sydney», que deve ser a verdadeira. Confrontando outras datas da referida relação com as desta carta, notam-se também discrepâncias. J. T.

(11)José Roque Machado, cunhado de Bernardo Xavier de Magalhães, por ter casado com sua irmã, D. Maria Casimira Xavier de Magalhães, de quem teve uma filha, Beatriz, e um filho, o Dr. Edmundo de Magalhães Machado, que foi médico oftalmologista muito distinto. J. T.

(12)Dr. José Crispiniano da Fonseca e Brito, médico. J. T.

Página anterior

Índice

Página seguinte