O
ESTUDO que fiz da estrada militar de Coimbra ao Porto, e mais
especialmente no concelho de Águeda, levou-me naturalmente a entrar
também na discussão,
já velha de séculos, sobre a localização de Talábrica e Vacca. Já,
porém, se escreveu tanto sobre este assunto,
já se produziram tantas páginas de incontestável valor literário e tantas afirmações de bairrismo entusiasta mas inócuo, que me
acanho de dizer alguma coisa sobre este caso, pois que não sei fazer
literatura, nem sinto no coração esse sentimentalismo doentio que
tiveram muitos ao falar da sua terra natal. Entretanto, com a realidade
histórica da época em que viveram essas cidades é como agulha em
palheiro, que só se poderá encontrar remexendo-o muitas vezes, penso que
é meu dever ajudar a revolver o pó daqueles séculos distantes, até que a verdade histórica seja definitivamente
encontrada.
Pessoa amiga, a propósito do meu estudo sobre estradas romanas, disse-me
que o meu trabalho, embora sujeito a críticas divergentes, representava
um esforço grande de indagação. Não quero melhor prémio para os meus
trabalhos que a crítica serena, sobretudo quando esta ajuda a descobrir
a verdade que é o que todos honestamente buscamos. Em
discussão séria, em crítica construtiva, é-me tão agradável ser vencido
como vencedor, porque, vencido, liberto-me de um erro; vencedor, tenho
dado mais um passo na busca da verdade.
ROCHA MADAHIL, culto e activo arqueólogo, a quem a História de Portugal
e a Arqueologia do distrito de Aveiro devem trabalhos de inegável valor,
publicou no Arquivo de Aveiro, 1941, pág. 313, O seu estudo notável
sobre a estância luso-romana do Cabeço de Vouga, a cujas escavações
presidiu. Antes de descrever estas escavações e de dar-nos o resultado
delas, faz uma colectânea de tudo o que se tem dito sobre o assunto,
começando pela descrição do local feita por VAZ FERREIRA, numa das
melhores páginas do seu interessante
/
215 /
romance − Senhores do Marnel. O leitor que quiser ter um conhecimento
completo da questão e do seu estado actual, encontra todos os elementos
naquele trabalho, útil sob todos os aspectos, e, sobretudo, porque nos
conduz a esta pouco confortante conclusão: estamos hoje onde estávamos
há quatro séculos. Não sabemos onde era Talábrica, não sabemos se
existiu Vacca. Literatura, bairrismo, romance. Tudo perdido? Não, alguns
passos acertados se deram. Até a confusão criada tem hoje o grande mérito
de nos mostrara necessidade de novos métodos.
AETHICO, filósofo, cristão, do quarto século da nossa era, é o único
escritor antigo que seguramente nos fala de Vacca, na sua
Cosmografia, que foi traduzida do grego para o latim. Diz este
escritor: Occeanus occidentalis habet formosa oppida: Bracara − Iacusa
Augusta − Vacca . . . . . .
PLÍNIO, o Velho, na História Natural, fala-nos de Talábrica, na muito
conhecida passagem: − «A Durio Lusitania
incipit. Turduli veteres. Presuri. Flumen Vacca. Oppidum
Talabrica. Oppidum et flumen Aeminium. Oppida Conimbrica. Colippo. Eburobritium...»
Mas GASPAR BARREIROS aponta
o arquétipo de Toledo da obra de PLÍNIO com
esta variante − «A Durio Lusitania incipit. Turduli veteres. Presuri.
Flumen Vacca. Oppidum
Vacca. Oppidum Talabrica». Assim temos outro escritor romano que nos
fala de Vacca. E são os únicos.
O Itinerário de Antonino menciona Talábrica como estação da Estrada
Militar entre Lisboa e Porto.
APlANO ALEXANDRINO viveu em tempo dos imperadores. Trajano e
Adriano e
na sua história dos Romanos refere-se à Talábrica. Outros escritores
latinos mencionam este oppidum.
Comecemos por Talábrica e
conheçamos o valor destas informações quanto à sua existência e
situação:
PLÍNIO diz, caminhando de norte para sul: Flumen Vacca
− oppidum Talabrica.
O Itinerário de Antonino marca de Aemínio a Talábrica cinquenta milhas.
Contando estas, quer na direcção de Aveiro, quer na da Ponte do Vouga,
sai o termo delas muito ao norte do rio Vouga. E assim surge a
contradição entre PLÍNIO, que localiza Talábrica a sul do Vouga, e o
Itinerário, que a dá ao norte do mesmo rio.
APlANO descreve-nos as lutas de Décio Juno Bruto na Lusitânia e conta,
depois de tratar dos Brácaros, um episódio passado em Talábrica. Mas não
diz onde esta era situada.
Tudo quanto depois se escreveu sobre este assunto foi calcado nestas
informações. Foi GASPAR BARREIROS o primeiro a tratar de Talábrica.
Movido do brio patriótico de
/
216 /
reclamar para a sua Lusitânia a honra da sede de Talábrica, levantou-se
contra os que pretendiam identificá-la com Talavera de la Reina, apoiado
nas duas fontes − PLÍNIO e Itinerário. Apontando o arquétipo de Toledo, mostra que as
duas estações Vacca e Talábrica existiram; com o Itinerário fixa a sua situação, fazendo considerações acertadíssimas sobre a
equivalência das distâncias antigas com as modernas. Pena é que não
tivesse levado a lógica do seu raciocínio até ao fim, e que a
preocupação de dar uma guarida honrosa à sua
Talábrica o conduzisse a conclusão que não pode aceitar-se
sem grande constrangimento da razão. Assim, o autor argumenta: de
Ollisipo (Lisboa) a Gerábica conta o Itinerário XXX milhas (trinta mil
passos) que equivalem a sete léguas e meia (quatro milhas por légua) que
hoje se contam: de
Gerábica a Scalabis XXXIII (Santarém), que são oito léguas; de Scalabis
a Celium, perto de Tomar, outras XXXII equivalentes a oito léguas actuais; de Celium a Conimbriga XXXIV milhas ou
sejam oito léguas e meia. E prova desta maneira que Conimbriga não pode
ser a Coimbra actual, mas a Condeixa-a-Velha, pois com esta se combinam
as XXXIV milhas contadas de Celium. BARREIRQS, porém, depois
de Conimbriga, não conta mais as milhas pelas estações do Itinerário,
mas conta até à Mealhada, Avelãs, Águeda e à
Ponte do Vouga, rio que atravessa para logo depois dobrar quase em
ângulo recto até Cacia, e daqui voltar a Albergaria, fazendo naquela estação de Cacia o vértice de um
ângulo agudo. O que levou o autor a desviar-se inesperadamente do
Itinerário que tão judiciosamente vinha seguindo, para assim levar a
estrada romana da Ponte do Vouga para Cacia? Ele não conhecia a região
de Águeda à Ponte do Vouga e daqui a Cacia, tanto que entre estas
estações errou as distâncias pela necessidade de ajustá-las ao seu
intento.
De Águeda à Ponte do Vouga, não são légua e meia como de Ponte do Vouga a Cacia, são mais de duas e não uma.
É, porém, tão recta, clara e perfeita a descrição que faz de
Cacia e dos vestígios da Torre de S. Julião, que estou certo de que a
visitou e estudou, e achou o lugar digno de receber
a honra de sede da encantada Talábrica. E para que não
fosse alguém pretender tirá-la à sua Cacia para a levar para
a Ponte do Vouga, lugar não menos digno arqueológica e topograficamente,
além do jogo das milhas, invocou o texto toledâneo de PLÍNIO, que
menciona a cidade de Vacca, antes da de Talábriga, e esta na margem
esquerda do Vouga. Desta maneira calou os de Talavera de la Reina e
contentou todos os da Lusitânia.
Temos, pois, posta a questão por GASPAR BARREIROS: Aemínio junto do
Mondego, onde é a actual Coimbra. − Talábrica em Aveiro − Cacia; Vacca
no cabeço do Vouga.
/
217 /
GASPAR BARREIROS é dos fins do século XVI, princípios do século XVII.
Todos os escritores deste século que trataram do assunto não fizeram
mais do que reproduzir com diversas modalidades o que disse aquele
ilustre arqueólogo. ANDRÉ
DE RESENDE − DUARTE NUNES DE LEÃO − ANTÓNIO DE VASCONCELOS − JORGE
CARDOSO, etc., nada acrescentaram, apenas DIOGO MENDES DE VASCONCELOS,
fundado no texto de PLÍNIO, entende que Aemínio deve localizar-se em
Águeda e não na actual Coimbra.
Frei BERNARDO DE BRITO traz para a questão dois elementos novos, duas
inscrições que parecem pôr termo definitivo à contenda. Encontrou uma
em OsseIa e outra num
muro velho de Pinheiro da Bemposta. É a de OsseIa: lmp.
Ca es. D. Avg. Inter Div. Rei. Cohort. Praesid. Vacce. Occel. Lango.
Calen. Aem. Leg. X Fretens. Ejvs. Nvm. Spetacula. Et. Lvd. Gladiat. E.
V. Erbes. Lvsit. L. A. Ex. Et. Hecatomb. D. D. −
A de Pinheiro − . . . Cos VI P. F. Vac. XII P. M.
As coortes da Legião décima, chamada Fretense,
de presídio em Vouga − OsseIa, Lanco, Cale e Aemínio, oferecem espectáculos e jogos de
gladiadores ao Imperador César divino Augusto, já contado no número dos
Deuses, e estas cidades da Lusitânia fizeram os gastos e dedicaram
hecatombes.
Analisemos agora os fundamentos em que se estribam GASPAR BARREIROS e os
seus continuadores.
PLÍNIO, nascido em 23 da nossa era, morre em 79 com 56 anos de idade. A
sua produção literária foi tão fecunda, que mal se concebe que ele
tivesse podido escrever tanto sobre os mais variados assuntos. A nossa
admiração é ainda
maior sabendo que este homem ilustre dedicou uma parte da sua vida aos
serviços públicos no exército, na magistratura e na marinha, e que
muitos assuntos tratados nos seus livros só os conheceu através da
leitura de numerosas obras. Para a sua História Natural, ele mesmo
confessa que teve de consultar mais de dois mil livros. A História
Natural é um trabalho imenso sobre geografia, astronomia, medicina,
comércio, artes, botânica, mineralogia, etc. Foi um enciclopedista, mas
não foi propriamente um geógrafo. A sua intenção foi dar-nos o panorama
do Império Romano, na sua estrutura administrativa, nos povos que o
constituíam, com os laços jurídicos que os prendiam a Roma. Um ou outro
acidente geográfico, como rios, promontórios e pouco mais. Cita
frequentemente VARRO e AGRIPA, mas não se refere a STRABÁO, morto meio
século antes, quando a sua vasta obra geográfica se tinha já largamente
divulgado. Não segue nenhuma orientação geográfica na indicação das
cidades,
/
218 /
parecendo apresentá-las pela ordem alfabética dos documentos públicos (Formulae) ou das obras dos escritores. A parte
consagrada à Lusitânia é pobre de indicações físicas e etnológicas,
limitando-se quase só à costa. Esta deficiência terá, porventura, a sua
explicação na circunstância de ser a Lusitânia a província da Espanha
que maior resistência ofereceu à dominação romana e que mais tarde
recebeu os influxos da sua civilização. A rebeldia dos lusitanos tinha
sido definitivamente vencida pouco tempo antes de PLÍNIO, de modo que o
conhecimento desta região não era para ele e para os outros escritores
tão completo como o das outras partes do Império. Ele mostra em vários
passos a falta de firmeza que tinha nas suas informações. Assim, diz
ele: «depois do rio Douro começa a Lusitânia, os Túrdulos antigos, os
Pesuros, o rio Vacca, o povo Talábrica, o povo e o rio Emínio». Este rio Emínio
é o mesmo Mondego. É PLÍNIO que nos fornece a prova desta identidade,
pois reputa, segundo VARRO, a distância entre o Minho e o Emínio em
duzentas milhas. Esta distância se verifica aproximadamente entre o
Minho e o Mondego. Entretanto PLÍNlO acreditou tratar-se de rios diferentes. Referindo-se a outros escritores, diz ele
− «erraram
nos rios principais: do Mínio que acima nomeamos está o
Aemínio afastado, no dizer de VARRO, duzentas milhas, o qual alguns
entendem estar noutra parte e lhe chamam Límia, conhecido dos antigos
por rio do Esquecimento e que dele
contam muitas fábulas. O Tejo está a duzentas milhas do Douro e o Munda
corre entre ambos.» Sem sombra de dúvida, para PLÍNIO, Límia − Aeminio
e Munda eram rios diferentes. É possível que o Munda tomasse junto do Aemínio o nome desta cidade e daí a confusão do autor, como
judiciosamente diz GASPAR BARREIROS. Ainda hoje é frequente perderem os
rios os nomes próprios para tomarem, junto dos povoados que banham, os
nomes destes.
Não sei quais os autores a que se refere PLÍNIO quando os acusa de
confundirem Aemínio com Límia ou Mínio. Acredito que um destes seja
STRABÃO, pois este autor, muito
mais minucioso que PLÍNIO na descrição física da Lusitânia, não menciona
o Aemínio, mas cita o Límia entre o Minho e o Douro. Apesar de muito
mais rigoroso que PLíNIO, também STRABÃO mostra incerteza no
conhecimento da região, pois afirma que o Minho é o maior rio da
Lusitânia e tem um percurso navegável igual ao do Douro.
Deixemos, porém, estas considerações e procuremos a orientação
geográfica seguida por PLÍNIO na descrição da Europa. E é ele que no-la
ensina na parte II do cap. I,. liv. III. Começando do estreito de
Gibraltar, segue a costa mediterrânea, pela Espanha, Narbonense, Itália,
Córsega, Sardenha e Sicília. É minucioso na descrição destas; segue
/ 219 /
o Adriático, e assim vai andando pela costa até ao Mar Negro.
Entra no Danúbio, dá informação da Europa Central, vem ao Mar Gálico, à
Bretanha e depois pela Gália, Bélgica, França, costa Ocidental da
Espanha até ao Guadiana. Esta é a razão por que trata da Espanha
mediterrânea no Liv. IlI, cap. lI, lII e IV, incluindo neste a região
entre o Guadiana e Gibraltar, e só no Liv. IV, cap. XXXIV e XXXV, trata
da Espanha
atlântica. Diz no cap. II do Liv. III que a Espanha se divide
em duas províncias: a Ulterior e a Citerior; que a Ulterior, pela sua
extensão, se divide em Bética e Lusitânia, separadas pelo Guadiana.
Descreve em seguida as duas províncias da Bética e Citerior. É
meticuloso, como disse, na descrição destas, sobretudo da primeira. Como
fez em outros países, segue primeiro a costa, indicando as cidades e
referindo-se aos rios, cabos, golfos e outros acidentes; em seguida,
descreve as regiões interiores. Ao tratar da Espanha Citerior, ele mesmo
diz que este foi o seu método «Primi in ora Bartuli: post eos, que
dicetur ordine, intus recedentes mentesani; Cap. IV − e adiante: «Post eos, quo dicetur ordine,
intus recedentes radice Pyrenaei . . . »
Ora esta foi também a ordem que PLÍNIO seguiu na descrição da Lusitânia. Primeiro a costa, depois
o interior. A costa divide-se em duas partes − uma do Douro ao cabo da Roca; outro deste
ao Guadiana. E diz da primeira − «A Durio Lusitania incipit Turduli veteres.
Paesuri − Flumen Vacca. Oppidum Talabrica. Oppidum et Flumen
Aeminio. Oppida. Conimbrica. Collipo. Eburobritium».
Compreendo este texto deste modo
− A Lusitânia começa
no Douro com os povos Túrdulos a ocidente e Pesuros a oriente.
Ocupam a região do Vouga com a sua cidade Talábrica, a do Mondego com a
cidade EmÍnio − depois continua − «Oppida: Conimbrica, Collipo.
Eburobritium» − estes povos têm as cidades de Conímbrica, Cóllipo,
Eburobrítium. O rio é o
acidente preferido por PLÍNIO. Não fez referência a rios com
estes últimos ópidos, porque os não tinham. Também só se refere a rios
que vão dar ao mar. Na descrição da Bética referiu cidades e até
pequeninos rios, sem categoria geográfica. Não há uma referência a
serras, vales, afluentes do Douro ou Tejo; o seu pensamento foi
mostrar-nos os povos e suas cidades principais. Não teve a preocupação
de dar-nos a posição geográfica das cidades, mas sim apontar as regiões
habitadas pelos povos que menciona em primeiro lugar. E que isto é
assim, vai confirmá-lo a leitura da segunda parte. Diz PLÍNIO: «Gentes
− Celtici, Turduli, et circa Tagum.
Vettones, Ab Ana ad Sacrum, Lusitani. Na região do Tejo, − caminhando
para o interior − Celtas, Túrdulos e Vetões. Na região do Guadiana até
ao cabo Sacrum − os Lusitanos. E continua: «oppida memorabilia a Tago
in ora: Olisipo,
/
220 / equarum
e Favonio vento conceptu nobile: Salacia cognominata urbs
imperatoria: Merobrica: Promontoriun sacrum:
et alterum Cuneum. Oppida Ossonoba − Balsa Myrtilis. Cidades, na costa,
partindo do Tejo − Olisipo (Lisboa) notável porque ali as éguas concebem do vento favónio, Salácia (Alcácer do Sal?) cognominada cidade imperial; Merobrica
(S. Tiago do
Cacém); promontório sacro (S. Vicente) Cuneum (Santa Maria) e cidade Ossonoba, Balsa (entre Faro e Lagos)
Mértola.
Ora se nós entendermos as palavras da primeira parte
− «Flumen Vacca. Oppidum Talabrica», como querendo
dizer que Talábrica ficava ao sul do rio Vouga, com muito mais razão,
por serem mais expressivas, havemos de entender que estas da segunda parte
− «oppida memorabilia a Tago in
ora, Olisipo...» como significando que Lisboa se há-de achar
ao sul do Tejo. E como, isto não é verdade nem PLÍNIO o pensou, forçoso
é que doutro modo entendamos os dizeres de PLÍNIO numa e noutra
passagem.
Deste modo concluí que não há nenhuma contradição
entre PlÍNIO e o Itinerário.
O Itinerário é considerado a obra geográfica mais valiosa que a
antiguidade nos legou. Embora tenha o nome do Imperador Antonino, não é
trabalho de um homem, não foi feita numa vida. Tal como chegou até nós,
representa o esforço de muitas gerações. Os comentários de AGRIPA, obra
em que este geógrafo compilou os resultados das operações geodésicas a que se vinha procedendo desde que ordenados por César e
Augusto, foram certamente a grande fonte do Itinerário. Este trabalho
inicial, porém, não ficou paralisado. Não sendo senão uma enumeração das
estradas que sulcavam o Império Romano, das estações por que passavam e
das distâncias entre elas existentes, não só havia de sofrer, no correr
dos tempos, a corrigenda dos erros que porventura tivesse, como
interpolações e adições. A última reforma que o Itinerário sofreu foi a
ordenada por Teodósio VI, poucos anos antes da queda do Império Romano
do Ocidente. O Itinerário, sendo como foi um trabalho oficial, feito
para fins
políticos e administrativos, que satisfez durante séculos, não pode
deixar de ser um trabalho exacto. E que assim o é, podemos ainda
prová-lo com a comparação das distâncias entre as estações
definitivamente localizadas com as distâncias actuais entre os mesmos lugares. Este estudo comparativo vem
mostrar-nos a exactidão do Itinerário, pela quase igualdade entre as
distâncias de então e as de agora. Assim, de Lisboa a Braga são
aproximadamente 365 quilómetros, e, pelo Itinerário, 244 milhas ou sejam
361 quilómetros; de Lisboa ao Porto 315 quilómetros, pelo Itinerário 209
milhas ou sejam 310 quilómetros; de Coimbra ao Porto 110 quilómetros,
/
221 / pelo Itinerário 71 milhas ou sejam 105
quilómetros; de Santarém
a Coimbra 110 quilómetros, pelo Itinerário 66 milhas ou sejam 113
quilómetros; do Porto a Braga são 50 quilómetros, pelo Itinerário 35
milhas ou sejam 52 quilómetros. Como se vê, as distâncias actuais
combinam com
as do Itinerário com diferenças de muito pouco valor, resultantes das
modificações feitas ao rumo primitivo da estrada. Entre Santarém e
Coimbra há uma diferença apreciável de perto de nove quilómetros, que
resulta do novo rumo que a estrada real tomou, afastando-se de Tomar
para alcançar Leiria.
O Itinerário é um documento de toda a confiança, não o invalidando,
como pretendem alguns, a circunstância de haver dele vários códices, com
divergências, pois estas só atingem a redacção dos nomes e são todas
concordes nas distâncias.
E que valor probatório pode ser atribuído às duas inscrições de que nos
dá notícia Fr. BERNARDO DE BRITO? Os historiógrafos negam-lhe
autenticidade. Não tem confiança
no autor. Na verdade, é estranho como Fr. BERNARDO DE BRITO foi
descobrir aquelas lápides perdidas nas paredes de Ossela e Pinheiro da
Bemposta. Vê-se que ele, com a primeira, quis provar a existência de Vacca, sem responsabilidade de maior, visto que já tinha o apoio de AETHICO; com
a segunda, pretendeu localizá-la, mas como não tinha nenhuma ajuda
anterior, mostrou-se cauteloso, levantando a dúvida
sobre o próprio trabalho, não garantindo a tradução, por estarem
apagadas muitas letras. É certo que os historiógrafos, a começar por HUBNER, suspeitam que as lápides foram inventadas
por Frei BERNARDO DE BRITO, mas a verdade é que não apresentam outra
razão da sua suspeita que não
seja a falta de autoridade do autor pelo pouco escrúpulo com
que escreveu a história. E assim, em caso de, dúvida, temos de pôr à
margem aqueles documentos. Temos a impressão
de que uma análise cuidadosa do segundo viria agravar a suspeita. Na
verdade, a inscrição truncada de Pinheiro da Bemposta, onde fica São Gião, e que o autor considera como
fragmento de um marco miliário, merece-me alguns reparos. Em primeiro
lugar, o Itinerário Antonino mostra-nos as estações a partir das quais
era feita a contagem dos milia
passuum. Os miliários que têm sido encontrados estão de acordo com o
Itinerário. Assim, na nossa região, a contagem ia de Conímbriga a Aemínium
− MPM X; de Aemínio a Talábrica − MPM XL; de Talábrica a
Langóbriga. − MPM
XVIII, e de Langóbriga a Calem − MPM XII. Não nos aparece aqui a estação
de Vacca; não sei, por isso, como admitir-se uma contagem a partir dela.
Em segundo lugar, em
/
222 / todos os marcos miliários conhecidos, encontram-se invariavelmente as iniciais dos milhares de passos antes do número
destes.
Assim, na Portugaliae Inscriptiones Romanae − Insc. 129 − Mp. lI; Insc.
130 − MP. III; insc. 131 − MP. IV; insc. 144 − MP. XLIII etc. ... Nalgumas
faltam as iniciais MP, seguindo-se o número de milhas logo ao nome da
estação donde começou a contagem. Em nenhuma, porém, as iniciais MP seguem
o número, em nenhuma aparecem assim invertidas − PM, a
não ser nessa que Fr. BERNARDO DE BRITO nos ofereceu. Teria sido
descuido?
A primeira inscrição, de Ossela, também merece alguma reserva: parece
que não há outra inscrição em que a palavra Divus, em qualquer de suas
flexões, venha indicada apenas com a inicial D. Em todas as outras se
encontra Div − Divi − Divus − Divo. Esta circunstância me leva a supor que
Fr. BERNARDO DE BRITO talvez tenha lido mal aquela inicial. Não seria O
em vez de D? O inicial de Octavius? As palavras inter divus relato
parecem confirmar esta leitura, pois representam uma redundância se
lermos aquela inicial como D. Os nomes próprios representados por uma só
letra são frequentes nas inscrições. As de Marco Aurélio dizem − M.
Aurel. − M. Aurelius. D. inicial de divus, só a encontrei nesta inscrição do Fr.
BERNARDO DE BRITO. Nas de Augusto, a palavra vem frequentemente
completa, assim − Divo Augusto. C. Arius optatus... − Divo Augusto
Albinus Albini F. Flamen Divi Aug. − Inscrições 266 e 269 − da lnscríptiones Romanae.
Mas esta minha suposição, se for verdadeira, será um argumento a favor
da autenticidade da inscrição. De facto, para que Fr. BERNARDO DE
BRITO tivesse errado a leitura, era preciso que a tivesse feito em
qualquer parte. Apesar de não repugnar ao meu espírito que realmente Fr.
BERNARDO DE BRITO tenha visto ou tido conhecimento daquela inscrição,
tenho que a deixar de lado até que outras provas surjam da sua
autenticidade.
O que os escritores disseram no século XIX, e já no século XX, sobre a
existência e localização de Aemínio, Vacca e Talábrica, daria grosso
volume de boa literatura, acendrado bairrismo, imaginação diletante. Os
de Águeda, apoiados naquela confusão de rios que faz PLÍNIO, reclamaram
com tanta veemência e poder de imaginação as honras do Aemínio para a sua Águeda, que por algum tempo se lhes
deu
razão, até que a inscrição de Coimbra os calou definitivamente. Também
já os de Aveiro começam a ver a sem razão das suas pretensões. Entre
estes trabalhos há alguns que são estudos notáveis. Embora não tenham
encontrado solução definitiva, é certo que a sua análise e observação
não podem ser deixadas à margem pelos novos continuadores de seus
/
223 /
esforços. Só nos referiremos aqui a dois: FELIX ALVES PEREIRA − P.e
MIGUEL DE OLIVEIRA. FELlX ALVES PEREIRA foi o primeiro a dar o merecido
valor ao Itinerário de Antonino e a ver nele o único caminho seguro para
a localização de Talábrica. Partindo do princípio de que são exactas as
distâncias mencionadas no mesmo Itinerário, e não havendo dúvidas hoje
sobre a localização das estações Cálem e Aemínio, procura Talábrica
partindo delas. Como, porém, não tinha elementos para apontar o leito
da velha estrada romana, buscou
a zona provável da localização com auxílio do compasso.
Fazendo centro nas duas estações referidas, traçou duas circunferências
de raios iguais às distâncias apontadas no Itinerário entre elas e
Talábrica. A zona de intercessão é a zona
em que deve procurar-se Talábrica. Aplicando o processo, teremos
Talábrica ao norte do Vouga, para além de Albergaria. FELIX PEREIRA
confessa que o processo não pode considerar-se rigoroso, pois presume a via militar romana em
linha recta o que seguramente não é verdadeiro, por ter de obedecer aos
acidentes do terreno. Para corrigir esta deficiência, entende o fecundo arqueólogo que só há um recurso: o exame
local. Este é que um dia dará a chave do enigma, como o deu a Coimbra, atribuindo-lhe definitivamente as honras da velha Aemínio. Os trabalhos de FELIX PEREIRA foram publicados no
Arqueólogo
Português em 1907. Não tenho perante os olhos este volume, mas estou
seguindo ROCHA MADAHIL, que habilmente os condensa no valioso estudo, já
referido, «Cabeça do Vouga».
Parece-me que FELIX PEREIRA está com a razão: é com o
Itinerário que
havemos de descobrir Talábrica; mas, como a aplicação deste depende do
conhecimento prévio do leito da via militar romana, é para este assunto
que preliminarmente devem convergir os nossos esforços. Neste sentido fiz um
despretensioso trabalho, já publicado no Arquivo de Aveiro, sobre a
orientação da estrada romana entre Coimbra e Porto. Medindo por esta as
distâncias do Itinerário, chegamos à conclusão de FELIX PEREIRA − Talábrica é para além
de Albergaria − nas proximidades da Branca.
FELIX ALVES PEREIRA acreditou que a passagem de APlANO,
em que descreve o episódio da subjugação de Talábrica, por Décio Juno
Bruto, se referia à Talábrica, estação do Itinerário de Antonino. E
isto tinham todos como certo, até que a descoberta em Estorãos, perto de
Ponte de Lima, de uma
ara, da época romana, veio levantar a questão da existência de uma
outra Talábrica na região dos Brácaros. E o
Sr. P.e MIGUEL DE OLIVEIRA que no volume IV, págs. 117 a 120 (Arquivo de
Aveiro), trata o assunto e tais razões apresenta, tiradas do próprio
texto de APlANO, que parece não haver mais dúvida de que havia realmente
duas Talábricas.
/
224 /
Li o texto de APlANO, o cap. 73, e fui naturalmente levado a crer que
ele tinha razão. Aquela Talábrica era dos Brácaros. Entretanto, como
este judicioso escritor transcreveu, traduzindo-o também, o cap. 72, por
o considerar necessário à boa
compreensão do capítulo seguinte, fui ler também os capítulos anteriores e a dúvida voltou a intranquilizar o meu espírito. E
vou expô-la aqui com todo o respeito pela opinião do ilustre escritor,
no desejo sincero de algum dia a ver esclarecida.
APlANO ALEXANDRINO viveu, como
disse, no tempo de Trajano, Adriano e
ainda Antonino Pio. É do meado do século II. Escreveu a Romanorum
Historiarum, tratando
o Liv. IV de «Rebus Hispaniensibus».
Dizem os capítulos:
Cap. LXX − Sed pax haud diuturna mansit. Etenim Caepio, frater
Serviliani, frederis hujus auctoris, et ejusdem in imperio successor,
criminando pacta, tanquam indigna
populo romano, primum a senatu impetrarat, sibi ut liceret clam pro
arbítrio Viriatho incommodare. Deinde assidue obtundendo, litterasque
missitando, affecerat, ut idem senatu,
ruptis frederibus, palam bellum Viriatho rursus inferendum
decerneret. Quo senatus consulto fretus Caepio, Arsam
urbem, deserente Viriatho, deditione accepit, et ipsum Viriathum
fugientem, et obvia quaeque vastantem, in Carpetania assecutus est;
multo majores, quam ille copias secum habens, quare Viriathus, ob
paucitatem suorum praelio abstinere satius esse existimans, majori parte
copiarum per vallem
quamdam obscuram dimissa, reliquas in tumulo quodam instruxit, ut speciem dimicare volentis hosti praeberet. Sed
ubi, quos praemiserat, jam extra periculum esse sensit, ad
eos advolavit, tanto contentu hostis tantaque celeritate, ut, qui
insequebantur, quonam se proripuisset, non sentirent.
Caepio, in Vettonas et Callaicos transducto exercitu, illorum agros
depopulatus est.
«A paz não foi, porém, duradoura, porque Cepião, irmão e sucessor de
Serviliano, que a tinha feito, acusando o tratado com Viriato como
indigno do povo romano, conseguiu,
primeiro, liberdade de inquietar Viriato ocultamente e depois,
com insistências e cartas frequentes, que o mesmo senado decretasse, de
novo, a guerra franca, rompendo o tratado. Apoiado neste senatusconsulto, Cepião
recebe a submissão
da cidade Arsa, que Viriato abandonou antes, fugindo e destruindo tudo o
que se lhe opunha. Cepião persegue-o e alcança-o na Carpetânea, com
forças muito maiores do que ele Viriato tinha. Este, não querendo dar
batalha pela inferioridade de suas tropas, despachou a maior parte delas por um vale
oculto aos romanos e foi dispor as restantes num outeiro, como quem se
dispunha ao combate. Logo, porém,
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[Vol. XIV - N.º 55 - 1948]
que julgou fora de perigo os que enviara à frente, correu para eles com
tanto desprezo do inimigo e com tanta rapidez que os que o perseguiam
não puderam ver para onde se precipitou. Cepião então, transportado o
exército para os Vetões e Calaicos, devastou os seus campos.»
Cap. LXXI − Jam vero Viriathi exemplo Lusitaniam multae aliae latronum
manus incursionibus vastabant. Contra quos missus Sext (vel D.) Junius
Brutus, quum per amplissimam regionem (quantam scilicet Tagus, et
Oblivionis fluvius, et Durius, et Baetis, amnes navigabiles,
complectuntur) insequi eos haud consultum duxisset: quippe celeriter huc
illuc
latronum more, transvolantes comprehendere difficillimum,
non comprehendere autem sibi turpe, at ex victis non admodum
insignem sibi fore victoriam, ratus; in latronum patria oppida exercitum
duxit, ut eadem opera et de illis poenas sumeret (ut quos confidebat
ad sua quemque defendenda dilapsuros) et militem suum praeda
locupletaret. Hoc consilio obvia quaeque diripere coepit. Ad cujus vim arcendam, una cum viris mulieres arma capientes, tanta constantia
pugnabant, ut ne in media quidem caede votem emitterent. Fuere tamen, qui,
raptis quae poterant, in montes confugiebant. Quibus petentibus veniam
dedit Brutus, parte bonorum mulctatis.
«Mas já muitos outros bandos de ladrões, seguindo o exemplo de Viriato,
assolavam a Lusitãnia. Sexto (ou Decio) Júnio Bruto, mandado contra
eles, depois de os ter perseguido pela extensíssima região compreendida
pelo Tejo, Lima, Douro, Guadalquivir, rios navegáveis, convencido de que
era dificílimo prendê-los, porque corriam velozmente de um para outro
lado, que não prendê-los era vergonha para si, e que de qualquer modo
não havia de ser muito notável para si a vitória, conduziu o exército
contra as próprias cidades dos ladrões, crente de que cada um correria a
defender as suas coisas, e assim ao mesmo 'tempo que os castigava
permitia que os militares se locupletassem com a presa. De acordo com
esta resolução, começou o saque. Opondo-se ao seu ímpeto, as mulheres,
tomando as armas juntamente com os homens, combatiam com tanta firmeza
que nem mesmo no meio da matança diziam uma palavra de fraqueza.
Algumas, porém, depois de roubar o que podiam,
fugiam para os montes. Brutus concedeu-lhes o perdão que pediram, depois
de confiscada parte de seus bens.»
Cap. LXXll − Deinde trajecto Durio flumine, multa
loca bello longe lateque pervagatus, ab omnibus, qui in deditionem
veniebant, magno numero obsidum accepto, ad Oblivionis, qui dicitur,
fluvium perrexit Brutus, eumque Romanorum primus superavit. Inde ad
Nimin (Nebin? an
Minium?) aliud flumen progressus, quum commeatus, qui ei subvehebatur,
esset a Bracaris direptus, adversus Bracaros
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duxit. Et haec gens bellicosissima est, et hi quoque mulieres armatas
secum in pugnam ducebant; et adeo fortiter pugnabant omnes, ut
praesentem mortem potius occumberent,
quam aut terga verteret quisquam, aut vocem ullam indignam emitteret.
Quim etiam ex mulieribus, quae interceptae reducebantur, aliae sibi
manus afferebant, aliae suomet ipsae liberos jugulabant, mortemque
servitio potiorem censebant. Oppida tamen aliquot in Bruti potestatem
deditione venerunt: quae quidem non multo post rursus desciscentia, ab
eodem de integro sunt perdomita.
«Em seguida, atravessado o Douro, depois de levar a guerra a muitos
lugares distantes e recebido a submissão de muitos, com grande número de
reféns, Brutus dirigiu-se ao chamado rio do Esquecimento e foi o
primeiro dos romanos a atravessá-lo. Avançando dali para um outro rio, o
Minho, porque os Brácaros lhe roubavam os mantimentos que lhe eram
trazidos, contra eles levou as armas. Também os Brácaros, povo
belicosíssimo, levavam consigo à luta as mulheres armadas e todas
combatiam tão vigorosamente que preferiam deixar-se matar a voltar as
costas ou soltar uma palavra desonrosa. Ao contrário, algumas das
fugitivas que eram conduzidas presas, suicidavam-se, outras matavam os
filhos, julgando a morte preferível à servidão.»
Cap. LXXIII − Inter alia Talabriga oppidum fuit, quae, saepius
rebellarat. Eo veniens Brutus, supplicantes oppida nos, et sese ejus arbítrio permittentes, primum transfugas Romanorum
et captivos armaque omnia, adhaec obsides, tradere jussit: deinde, ut
cum uxoribus ac liberis urbe migrarent, imperavit. Quod et ipsum ubi
facere sustinuerunt, circumfusis copiis eos includens, orationem habuit, qua quoties defecissent, quoties quanto conatu bellum
renovassent, edisseruit. Ita metu illis injecto, atque opinione, quasi
gravius in eos animadversurus esset, tamen intra objurgationes istas
iram suam terminavit. Equis et commeatu et pecuniis publicis, cum
reliquo publico apparatu, ademtis, oppidum illis praeter spem,
habitandum reddidit. Post tantas res gestas Brutus Romam redit. Caeterum
earum rerum historiam mihi visum est enarrationi Viriathici belli
jungere, quoniam his eisdem temporibus motus isti, ad Viriathi exemplum,
ab aliis latronum turmis cieri coepti sunt.
«Entre outras cidades que se rebelaram foi Talábrica a que mais vezes o
fez. Brutus, voltando ali, os habitantes da cidade pediram-lhe clemência
e confiaram-se ao seu arbítrio. Em primeiro lugar mandou que lhe
entregassem os trânsfugas dos romanos, os prisioneiros e todas as armas,
além dos reféns; depois ordenou que saíssem da cidade com mulheres e
filhos. Logo que acabaram de o fazer, cercou-os de tropas e arengou-os,
dizendo-lhes que quantas vezes se rebelassem,
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tantas mais violentamente a guerra lhes seria feita. Amedrontados e
convencidos de que mais asperamente se vingaria deles, Brutus
acalmou-se contentando-se só com estas recriminações. Tomou-lhes os
cavalos, mantimentos, dinheiro público e mais apetrechos bélicos,
restituindo-lhes depois a cidade, o que eles já não esperavam. Depois de
tantos feitos, Brutus voltou a Roma.»
Entendi que devia juntar a história destes factos à de
Viriato, porque com o exemplo deste, naquele mesmo tempo, estes
movimentos de guerrilha, começavam a ser feitos por outros turnos de
ladrões.
Ora diz o Sr. P.e
MIGUEL DE OLIVEIRA: «Bastava o texto de APlANO para
concluirmos que a sua Talábriga era um ópido dos Brácaros. O cap. 73 é
uma continuação do anterior, cuja acção decorre no Alto Minho. Se nessa
região aparece a relíquia arqueológica de uma talabrigense, mais um
motivo para não procurarmos em outra parte essa Talábriga. Não era,
aliás, muito natural que nesses tempos se expatriasse para as margens do
Lima uma família pertencente a um ópido do Vouga. Temos, pois em meu
entender duas Talábrigas: a de PLÍNIO e a do Itinerário, na região do
Vouga;
a de APlANO e da Ara na região do Lima».
E ROCHA MADAHIL comenta: «De nada tem valido a justa advertência; há
frases e ideias feitas, a que, fácil e vistoso bordão de apoio, a
literatura regional, pretensamente erudita, se encosta constantemente e
não larga mais; a apoteose do heroísmo dos talabrigenses do Vouga
continua, em tom maior, embora ao Minho, em todos os tempos aguerrido,
as páginas históricas de APlANO pareçam pertencer de verdade...»
Comprimido entre estes dois pilares
− ROCHA MADAHIL e P.e MIGUEL DE
OLIVEIRA − sem literatura nem a pretensão dela, que pode a minha pobre
razão? Apenas expor uma dúvida e os fundamentos dela. Que me perdoem a
ousadia.
Os capítulos LXX − LXXI − LXXII
− LXXIII, fazem parte da história das guerras
de Viriato, que se estende até ao capítulo LXXIV. A razão por que APlANO
incluiu os feitos de Décio Júnio Bruto entre os desta guerra dá-a ele ao
final do capítulo LXXIII.
No capítulo LXIX, que não transcrevemos por desnecessário, conta o
historiador como foi feito o tratado de paz de Viriato com Serviliano,
depois confirmado pelo senado romano. No capítulo LXX conta como Cepião,
irmão, de Serviliano e seu sucessor, rompeu, autorizado pelo senado, o
tratado de paz, primeiro clandestinamente, depois em guerra aberta, atacando Arsa e forçando-a a declarar obediência, que
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aceitou. Viriato estava ali, mas antes que Cepião chegasse, fugiu com as
suas tropas. Cepião perseguiu-o, mas ele, mandando à frente, por
caminhos ocultos, a maior parte das suas tropas, fingiu, com algumas
poucas com que ficou, querer
dar batalha a Cepião. Mas logo que viu que as forças que
tinha enviado adiante estavam fora de perigo, foge para elas com tal
rapidez e desprezo dos romanos que Cepião não pôde saber sequer para onde
tinham ido. Desiste de Viriato e segue de Bética para o norte a assolar
os campos dos Vetões
e dos Galaicos. −
APlANO interrompe os sucessos de Cepião com Viriato para nos contar no
capítulo LXXI que muitas outras forças de ladrões, estimuladas pelo
exemplo de Viriato, devastavam
a Lusitânia com suas incursões. Multae aliae, diz o autor, para
significar que não foram só as de Viriato, mas outras. Contra estas é
que foi mandado o General Décio J. Bruto. A região onde exerceu a sua
actividade guerreira foi a compreendida entre o Tejo e o Lima, o
Douro e o Guadalquivir. Quer dizer, entre o Tejo e o Lima, pela
Beira-Mar, Douro e Guadalquivir pelo interior. Ao princípio, Bruto
adoptou
a táctica de os atacar nas incursões que faziam, mas reconhecendo que lhe não era possível prendê-los, porque se deslocavam com
extrema rapidez de um para outro lado, resolveu atacá-los nas suas
próprias cidades, convencido de que eles acorriam a defendê-las e assim
lhe vinham às mãos. Nelas encontrou resistência das mulheres, que
combatiam com tanto ardor, que morriam sem proferir um grito de cobardia.
Que cidades eram estas? Se o capítulo seguinte começa «Deinde trajecto
Durio flumine...» é evidente que aquelas
cidades haviam de ser a sul do Douro e também ao norte do
Tejo. Não eram, pois, as cidades dos lusitanos na Bética,
nem as do sul do Tejo, mas possivelmente as dos Túrdulos e outros povos
de que fala PLÍNIO, ao sul do Douro. Eram Talábrica e outras.
Aceita a submissão destas, e confiscada parte dos seus bens, Bruto passa
o Douro. − O seu exército leva a guerra a muitos lugares distantes, que
se lhe submetem dando grande número de reféns. E ele segue vitorioso
para o Lima, atravessa-o e já seguia em direcção ao Minho, quando os Brácaros lhe começam a roubar na retaguarda os abastecimentos
que lhe eram levados das cidades submetidas. Contra eles conduziu as
tropas e lá foi encontrar as mulheres aguerridas como as que tinha encontrado antes do Douro.
Et haec gens bellicosissima
est, et hi quoque mulieres armatas secum in
pugnam ducebant. E também estas mulheres preferiam a sua morte e a dos
filhos à escravidão. Algumas das suas cidades submeteram-se a Bruto, mas
rebelando-se pouco
depois, foram então por ele inteiramente subjugadas. APlANO
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diz: non multo post rursus desciscentia; rursus, de novo, outra
vez, porque estas mesmas cidades já lhe tinham prestado obediência, logo que
atravessou o Douro. Rebelaram-se a primeira vez assim que atravessou o
Lima, e a segunda depois de novamente as submeter quando voltou contra elas por lhe
roubarem os abastecimentos. A esta segunda rebeldia respondeu Bruto
submetendo-as então inteiramente − ab
eodem de integro sunt perdomita − E aqui se termina o episódio dos Brácaros. As suas
cidades, aquelas que se
haviam rebelado pela segunda vez, foram inteiramente submetidas.
O capítulo LXXIII conta o episódio de Talábriga e
começa «Inter alia Talabriga oppidum fuit, quae, saepius
rebellarat». Mas que outros são estes ópidos? Serão aqueles de que
trata no capítulo anterior, como quer FELIX PEREIRA? Não me parece,
porque o que o autor tinha a dizer destes, disse-o no capítulo anterior,
rematando o assunto com a afirmação de que Bruto os tinha submetido
integralmente; porque a palavra alia nos está a mostrar que aqueles ópidos, dentre os quais aponta Talábrica como o que mais vezes se
revoltou, eram outros, diferentes dos que tratou no capítulo anterior.
Se APlANO quisesse referir-se a estes, não teria certamente empregado a
palavra alia mas ea, e assim teríamos a construção: Inter ea Talabriga fuit, quae, saepius rebelarat. E a tradução é
bem diferente.
Em conclusão: para mim, a Talábrica de APlANO é a
Talábrica do Vouga.
E que prova a Ara de Estorãos?
Camala Arqui f. Talabrigensis.
Genio Tiavrauceaico v. s. I. m.
É, dizem, do século II ou
III. Mas nestes séculos já a civilização romana se tinha derramado por toda esta região e os povos
que a habitavam tinham abandonado o relativo isolamento em que antes
viveram. As exigências das leis administrativas, fiscais, processuais,
punham estes povos em contacto permanente por estradas militares e
outras vias de comunicação fáceis e cómodas; os costumes e hábitos
romanos já se tinham generalizado com a própria língua latina, criando
um intercâmbio grande de ideias e valores. Os próprios serviços públicos
tinham fatalmente de deslocar pessoas e famílias dumas cidades para
outras. Até os deuses e deusas, os Lares e os Génios, tinham alargado o
âmbito geográfico do seu poder. Já não eram só os habitantes duma cidade
que faziam e pagavam votos ao seu Génio, eram também os de outras, por
vezes muito distantes.
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Eu ouso afirmar que nada me prova melhor do que a Ara de Estorãos, que
não era ali junto ao Lima a Talábrica de APlANO. Que necessidade tinha
Camala de identificar seu pai,
dizendo que era Talabrigense, se essa era uma qualidade comum a todos os
habitantes da cidade? Disse que ele era Talabrigense, precisamente para
o distinguir dos outros, pois é o mesmo que dissesse que seu pai era de
fora, não era dali; nasceu noutra cidade que se chamava Talábrica.
Não há, pois, que estranhar que fosse um Talabrigense das margens do
Vouga para as do Lima. Já no seu tempo
iam espanhóis para Roma a governar o Império.
Uma só Talábrica, e esta onde a situa o Itinerário. Vacca, fica para o
próximo artigo.
Rio de Janeiro.
AUGUSTO SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |