DIZ
BRANDÃO, na Monarquia Lusitana (vol. 7º, pág 371): «Destes filhos
dos Infantes, a quem se dava o titulo
de Infanções, pode ser que alguns vieram morar na
terra de Santa Maria, que chamamos da Feira, na Comarca do Porto, que algum tempo se chamou Cidade de Santa Maria;
porque (como se colhe de escrituras do Mosteiro de Pedroso) esta terra
foi habitada de gente ilustríssima
pelos anos de novecentos até mil, quais foram o Duque, ou
Capitão Mem Guterres e o Conde Mem Lucídio, e os Senhores do Marnel, mui chegados todos em parentesco aos reis
de Leão».
O Livro Velho de Linhagens diz: «D. Egas de Sousa foi casado com D.
Gontinha Gonçalves filha de D. Gonçalo Trastamires e de D. Mécia Godins,
e fez em ella D. Mem
Viegas, que casou com D. Teresa Fernandes, filha de
D. Fernão Gonçalves do Marnel».
Os outros livros de Linhagens (o
Antigo, o do Colégio
dos Nobres, e o de D. Pedro) divergem um pouco deste,
pois, segundo estes, D. Mem Viegas casou com D. Elvira
Fernandes, filha de Fernando Afonso, que foi de Toledo e
casou com D. Urraca Gonçalves filha de D. Gonçalo Viegas
do Marnel.
Ou se chamasse Teresa Fernandes ou Elvira Fernandes,
o que não há dúvida é que se trata de uma mesma pessoa.
A referência de BRANDÃO na
Mon. Lus. e as passagens
dos Livros de Linhagens, antes transcritas, constituem toda
a base da história dos Senhores do Marnel. Foi sobre estes
frágeis apoios que se arquitectou a existência de numerosos
e ricos Senhores que sobre o Monte MarneI ou nas imediações tiveram seu palácio de suntuosidade condizente com a sua riqueza e
poderio. Assim se exprime PINHO LEAL, no
seu Dicionário, sob a rubrica Marnel:
«Houve aqui em tempos antigos a vila chamada de Lamas ou do MarneI, cujas
ruínas ainda hoje se vêem ao Sul − (aliás
a N.) − das ruínas do antiquíssimo mosteiro de Santa Maria de Lamas
/
271 / ou Santa Maria do MarneI, pois também se lhe davam
ambos os nomes.»
«Na vila existiram os paços dos nobres e famosos senhores do MarneI (vide Feira) que tantos e tão assinalados serviços prestaram a Portugal durante os reinados dos nossos primeiros
monarcas; os de Fernão Gonçalves do MarneI e
depois de sua filha D. Teresa Fernandes do MarneI e de sua
sobrinha D. Flâmula; os de Enderquina Pala e os de outros nobres
cavaleiros − os Sousas do MarneI eram dos mais
nobres fidalgos deste reino. Descendiam dos reis de Lião
e desta família tratam − a Hist. Gen. da Casa Real − a Hist.
Gen. da Casa de Sousa − Mon. Lus., parte 3.ª, L. II − cap. 10.º,
págs. 317 e 320; Benedict. Lusitana, 1.º 2.º tract I − parte 1.ª,
cap. 18; Flores de Hesp. e outros muitos livros.»
Sob a rubrica Feira:
«O que é certo é que no ano de 990, reinando em Castela D. Bermundo
II (o gotoso), dois ilustres condes chamados Mem Guterras e Mem Lucídio, juntos com os Senhores
do MarneI (todos do sangue dos reis de Leão), estando Lancóbriga abandonada e quase destruída, a reedificaram e povoaram de cristãos, construindo-lhes então (ou reedificando-lhe), o seu
nobre castelo, fortíssimo para aqueles tempos em que ainda não havia
artilharia....»
PINHO LEAL fala-nos em Fernão Gonçalves do MarneI,
para falar depois em Enderquina Pala, parecendo indicar
que esta viveu depois daquele. Vamos ver quem foram estes senhores para
os colocarmos em suas épocas e ver que relação eles tinham com os tais Senhores do Marnel.
BRANDÃO fala-nos nos duques Mem Guterres e Mem Lucídio, mas não nos diz
quem foram e o que foram.
Apoia-se num documento de Pedroso. Na verdade, um
documento de Pedroso refere-se a um duque Mem Guterres,
que foi casado com Enderquina, irmã de Elvira, mulher de
Ordonho I.
Assim diz o documento «... Heo quod ego gondesindus
prolis erus et adosinda acepit mulier in coniumgio nomine
enderquina conmento pala filia dux menemdus gutierizi et
ermesinda iermana de domna geluira regina que fuit mulier de ordonius
rex...»
Este rei Ordonho I faleceu em 866; a escritura referida
é de 897; a este tempo já Enderquina Pala tinha falecido deixando quatro filhos criados. Seu pai, se era vivo, devia ser
velho em 897. Não pode saber-se onde viveu este conde
Mem Guterres, se entre Minho e Douro, se entre Douro e
Vouga. É certo que nesta última região era senhor de muitos bens, nos
quais fez mosteiros (... et facimus monesterios in
nostras uillas que sunt inter durio et uauga».
Antes de Mem Guterres, foi
duque do Porto e Tui, Hermenegildo Guterres,
/
272 /
pai do Conde Guterres Mendes, e avô de S. Rosendo. Estes viveram em
uilla − Salas − (Minho) «... in qua Comites palatium suum habitabant».
(Vida de S. Rosendo).
Durante todo o século X não encontrei outro Mem Guterres, governando em
Portugal.
Na primeira metade deste século foi governador de Tui e do Porto
Hermenigildo Gonçalves Mendes, casado com a célebre Mumadona que fundou o
mosteiro de Guimarães ao começar a segunda metade do século X,
Mem Lucídio foi conde com Afonso
V que reinou no primeiro quartel do
século XI, falecendo em 1027. Foi este rei que reconquistou as terras
dentre Douro e Mondego,
tomadas por Almançor. Mem Lucídio foi seu companheiro de armas. No
inventário que fazem de seus bens D. Gonçalvo e mulher D. Flâmula, em
1050, diz o documento: «...quomodo diuisi illas dom gunzaluo quando
sedia in
monte maiore per manus de rex domno adefonso et per sua persolta et per
ueritate et per manus de ille comes Menendus Luci qui illa terra
imperabat». (P. M. H. Doc. CCCLXXVIII).
Comparando este documento com o DXLlX, verifica-se que a divisão e
inventário do documento anterior foram feitos em 1017, estando portanto
Mem Lucídio neste ano em
Montemor, onde já era Conde governador. Diz o documento
«In era M.ª L.ª V.ª (1017) si ganaui domno Gundisaluo iben
egas et domna Flamula ereditates in riba de uauga in diebus
domno adefonso rex quando sedia in monte maiore de manu de ille rex...»,
Assim os dois Condes Mem Guterres e Mem Lucídio viveram em séculos
diferentes, o primeiro no fim do século IX, o segundo no princípio do
século XI.
Estes Condes, como todos os outros,
foram senhores de muitos bens em
toda a região dentre Douro e Vouga, todavia, em nenhum encontramos o
título de Senhor do Marnel.
Por todo este século X encontramos homens ricos senhores de numerosas
vilas entre o Douro e Vouga, entre as quais muitas nas imediações do
Marnel. Estes ricos proprietários constituíam sem dúvida a nobreza da
região, os homens bem
nascidos, alguns deles descendentes dos Condes governadores que por aqui ficaram e foram tronco de numerosas famílias
cuja fidalguia atravessou os séculos da história de Portugal.
Vou referir-me apenas a alguns daqueles que possuíram terras
nas proximidades do Marnel, pois só estes interessam à nossa
investigação.
O documento de 897 fala-nos de uma Enderquina Pala. Não é desta, porém,
que trata PINHO LEAL, pois já era falecida em 897 e foi casada com
Gondesindo.
A Enderquina a que se refere PINHO LEAL aparece-nos
em 957, data em que doou ao mosteiro de S. Salvador de
/
213 / Sperandei − Viseu − a sua vila de Aqualada (Aguada de Baixo)
e o mosteiro do MarneI «Ego exigua famula dei inderquina
qui et palla... ideo offero pro remedio anime mee suburbio
colimbrie uilla mea propria aqualada cum sua ecclesia uocabulo sancti
martini... Adicio etiam monasterium de marneI cum omnibus adiunctionibus
suis pernominata sancta maria...» (Doc. LXXIII, P. M. H.).
Esta doação é feita só para remédio de sua alma. Não fala na de seu
marido Suário nem este assina, o que me leva a supor que nesta data a Endérquina, que também se chama
Pala, era ainda solteira.
Em 961 esta mesma Enderquina doou ao mosteiro de Lorvão o mosteiro de
Esperandei, com Aguada e Santa Maria de Lamas do MarneI, que lhe andavam
agregadas pela escritura anterior, acrescentando-lhe muitas outras vilas
«...concedimus ad jam supradictum monasterium (Lorvão) uilla
aqualada quomodo exparte cum barriolo et de alia parte cum auelanas et cum
sangalias et monasterium de marnelle
que vocitant sancta maria de lamas cum suas uarzenas...»
(P. M. H., Doc. LXXXIV).
Esta larga doação é feita para remédio da sua alma e da
de seu marido Suário Sandino. Era, pois, casada em 961.
Em 976 volta a fazer nova doação ao mosteiro de Lorvão
de uma terça parte da vila de alualat «... Ego Enderkina qui et palla... Annuit atque conuenit spontanee mee uolumptatis
electio ut concederem atque contestarem uobis tertia de uilla de alualat...» (P. M. H., doc.CXVII).
− Esta doação é feita em benefício de sua
alma e da memória de seu falecido marido Suário «... pro memoria
perenniter conseruanda de uiri meo pie memoria domno suario». Era viúva
em 976.
Parece que em 981 era ainda viva, porque neste ano Gonçalvo Mendes, de
que falaremos em seguida, fez doação de Lamas e Paus ao mosteiro de
Lorvão. Na confrontação
de Paus diz «... et diuidet per montis meison frido et per uilla de
hanni quod est de domna palla.»
Se diz que a Vila de hanni (nas terras que ficam adiante
da Gândara de Serém, junto à estrada velha?) pertencia à D. Pala, é
porque esta era ainda viva a esse tempo.
Quem era esta Enderquina Pala, viúva de Suário Sandino? As escrituras de 957 e 961 foram confirmadas pelo rei Sancho, o
gordo, e a de 961 pelos reis Ramiro lII e Bermudo lI. Se esta
confirmação lhes foi necessária é porque havia possíveis direitos
reais. Isto mesmo resulta das palavras de Ramiro lII ao confirmar a
segunda escritura: «Ranemirus rex unc factum quam fecerunt auios et
parentes nostros ego confirmo». Enderquina, por si, devia, assim, ser
pessoa muito chegada à corte, senão parente destes reis, como também pode inferir-se do documento de 976 de Alualat.
− Nesta
/ 274 / doação, que é apenas de
uma terça parte, não há confirmação
real, porque ela mesmo confessa que recebera esta 3.ª parte de seus pais e avós, cabendo-lhe em partilha com seus irmãos:
«Et abui ipsa uilla de parte parentum uel abiorum meorum...».
Ora uma terça e mais uma terça da terça já pertenciam ao
mosteiro de Lorvão por lhe terem sido doadas em 935 por Gundemirus e
Susana. Nesta escritura não houve confirmação real, mas houve-a naquela de 933 pela qual os dois
doadores compraram a outros a terça e terça da terça (P. M. H.,
doc. XXXIX e XL).
Também o rei Ramiro II tinha quinhão na vila de
Albalat, pois em 943 doou ao mesmo mosteiro de Lorvão
duas partes da mesma vila «... Ego Ranemirus rex... donaremus atque contestaremus uobis duas partes de uilla de
alualat».
Todas estas circunstâncias, e ainda a de Enderquina possuir vilas e
mosteiros situados em regiões diversas, como MarneI, Coimbra, Viseu, nos
convencem de que ela foi
pessoa grada. Não foi uma fidalga do Marnel e viveu
talvez em Sever, donde penso que era seu marido Suário.
Outro nome frequente nos documentos desta
época relativos à região do Marnel é Gonçalo Mendes. − Este Gonçalo
Mendes era filho de Mumadona e de Hermenegildo Gonçalves Mendes Conde de Tui e do Porto e governador da província de Entre
Douro e Minho. Em 950 Mumadona era viúva e fazia partilha dos bens do casal com seus filhos Gonçalvo
− Didacus − Ranimirus − Onecha − Nunum e Arriane
(P. M. H., doc. LXI).
O filho Gonçalo Mendes, foi senhor da 4.ª parte da vila
de Lamas e da vila de Paus, que doou ao Mosteiro de Lorvão em 981 − (P.
M. H. doc. CXXXII).
Os cristãos possuíram, mais ou menos pacificamente, a
região entre Douro e Mondego, durante os três primeiros quartéis do século
X. O último, porém, foi todo preenchido com as guerras de Almançor, que recuaram os limites dos estados
cristãos até às serranias das Astúrias. Foi sobretudo com
a de 997 que aquela região entre Douro e Mondego, para
Oeste de Caramulo e Gralheira, se perdeu inteiramente. Coimbra tinha
caído em 987 e também Lamego e Viseu. Mas pouco tempo dominaram os árabes nesta
estreita faixa,
porque os documentos que a ela se referem mostram que ela já estava sob
o domínio cristão nas duas primeiras décadas
do século XI. Porque foi a última a perder e a primeira a
recuperar a autoridade cristã, não é fácil sabê-lo, mas, parece-me que só poderá ter sua explicação
nas condições de guerra de
então. Os árabes em suas incursões à Galiza procuraram sempre os caminhos através de Leão ou por Coimbra, Viseu,
Lamego. A zona marítima ficava sempre ao
/
275 /
abrigo destas destruições e isto, certamente, porque não era zona
fortificada, não havendo nela castelos a tomar que pudessem ao mesmo
tempo servir de apoio na retirada. Qualquer incursão por este lado,
deixando de pé a linha fortificada de Coimbra, Viseu, Lamego, não
deixaria de ser perigosa. Em 997 esta linha estava seguramente em poder
dos árabes, e desta maneira a incursão pôde fazer-se pela região
costeira, até ao Porto, onde as forças se juntaram às que vieram pelo
mar, para o ataque a Compostela. Foi precisamente esta incursão que
levou o terror e a destruição à zona do Vouga. Assim diz um documento de
Sever de 1019: «...et tunc surrexerunt in ipsis temporibus filii
perditionis gens ismaelítarum et prenderunt ipsam terram in qua erat
illud monasterium ipsam et aliam de dorio usque in cordoba...» (Doc. CCXLII).
Neste tempo vivia em suas terras dentre Douro e Vouga Egas Erotis
(«... eo quod auitabit egas erotez in terram portugalensis cum gens sua in
logo predicto inter doiro et uauga per plures annos et consurrexerunt filii ismaelidarum super christianos
et exiuit ipse dommo egas de sua
terra...» (Doc. CCCLXXXIV P. M. H.). Quando surgiram os ismaelitas
fugiu de sua terra para a terra de seu cunhado Froia casado com sua irmã
Adosinda, à qual comprou a vila Viariz. Passados alguns anos voltou às
suas terras de entre Douro e Vouga. Este Egas Erotis foi senhor de
numerosos bens entre Douro e Mondego. Seu filho Gonçalo Viegas (Gundisalvus
iben Egas) casado com Flâmula fez inventário de seus bens, em 1050 (doc. CCCLXXVIlI.
P. M. H.). Diz o inventário «herdades que ganhou dom Gonçalo
e D. Flâmula nas
margens do Vouga». E menciona: Sali; Santa Maria de Lamas;
Fereganes; Castrelo; Arravel; Valongo; Fermentões; Serém;
Jafate; Cedrim; Paradela; Pedaçães; Segadães; Bolfear; Paradela de
Barrô; Fermentelos; Aurentana; Recardães; Aveiro.
Em 1077 − Pelágio Gonçalves filho ou neto de Gonçalo Viegas e sem dúvida
seu herdeiro, fez também inventário dos seus bens nas margens do
Vouga. Menciona as mesmas do anterior. Por este documento se verifica
que Gonçalo
Viegas adquiriu ou readquiriu aquelas herdades em 1017, no reinado de
Afonso V. sendo governador da terra o Conde Mem Lucídio. «... ln era
M.ª L.ª V.ª si ganaui domno Gundisaluo iben egas et domna flamula
ereditates in riba de uauga in diebus domno adefonso rex quando sedia in
monte maiore de manu de ille rex et diuisi illas tam de auolenga quam
etiam de ganantia...» (Doc. DXLIX P. M. H.). Já antes me referi a
estes documentos, para localizar Mem Lucídio.
Em tempos de Fernando Magno, 1059, governavam Portugal com o nome de lnfanções, três Condes: Gomes Echigas
− Mem Gonçalves − Godino Viegas − (Doc. CCCCXXI).
/
276 /
Em 1064 − Fernando Magno retomou Coimbra aos Mouros e fez governador de toda a província de entre Douro e
Mondego a Sesinando, que o ajudara naquela empresa. Sesinando procura repovoar este vasto território e para isso
faz
largas doações a seus afeiçoados. Aqui nos começam a aparecer novos Senhores de terras, amigos e protegidos de Sesinando. Mas não encontrei documentos referentes às terras
do MarneI, o que indica que estas terras continuavam na
posse dos herdeiros de Pelágio Gonçalves, como foi determinado na escritura de 1077 atrás referida. Apenas um
− João Gondesindes com sua mulher Ximena Forjaz, compraram em 1101 a Diogo Pires e Mulher as porções que estes
tinham nas vilas de Valongo, Melares e Laneses, no Marnel.
(Doc.tos Medievais − pág. 42). Ximena Forjaz fez doação
destes mesmos bens, em 1110, à Sé de Coimbra (Doc. Medievais − pág. 319). Este João Gondesindes, durante a última
década do século XI e primeira do século XII, isto é, durante
o governo do Conde D. Henrique e parte do de D. Teresa, comprou na terra
de Santa Maria, e sobretudo em Lafões,
inúmeras propriedades que o tornaram um dos mais ricos
Senhores da região. Todavia, não foi Senhor do Marnel.
Disse antes que, no reinado de Fernando Magno em 1059,
fora Infanção em Portugal Gomes Echegas, filho do Conde
Echego. Gomes Echegas casou com D. Gontrode Nunes
neta de D. Fernando. Deste casal nasceu o filho Egas Gomes
de Sousa que casou com D. Gontinha Gonçalves, filha de
Mem Gonçalves, o lidador. Seu filho Mem Viegas casou
com Elvira Fernandes, neta de Gonçalo Viegas do Marnel.
Quem era este Gonçalo Viegas do Marnel?
Diz o Livro de Linhagens
de D. Pedro no tít. XLIII:
«E dona ouroana Reymondo sua irmã foi casada com
Anrrique Fernandes o Magro. Em tempo de El-rey D. Afonso, o que filhou
Toledo, havia um Mouro em Cordova que era
rico homem e mui fidalgo e de grande campanha e era mui
bom cavaleiro darmas e veio-se para el-rei dom Afonso referido, e el-rei dom Afonso o rogou tanto que o houve a tornar cristão, e baptisou-o e foi seu padrinho pôs-lhe o nome
dom Fernando Afonso e herdou-o muito bem e casou-o com
D. Urraca Gonçalves filha de D. Gonçalo Viegas do Marnel.
Em aquele tempo este dom Fernando Afonso fez em esta
Urraca Gonçalves um filho e uma filha; a filha houve nome
D. Elvira Fernandes e o filho D. Henrique Fernandes, o Magro.»
Este rei Afonso que tomou
Toledo é Afonso VI e o
acontecimento deu-se em 1085. O mouro Fernando Afonso,
que ele catequizou, baptizou, herdou e casou com D. Urraca Gonçalves
filha de Gonçalo Viegas do Marnel, é homem de seu tempo. Gonçalo
Viegas é portanto, da geração anterior,
/
277 /
[Vol. XIII -
N.º 52 - 1941]
da geração do rei seu pai, Fernando Magno, e avô
Afonso V.
Ora vimos anteriormente que o filho de Egas Erotes,
Gonçalo Viegas, senhor de muitos bens nas proximidades do
Marnel e de muitos entre o Douro e Vouga, que lhe tinham
sido confirmados por Afonso V em Montemor em 1017, pediu
ao rei Fernando; em 1053, que o confirmasse e integrasse na
posse de Viariz que lhe andava usurpada pelos primos filhos
da tia Adosinda, o que o rei fez. (Em 1017 já este Gonçalo
Viegas era casado, devendo, portanto, em 1053, ter mais de
cinquenta anos. Neste mesmo ano de 1053, Gonçalo Viegas
e um Pelágio Gonçalves confirmam uma escritura de doação
ao mosteiro de Vacariça das vilas Pedrosa, Maniozi, Scapanes
e Cidi (P. M. H., doc. CCCLXXXV). A confirmação de Gonçalo Viegas era necessária, porque ele era quinhoeiro de todas
ou de algumas destas vilas, como se vê do doc. CCCLXXVIlI.
Talvez pela mesma razão, Gonçalo Viegas esteve presente
a uma escritura de doação ao mesmo mosteiro da Vacariça
das vilas de Palatiolo e Santa Cruz − em 1057 (doc. CCCCI).
No mesmo ano de 1057 assinam escritura de doação de umas
salinas em Esgueira − Gonçalo Viegas e Pelágio Gonçalves
(P. M. H., doc. CCCCV).
Numa doação de data incerta, mas deste reinado de Fernando, fazem parte
dos bens doados Arravel e Recardães,
onde também é quinhoeiro Gonçalo Viegas. Este confirma
essa doação.
Em 1077 − é Pelágio Gonçalves
que pede a D. Fernando
que confirme os descendentes de Gonçalo Viegas nos bens
que foram confirmados a este em 1050. Esta confirmação
parece ter-se tornado necessária, por alguma atitude hostil
de Sesinando, nomeado governador de toda a terra do Mondego ao Douro por D. Fernando, após a tomada de Coimbra,
pois Pelágio declara que ele era seu inimigo.
Sem dúvida, este D. Gonçalo Viegas foi pessoa poderosa
e de alta linhagem em tempo de Afonso V e D. Fernando.
Egas Erotes, que teve de fugir à invasão de Almançor, abandonando as terras dentre Douro e Vouga em que vivia, foi
acompanhado naturalmente pelo filho, que voltou depois
com Afonso V a combater os mouros e a retomar as terras
de seu pai e outras que o rei lhe deu. Na confirmação de 1017,
deste rei Afonso V, foi feita pelo Conde Mem Lucídio a
separação das herdades que lhe vieram de herança de antepassados,
daquelas que ele adquiriu. E ou por alguma acção dele
nestas lutas de reconquista junto ao Marnel, ou, o que é mais
provável, porque tivesse sua habitação neste local ou proximidades, chamou-lhe o
Livro de Linhagens Gonçalo Viegas
do MarneI. Inclino-me francamente para esta última conjectura em virtude dos
Livros de Linhagens identificarem
/ 278 /
frequentemente as pessoas com a referência ao lugar em que habitavam.
Gonçalo Viegas teve filhos que lhe sucederam nos bens: Pelágio
Gonçalves, Urraca Gonçalves e porventura outros. Mas porque esses
filhos, casando, não viveram na casa de seu pai, não houve neles a
referência ao MarneI. Urraca Gonçalves casou com o Mouro Fernando Afonso
e deste casamento vieram os filhos D. Elvira Fernandes e Henrique
Fernandes. Elvira casou com o Conde Egas Gomes de Sousa; Henrique
Fernandes o Magro casou com Ouroana Reymondo. Estes foram os maiores
troncos da fidalguia portuguesa.
Gonçalves Iben Egas, filho de Egas Erotes, companheiro de armas dos reis
Afonso V e Fernando, terá sido pois o grande Senhor do MarneI.
E o palácio? Bem podem os curiosos procurar-lhe os alicerces: naqueles
séculos os fidalgos não conheciam palácios. Quando muito, casa assobradada. No sobrado a habitação, por baixo celeiro, adega e muitas vezes
currais do gado. Entre as obrigações dos vizinhos impostas nos forais,
aparece algumas vezes a de carregar a palha para a cobertura do palácio
do rei.
Rio de Janeiro.
AUGUSTO SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |