F. Ferreira Neves, Saudades da salineira de Bernardo de Magalhães, Vol. VIII, pp. 222-225

VELHAS POESIAS REGIONAIS

SAUDADES DA SALINEIRA

DE BERNARDO DE MAGALHÃES

PUBLICOU-SE no voI. II desta revista uma expressiva poesia de BERNARDO DE MAGALHÃES, intitulada A Salineira, acompanhada de judiciosas considerações, como homenagem ao autor e lembrança de passados tempos, de viver e sentir muito diferentes dos actuais.

A referida composição granjeou nomeada ao autor e ainda hoje se não olvidou inteiramente pela Beira-Mar aveirense.

Sucede, porém, que um amigo meu teve a gentileza de me ceder um livro de versos escrito pela própria mão do poeta, e no qual estão reunidos os principais trabalhos poéticos de BERNARDO DE MAGALHÃES. Verifica-se que ele já versejava aos dezoito anos, pois lá estão lançadas algumas poesias que foram publicadas no Periódico dos Pobres, no Porto, no ano de 1848.

Outras poesias se encontram no manuscrito, com data posterior a 1848, entre as quais A Salineira, com a nota de ter sido impressa no n.º 12 do Campeão do Vouga, do ano de 1851, jornal antecessor do Campeão das Províncias, e reimpressa depois em 1862, no Distrito de Aveiro.

Esta poesia tem a seguinte entrada:

Quem a vida quiser verdadeira
É fazer-se uma vez... salineira.

                                   L. A. PALMEIRIM

Logo a seguir à Salineira encontra-se no manuscrito outra poesia intitulada Saudades da Salineira, datada de 1 de Março de 1862. Foi publicada neste mesmo ano, juntamente com a Salineira, no jornal Distrito de Aveiro. Vamos também arquivá-la nas páginas desta revista, pelas mesmas razões que justificaram a publicação da Salineira, e ainda por ser o complemento desta poesia. Na Salineira se expõem as alegrias e folguedos das salineiras enquanto se não casam; na segunda poesia mostram-se / 223 / as saudades que a salineira já casada, elevada a outra posição social que a sua esbelteza de mulher conquistou (facto corrente ainda hoje na cidade), tem dos seus tempos de solteira, em que alegremente trabalhava na marinha e tomava parte nas festas populares.

Verdade seja que tal inadaptação se não verifica muito actualmente, e, em situações paralelas às da poesia de BERNARDO DE MAGALHÃES, as saudades, hoje, parece não serem grandes...

Daqui inferimos que «Saudades da Salineira» retratarão, porventura, determinado romance de amor, pessoal, que o Tempo há muito terá sepultado e nós não sabemos identificar nem tampouco desejamos profanar.

F. FERREIRA NEVES

 

«SAUDADES DA SALINEIRA

Oh! vida da minha vida,
Minha vida se acabou!
Oh! quem me dera voltar
Ao tempo que já passou.

Cantiga popular
 

 

Que é dos tempos alegres d'outr'ora,
Que descalça na ria gozei?
Que é da linda, embreada bateira,
Onde os anos de folga passei,
Onde ao som do machête e viola
Tantas vezes a chula dancei?

Que é da minha canastra querida,
Que meu pai, que Deus haja, comprou,
Que por vezes de rude salseiro
Meu cabelo penteado abrigou,
Onde às vezes o irmão pequenino
Nossa mãe, que Deus tem, embalou?


Que é da minha chinela de pano
Com biqueira polida também,
Onde o pé recurvado e ligeiro
Eu metia orgulhosa a desdém?
Os de fora da terra diziam:
Destes pés só Aveiro é que tem!

/ 224 /

 

Que é da saia e mantilha de pano,
Que trajava com ar senhoril,
O meu lenço esmerado de seda,
Que enfeitava meu rosto gentil,
Meu pisar de Tricana aveirense,
Que atraía janotas aos mil?


Ai! que noites passei na marinha,
Gratas noites de gozo real,
Quando vinha o taful namorado
Ajudar-me à canastra do sal!
E que falas tão doces falámos
Por detrás do fiel malhadal!


Oh! que amargas saudades me pungem
Desse tempo feliz que passou!
Era então a rainha nas festas,
E sem mim nunca dança prestou;
Os janotas seguiam-me todos;
Ai! que tempo a tricana gozou!


Fui nas salas juncadas o luxo
Dos folguedos do Alboi, Beiramar;
Os rapazes da terra à porfia
Procuravam comigo dançar,
Que ninguém como eu nunca soube
A canoa, o landum rebolar.


Esses bailos da entrega do ramo
Onde eu dei tanto aperto de mão,
As cantigas e danças de roda
Nas fogueiras do meu san João,
As folias na costa do Prado
Para mim nunca mais volverão.


E o fugir lá n'areia ao mancebo,
Que à traição premedita um boléu,
Mas depois escoar-se da turba,
Encoberta da noite no véu,
Ir ouvi-lo detrás da capela
A chamar-me: seu anjo do céu!


Patinhar com as outras na praia,
E fugindo veloz para trás,
Amostrar o torneado da perna
Do janota ao esguardo voraz...
Foi-se tudo; − acabou tão depressa!
Feliz tempo, não mais voltarás!

/ 225/ [VoI. VIII - N.º 31 - 1943]

 

Tempo, tempo em que fui requestada!...
Eram tantos... ao cabo escolhi,
E com xailes de seda custosa
O meu corpo engraçado cobri,
E o meu pé, que era o brio da terra,
Na botinha da moda escondi...


Já não sou salineira! E em troca,
Que fui eu desditosa buscar?
Os dourados grilhões da etiqueta,
Que só ele me pôde lançar;
Foi só ele que pôde constante
Da tricana a isenção cativar.


Cá nas salas a fria palestra,
Na marinha da folga o rumor;
Cá nas salas mentida lisonja,
Na marinha franqueza e amor;
Cá nas salas a alvura dum rosto,
Na marinha, − que olhar, que fulgor!


Acabou essa quadra ditosa;
Hoje habito no austero salão;
Quando eu ouço tocar no piano,
Creio ouvir a guitarra e violão;
E estas danças recordam-me ainda
Cana Verde, Ai! Jesus, Marião!

                                                 1 de Março de 1862»

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