CADA
vez me convenço mais de que a história do nosso património artístico está muito longe do que seria para
desejar, impondo-se como base para ela a visita aos
respectivos monumentos.
O túmulo do cavaleiro e esforçado guerreiro de D. Afonso
V, João de Albuqerque, em Aveiro, para o qual chama a atenção dos estudiosos o Senhor
Dr. FERREIRA NEVES, no fasc. n.º 14
do Arquivo do Distrito de Aveiro, de 1938, motiva as presentes considerações.
O artigo deste Ilustre Professor não é um estudo de
erudição artística, mas de documentação iconográfica, cabendo-lhe a grande honra de ter exumado do esquecimento e criminoso
abandono em que estava esta magnífica peça, restos de uma escola prestes a extinguir-se já à data em que foi executada.
O seu justo apelo, felizmente, despertou simpatias de
verdadeiros amigos do famoso túmulo, que levaram o seu esforço até conseguirem a colocação dele no Museu Regional
como documento digno de apreço e estudo.
Reforça o seu trabalho com uma proveitosa colecção de
documentos referentes à pessoa de João de Albuquerque e sua mulher Dona
Helena Pereira, marcando a sua vida desde que mandara fazer o túmulo em que ambos repousariam.
Quando em 1945 foi finalmente arrancado da parede a que estava argamassado, verificou-se então que necessitava
de ser limpo com o maior cuidado e carinho.
Como recentemente se tenha concluído esse trabalho,
tive a honra de ser convidado a visitá-lo pelo meu Ilustre
Amigo e Senhor Doutor João Pereira Dias; para lá partimos em 25 de Abril
último.
Interessado por tão raro monumento, seja-me permitido expor a minha opinião artística sobre as observações aí
colhidas.
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Esta arca tumular é obra da Escola Coimbrã (daí o meu verdadeiro interesse) dos fins do século de quatrocentos (1478) de estreito
parentesco com as pias baptismais da Sé Velha e de Leça do Bailio,
trabalhos incontestavelmente da mesma
oficina, e feitas em pedra de Ançã; tem as seguintes dimensões: 2,30 de comprimento, 0,90 de largura por 0,95 de altura.
Principiarei por mostrar a arca feita aqui e seguida muito de perto por
João de Albuquerque, que certamente
teria a sua residência habitual nesta cidade (talvez sua terra natal)
ditando ao mestre pedreiro o significado simbólico das paredes da arca em
que se salientam os escudos heráldicos, seu e de sua mulher, já então,
havia muito, falecida.
Em cada uma das faces laterais tem dois brasões seguros por quatro
anjos, cujas asas graciosamente vão terminar em
longas e movimentadas folhas de carvalheiras em estilo
gótico.
No facial direito, os dois escudos têm um significado iconográfico
tocante, mesmo cheio de ternura do marido para com a falecida esposa.
O de Dona Helena é o que mais próximo da cabeceira está, tendo na metade
da esquerda do brasão as armas do marido e na outra metade a cruz
florenciada dos Pereiras; o brasão é circundado por uma coroa de
martírio em que intencionalmente faltam os clássicos espinhos.
O do cavaleiro João de Albuquerque é em forma de concha como os escudos
de guerra, com a abertura para observar os movimentos do inimigo nos
combates de cavalaria, e, como o da esposa, é igualmente circundado por
uma coroa mas de flores e belos frutos.
Na face, aos pés, o simbolismo é igualmente digno de simpatia,
atendendo à leitura da epígrafe estudada pelo Senhor J. M. CORDEIRO DE
SOUSA, que diz: «Com ele jaz a muito virtuosa D. Helena Pereira, uma só
sua mulher».
Aí o escudo é quadrado em lisonja e seguro por duas
figuras entre folhagens, apenas revestidas de pelagem
natural;
a meu ver, elas devem representar Adão e Eva(1) símbolo
da fidelidade conjugal.
Cobre a figurada Eva, com os
seios nus, além da pelagem natural, uma longa cabeleira até aos pés; isto deve significar que, para o marido, não existia outra mulher; para
a
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126 / mulher, não existia outro homem. Há lá significado mais poético,
lembrando-nos o século XV!
Na face da cabeceira está outro escudo com o brasão de
João de Albuquerque encimado por uma viseira, seguro igualmente por dois
anjos de magníficas roupagens, cruzando-lhe o peito uma estola litúrgica.
A pesada cobertura da tampa é moldurada
por um grosso cordão revestido de folhagem de carvalheira, tendo aos
ângulos esculpida uma cabeça de animal; no espaço liso sobre a tampa devia de ter sido gravado o
epitáfio referente a sua mulher apenas, em letras de relevo.
Eu estou convencido de que logo que João de Albuquerque terminou o contrato com os frades, o túmulo devia ter sido
transportado para Aveiro e colocado na sua capela, ao centro, e feita
então a trasladação das cinzas de sua mulher(2).
A arca devia primitivamente pousar em pequenos blocos
de pedra, possivelmente esféricos e não exceder a altura da barba de
qualquer pessoa, para se poder ler o que ali estava escrito.
Esta é a minha opinião enquanto à arca propriamente dita, porque a
jacente e os leões nada têm que ver com o trabalho primitivo; as razões
saltam aos olhos do observador atento.
Principia porque a pedra em que está feita não é a mesma
da arca; é das pedreiras de Portunhos, mais branca do que a de Ançã e
menos oxidável.
Segunda razão, é a estátua ser uma aplicação de que não há exemplo, porque o vulto em regra geral é tirado da pedra
da própria tampa.
Terceira, é o estilo em que este trabalho está feito, puramente manuelino, distanciando-se da arca algumas dezenas de anos.
Outro motivo para reforçar o exposto, são os vestígios de terem sido serradas simetricamente as duas pernas entre os joelhos e
os pés; chamei para o caso a atenção do meu Ilustre Amigo e Senhor
Doutor Pereira Dias, mostrando que se me afigurava a estátua ter ficado
mais comprida do que o vinco marcado na tampa, vendo-se por isso o artista
obrigado a acertá-la.
Esta minha observação não encontrou apoio nas pessoas presentes, que
atribuíram a mutilação ao facto da estátua se ter partido quando das
muitas mudanças que lhe fizeram.
Há mais razões, se estas não bastarem: são as proporções
avantajadas dos acrescentos, que se não harmonizam com o todo da
arca; vê-se bem que foram feitos longe da vista da estátua, tendo o
artista executado a obra sem a ter
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127 / visto, sujeitando-se às medidas que lhe forneceram, nem
sempre rigorosamente exactas.
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Túmulo de João de
Albuquerque antes de ser retirado para o Museu de Aveiro, onde
actualmente se encontra. |
Num problema de arte como este, tudo deve ser bem
estudado, mesmo os mais insignificantes pormenores; veja-se ainda isto.
Julgo que se não deve pôr de parte a opinião do cronista
da Ordem, Frei LUCAS DE SANTA CATARINA, ao referir-se ao
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túmulo, quando ainda estivera ao centro da quadra da capela de Jesus; a
confusão deve ter partido quando dos melhoramentos (acrescentos) aí
feitos da estátua e leões... E feitos por quem?
Eu julgo ser possível que por iniciativa de algum dos netos de João de
Albuquerque, este Jorge Moniz talvez, que houvesse ido de visita aos
túmulos de seus avós em Vila do Conde, na altura em que ali se estavam
lavrando os motivos Renascença, que lá se vêem, por artistas de Coimbra.
E que ao passar, no seu regresso, por Aveiro, achasse pobre demais o
túmulo que ali guardava as cinzas dos avós, resolvendo então mandar-lhe
fazer a estátua e os leões como em regra geral todos os moimentos por
ele vistos têm.
Agora mais do que nunca entendo que estas duas obras, a de Vila do Conde
e a de Aveiro, estão ligadas pelas épocas e artistas que fizeram os
melhoramentos que estão prendendo a nossa atenção.
A data em que a arca em questão foi feita, último quartel
de
quatrocentos, a escola francesa do Renascimento em Coimbra não havia
influenciado os seus artistas, agarrados aos seus velhos processos
herdados do Gótico prestes a extinguir-se.
Resta-me fazer uma última consideração: a epígrafe então aberta, em
torno da famosa arca, foi gravada quando da colocação da jacente e dos
leões, pelos artistas que ali foram
assentar essas peças e não o devia ter sido em vida de João de
Albuquerque.
O autor da preciosa arca deve ter sido um artista para nós mal
conhecido, como muitos dessa época, em consequência do seu isolamento e
da sua exagerada modéstia.
Convém ainda aludir ao brasão desta família, encontrado na Sé Velha e
existente no Museu Machado de Castro; é do século XVI, em estilo
manuelino, assenta sobre uma oval circundada por uma corda; por estar muito mutilado, não se podem ler os
caracteres ali gravados.
Coimbra, 11 de Maio de 1947.
LOURENÇO CHAVES DE ALMEIDA
(Ferreiro de Arte) |