DEPOIS destas notas
escritas, hesitei no título.
Fui levado da simples descrição de uma pedra de
armas a longínquas paragens históricas e até à cúria romana.
Os casos vieram enganchados como as dulcíssimas cerejas
deste ano e vi-me, por último, a braços com uns propositados
enganos do nosso primeiro cronista mor.
Preparem-se os leitores, se os tiver, para
uma digressão
através dos tempos e do modo de os contar.
O título, portanto, para não dizer tudo, o que o tornaria
muito comprido, só, diz muito pouco.
Posto isto, comecem os leitores e, se tiverem paciência,
ficarão sabendo tudo quanto escrevi.
Quem chega à Feira nos comboios do Vale do Vouga
desce para o centro da vila pela rua do dr. Santos Carneiro,
agora a pavimentar-se em paralelipípedos.
A meio desta entrada da minha terra, um pouco
antes
da nova cadeia comarcã, abre-se à esquerda um caminho
pouco frequentado que segue para trás do cemitério.
Fica-lhe em frente o íngreme cimo de outro atalho vindo
de Pombos através da Lameira.
Do lado do poente do caminho da esquerda, um pouco acima da rua, há uma
antiga capela dividida pelos largos
degraus de pedra da escada exterior das quase ruínas da
velha «Casa de justas» que ainda conserva duas janelas
guarnecidas de cantaria bem lavrada. Já a ela me referi
num artiguelho do volume XI do Arquivo a pág. 174 (n.º 43)
para mostrar que o marquês de Pombal era oriundo da
Feira.
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116 /
Para o sul termina essa Casa de Justas por um corpo saliente de mais ligeira construção e passando em ponte por
cima do caminho.
|
Estado
actual da Casa de Justas e capela |
Sobre a porta do que foi capela dessa moradia fidalga conserva-se um escudo bojudo, terminando no cimo em
ponta formada por duas curvas reentrantes. É esquartelado, tendo alternadas as armas dos Leitões: as três faixas em
relevo, nos primeiro e quarto quartéis e nos segundo e terceiro as dos Coelhos, como as descreve a quintilha de JOÃO
RODRIGUES DE SÁ, senhor de Matosinhos:
Em campo doiro hũ lyão
de mui brava acatadura
coelhos por orladura,
dos
Coelhos se dirão
armas sem outra mistura
Esta velha casa e capela abandonada é quanto resta do solar de uma
família orgulhosa de descender do Pero Coelho,
cujo coração D. Pedro o Cru trincou também cru. Era o
Pero Coelho senhor de Felgueiras e casara com D. Aldonça
Vasques, neta do conde D. Gonçalo Pereira.
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116 /
Um filho deste conde, também D. Gonçalo
Pereira,
começou por ser prior da freguesia de S. Nicolau da vila da Feira em
1296 e depois foi deão da sé do Porto, bispo eleito
de Évora, bispo de Lisboa aos 21 de Agosto de 1322 e arcebispo de Braga
em 1328, morrendo a 3 de Março de 1358. Além de sacerdote era guerreiro.
Derrotou em 1336 o exército castelhano de D. Fernando Rui de Castro, que invadira
Portugal, e tomou parte na batalha do Salado aos 30 de Outubro de 1340. E além de sacerdote e de guerreiro era
apaziguador e ajudou a rainha D. Beatriz a compor a contenda
entre D. Afonso IV e o filho D. Pedro. Este arcebispo
guerreiro e apaziguador, assim como acumulava qualidades, ia acumulando
bastardos e entre eles teve um que foi o
dom frei Álvaro Gonçalves Pereira, balio da Ordem dos
Hospitalários em Leça e, por isso, crismado por alguns em
balio de Malta e prior do Crato. No tempo dele, ainda
D. Sancho Il não doara o Crato à ordem, que só em 1530
adquiriu a ilha de Malta cedida por Carlos Quinto.
Seria este antigo, prior de
S. Nicolau da Feira quem
atraiu para esta vila os Coelhos aparentados com ele pelo
casamento do Pero com uma sua sobrinha?
O meu querido conterrâneo e amigo D. FERNANDO DE TAVARES E TÁVORA numa
carta publicada na Gazeta Feirense
de 15 de Novembro de 1909 referia-se assim à Casa de
Justas:
«O que lá existe ainda,
sobre a porta da capela, é
uma tosca e singela pedra de armas, sem elmo nem timbre, onde em uma das palas se distinguem
os coelhinhos
que recordam o feroz Pero Coelho. Coelho era ele;
mas tinha sentimentos e impulsos de muito maior bicho, se apocrifa não é a palavra que lhe atribuem, única tal vez que possa
reproduzir-se, das muitas e boas que teria
jogado ao guloso D. Pedro que, só para prová-lo, lhe
tirou o coração.
«Encontrá-lo-hás mais forte que de um leão e mais
leal que de um cavalo». Com esta embatucou decerto el rei o senhor
Cru, que, se algum dia se julgou com
seus briosos quês de leão, não teria ainda pensado na
honrosa semelhança que o aproximava do seu corcel de
batalha. É assim a natureza humana; de tudo o que é
bom queremos ter sempre uma boa parte: um bocadinho
de leão, um bocadinho de cavalo. O perigo desta última
percentagem, não sendo rigorosamente doseada, é o coice.
Leão de menos, coice de mais. E é vulgar.»
Não resisti a prolongar a citação até estas
considerações
espirituosas e espirituais.
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117 /
Pois nesse pardieiro desamparado e em ruína, sobranceiro à cadeia nova
da vila da Feira, nasceram a bisavó e o avô paterno do grande marquês
de Pombal.
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Brasão que se encontra sobre a porta de entrada da capela da casa de
Justas. |
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Antes, outro ascendente do célebre Sebastião José de Carvalho e Melo
nascera também em Justas; mas, filho segundo, seguiu a carreira da burocracia forense e foi enqueredor, contador e escrivão na
comarca da
Feira. Chamava-se
Gaspar Leitão Coelho e casara com D. Cecília Pinto, filha de Pedro de
Melo Soares, o do Púcaro e de D. Briolanja Pereira.
Houve aqui na Feira, nos tempos da criação do concelho de Espinho, um
advogado e administrador, dr. Rufino Mota, rapaz alegre e com muita
graça, que repetia, com especial acentuação de pronúncia, a velha
sentença: lendo e meditando
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se alcança o saber. Ora lendo e meditando cheguei
por aquela alcunha de louceiro, a identificar o Pedro de Melo Soares na
Lisboa antiga do visconde JÚLIO DE CASTILHO,
tomo III da 2.ª parte, pág. 20. Cedo a palavra a este meu
saudoso dirigente nas primeiras leituras na Biblioteca de Lisboa, a
quem, com tanto prazer, ouvia nas instrutivas e
deliciosas cavaqueiras em casa da veneranda baronesa de
Almeida, nossa vizinha da rua da Barroca, quando ele tinha
a paciência de aturar-me e eu só uma dúzia de anos. Agora, vou a mais de
meio da sétima...
Voltemos ao púcaro.
O VISCONDE DE CASTILHO conta o caso assim:
«Como se sabe, serviam à
mesa dos monarcas os primeiros senhores da corte. Estava uma vez de
serviço
Pedro de Melo (filho do 7.º senhor de Melo, Martim
Afonso de Melo, e de D, Brites de Sousa). Quando
atravessava a sala, desequilibra-se, talvez por dar nalgum
tapete, inclina a salva, e deixa cair no chão, fazendo-se
em astilhas, o malfadado púcaro, que el-rei pedira, e
esperava. Riso geral nos circunstantes; confusão indizível no acabrunhado servidor.
Então el-reí... (alma grande! nas pequenas coisas é que se elas
mostram!) franzindo o sobrolho, com um
franzir que ele sabia, que era de fazer estremecer as
carnes, exclamou firme e severo, com o seu modo vagaroso e no tom nasalado que lhe atribui Resende:
− A que
vem tanto riso? Caiu, sim, o púcaro da mão de Pedro
de Melo; mas isso que monta? Nunca lhe caiu do punho
a sua valente espada; essa não.
Basta às vezes um dito assim
para ressuscitar um morto.
Daí avante, ficou ao Melo a invejável alcunha de
o do púcaro, e por ela é conhecido.»
Era, portanto, neto do escorregadio e desastrado fidalgo o desembargador
Gaspar Leitão Coelho, filho do enqueredor
e escrivão e da D. Cecília. Dele só averiguei ter sido um
dos signatários do acórdão de 23 de Agosto de 1607, absolvendo uma Antónia da Costa de ter dado uma
tremenda
bofetada num alcaide que lhe levantara as saias, com o pretexto de verificar qualquer infracção das leis reguladoras do
luxo dos vestidos. Conta o caso RIBEIRO GUIMARÃES no Sumário de Vária
História.
Este segundo Gaspar não posso afirmar que nascesse na
Casa de Justas; mas é possível que o pai Gaspar lá vivesse
no tempo da primeira mulher e antes de ir morar na freguesia da
/ 119 / da Arrifana. A filha do desembargador Gaspar, D. Luísa de Melo, e o
filho desta, Sebastião de Carvalho e Melo, é que com certeza nasceram
ali naquele solar.
Esse Sebastião, avô do grande marquês, seguiu como os seus pai e avô a
carreira da magistratura, acumulando com
a de demandista, pois intentou acção contra os possuidores de morgadios
e bens por ele pretendidos. No articulado que li impresso dessa questão
se alega «que o Suplicado (Sebastião de Carvalho e Melo) se fazia
natural da Vila da Feira, onde se foram avaliar os bens que ficaram de
D. Luísa de
Melo, e que esta naturalidade tinha o mesmo justificado e que nela se
fundara».
Este avô do grande ministro não deixou fama de bom patriota nem figura
entre os apologistas da restauração. Era amigo do Miguel de Vasconcelos
e chegou a estar encarcerado no Forte por suspeito de participar na traição de Francisco de
Lucena. O certo é que a sua ambição nobiliária foi contrariada, vendendo
os bens em Cesár e Gaiate, nos arredores da Feira, e nos quais fundara
pretensões a pingues morgadios.
Para a Casa de Justas voltou a família descendente de António Soares
Coelho, irmão do desembargador Gaspar Leitão Coelho e também filho do
escrivão de serventia e da D. Cecília Pinto. Casara o António Soares com
D. Brites de Viveiros da Costa e o filho de ambos Estêvão Soares Coelho
foi casado com D. Inês Godinho de Andrade Freire e destes foi filha a D.
Ana Maria de Viveiros Freire, mãe
de vários bastardos do último conde da Feira, D. Fernando. Estes
detalhes sobre a família de Justas são-me fornecidos por notas
manuscritas de ignoto informador à margem do exemplar do Teatro
Genealógico da Biblioteca Municipal da Feira, ao qual já me referi a
pág. 47 do volume XI do Arquivo.
Reza a crónica verbal cá da terra que o Manuel de Carvalho e Ataíde esteve hospedado na Casa de Justas, quando veio assistir
a uma inquirição de testemunhas na demanda que herdara do pai e ainda
transmitiu ao filho. Mas o que de mais evidentemente autêntico resta
nesse velho pardieiro é a pedra de armas de Leitão e de Coelho, a
atestar que ali foi o solar dos descendentes de um dos brutos matadores
da linda Inês, na quinta das Lágrimas de Coimbra, aos 7 de Janeiro de
1355, isto é, no sétimo dos idos de Janeiro da era de 1392.
Nesse tempo regulava-se a cronologia nas Espanhas pelo calendário romano
e pela era chamada de César, cujo começo se refere a um tributo lançado
pelo imperador Augusto aos
habitantes da península e para estes tão revoltante que começou daí a
numeração dos anos, trinta e oito antes do nascimento
/
120 / de Cristo. Ao ano do nosso almanaque somam-se 38
para achar a correspondente era de César. Portanto, ao dar-se o tal
feito apregoado por bom, mas caso triste e dino de
memória, decorriam os últimos meses da era de 1392, ano
começado nas calendas de Março anterior.
A maneira de contar o tempo usada pelos povos dessa
época era muito diversa da forma simplista e numérica de ir
dizendo desde o dia 1 até ao último do mês. Em cada um dos meses do
calendário romano havia três dias com nome
especial: − o primeiro do mês dizia-se calendas, − o dia 5
ou 7 chamava-se nonas, − e o dia 13 ou 15 tinha a denominação de
idos. Em Abril, Junho, Agosto, Setembro, Dezembro, Janeiro e Fevereiro eram as nonas a 5 e os idos a 13.
Em Março, Maio, Julho e Outubro as nonas eram a 7 e os
idos a 15. Uma trapalhada, a que é preciso habituarmo-nos,
quando temos de estudar documentos dessa época.
Começavam os meses pelas calendas, que eram o dia um,
seguindo porém a contagem para trás. E ainda havia outra
diferença do sistema moderno: o ano principiava nas calendas de Março. Portanto os meses de Janeiro e Fevereiro
pertenciam à era anterior. Por esta razão, quanto a estes
dois meses, à era deduzem-se só 37 para achar o ano cristão
correspondente.
O que acontece muitas vezes é, neste caso especial, o
escriba referir-se à era das calendas − e não à verdadeira era
anterior − que tinha findado na véspera delas. Não é de
admirar tal inexactidão.
Como os dias se contavam das calendas, das nonas e dos
idos para trás, o segundo dia, a que chamavam pridie ou
«véspera», se traduzirmos a palavra, era o dia anterior e o
terceiro era a antevéspera das calendas, das nonas ou dos
idos. Assim o pridie ou a véspera das calendas de Março
vinha a ser o 28 de Fevereiro da era antecedente, que é como
quem diz do ano findo ou do próximo passado. O terceiro
dia ou antevéspera das calendas de Março era o 27 de Fevereiro e assim sucessivamente. Não digo «e assim por diante»,
porque era tudo a seguir para trás.
Mas nos anos bissextos o pridie ou véspera das calendas
de Março era o 29 ou último de Fevereiro, e o sexto dia das
calendas de Março vinha a ser o 25 de Fevereiro, e então o
dia 24 chamava-se «bis sexto dia das calendas de Março».
Disto provém o nome de bissextos para os anos em que tal
acontecia. Depois continuava a numeração inversa até aos
idos.
Por outras palavras: o dia acrescido nos anos bissextos
não era o 29 de Fevereiro; mas um dia intercalado entre o 25
e o 23. Fevereiro não tinha o dia 29, tinha dois dias 24:
o bis e o 24.
/ 121 /
Mas cuidado. O ano bissexto no calendário romano era
o anterior ao
bissexto no nosso almanaque actual, porque era aumentado um dia ao 24
de Fevereiro, no fim do ano.
Só agora o ano começa no princípio de Janeiro.
Já se vê por isto que o dia primeiro de Janeiro, nesse
tempo, e até 1422 em Portugal, era um dia vulgar, como outro qualquer; porque o dia de
ano bom era nas calendas de Março. As de Janeiro eram o primeiro dia do
undécimo mês do ano, sem especialidade nenhuma, como agora o primeiro de Novembro.
Õ nosso D. Pedro I, o tal
Cru, depois de trincar o coração cru do Pero Coelho, declarou aos 12 de Junho de 1361,
peremptoriamente e sob juramento, que tinha casado com D. Inês de
Castro. Testemunharam esta declaração Álvaro Pereira e Gonçalo Pereira,
irmãos daquele ascendente dos condes da Feira Rui Pereira, o Bravo, que morreu na gloriosa manhã de 18 de Julho de 1384, a bordo da nau
Milheira, com um
virotão espetado entre os olhos, quando levantara a viseira para
enxugar o suor.
O então bispo da Guarda, D.
Gil, jurou que, sendo deão, casara D. Pedro
é D. Inês, havia sete anos, mas não se recordava da data.
Estêvão Lobato, criado de el-rei, foi quem precisou ter em Bragança o deão casado D. Pedro e D. Inês em o primeiro dia de
Janeiro.
Tinham portanto casado três anos antes de ser morta
a mísera e mesquinha.
FERNÃO LOPES durou, como eu, oitenta anos, nascendo ainda no século XIV
e, sendo desde 1418 guarda da torre do castelo de Lisboa, hoje chamada
Torre do Tombo, assistiu ao promulgar da lei de 15 de Agosto de 1422,
na qual se mandou substituir o calendário romano pelo almanaque
cristão. No seu tempo de rapaz, e até mesmo nas suas funções oficiais de
bibliotecário, usou ainda da era hispânica de César. Pois leva uns
capítulos da sua crónica a discutir a falta de memória do D. Pedro I, chegando a escrever
«em dia primeiro de Janeiro que é primeiro dia do ano», fazendo-se esquecido de
que no tal dia não tinha começado ano nenhum e de que 1354, ou para melhor dizer: o ano
1392 da era de
César principiara nas calendas de Março e quando o primeiro de Janeiro
tinha sido um simples dia vulgar do undécimo mês do ano anterior.
Devem consignar-se atenuantes
ao bom do cronista mor.
Houve uma época de transição, em que já se indicava o dia pelo almanaque cristão e a era ainda pelo calendário
ibérico.
Dos tempos de D. Fernando e D. João I existem muitos diplomas assim
datados, hibridamente, e nestes é vulgar ser
/
122 / a era indicada pelo
número correspondente ao ano cristão, aumentado
de 38, mesmo para Janeiro e Fevereiro. Nestas
condições estão as cartas régias de 27 de Janeiro de 1382
e 10 de Fevereiro de 1372 publicadas a págs. 138 e 139 do
volume I e 78 e 79 do volume VII do Arquivo, referentes à
Terra de Santa Maria da Feira, porque a primeira é, com
certeza, posterior à de 30 de Junho da era de 1420, também
publicada a pág. 142 do mesmo volume I. A Terra de Santa
Maria foi doada ao irmão da D. Leonor Teles em 1372; mas, como o
alcaide do Castelo da Feira, Gonçalo Garcia de
Figueiredo, era amigo e partidário da rainha, conservou-se-lhe a
alcaidaria. Tendo morrido por 1378, ao renovar-se a doação ao já conde
de Barcelos, em 1382, para ele e seus descendentes, foi-lhe mandado
entregar o Castelo da Feira, como pertença e cabeça da mesma Terra.
Sendo portanto a carta de 30 de Junho de 1382 consequência e complemento da de 27 de Janeiro da era de 1420,
tem esta de ser anterior e, por isso, do mesmo ano de 1382.
O que admira é o FERNÃO LOPES, insistindo tanto nesse
esquecimento do D. Pedro I da data precisa do seu casamento, cometer o erro grosseiro de atribuir a bula de dispensa apresentada em 1352 à autoria do papa João XXII,
Jacques de Euse, morto desde 1334, dezoito anos antes e quando o noivo
só tinha treze.
Sendo de João XXII a bula teria a data de 18 de Fevereiro
de 1325 (nono ano do seu pontificado), quando D. Pedro
não tinha ainda cinco anos de idade. A bula é datada de
Avignon no «duodécimo das calendas de Março, do nosso
pontificado ano nono». É dirigida ao «infante Dom Pedro,
primogénito do muito amado em Cristo nosso filho muito
claro rei de Portugal e do Algarve Afonso» e o santo padre
declara-se «demovido àcerca de tua pessoa com especial favo»
concluindo «querendo condescender a tuas preces e de el-rei D. Afonso
teu padre». Claramente se refere às preces do
infante D. Pedro que, com certeza, as não faria aos cinco anos nem em tal
idade se lhe dirigia directamente o papa.
Nem a bula poderia ser
anterior à viuvez de D. Pedro e a primeira mulher deste, D. Constança
Manuel, morreu
em 1345, onze anos depois de falecido o papa João XXII.
A bula deve ser com toda a evidência de Clemente VI, Pedro Rogério, de
cujo pontificado o nono ano decorreu desde 19 de Maio de 1350 a 18 de
Maio de 1351, tendo assim
a data equivalente a 18 de Fevereiro de 1351, ou seja nono
das calendas de Março da era de 1388, precedendo mais de
um ano o casamento presidido pelo deão feito bispo e atempado pelo Estêvão Lobato. Esta precedência resulta de Janeiro
de uma era ser depois de Março e até de Dezembro
da mesma era.
/
123 /
O FERNÃO LOPES, influenciado pelas argúcias jurídicas do João das
Regras, queria deixar bem evidente a primazia do filho da Teresa
Lourenço, indiscutivelmente bastardo, e não lhe convinha indicar
argumentos favoráveis à legitimação dos filhos da linda Inês. Para fazer
a boca doce ao
D. Duarte, já que não podia legitimar-lhe o pai, punha em duvidosa
aceitação a legitimidade dos tios, com o subterfúgio de errar a autoria
da bula, mantendo a probidade histórica de a transcrever na íntegra e
com a data certa. Sendo esta referida ao pontificado e visto ter mudado
o nome ao papa,
julgou indecifrável o enigma. Conseguiu, pelos séculos além, que nenhum
investigador se lembrasse de verificar em algum velho bulário a
existência da dispensa concedida por Clemente VI. É que a grande maioria
dos estudiosos de história está desatenta ao calendário.
Bem faço eu estudando sempre
os factos com o almanaque à mão, por medo
dos anacronismos.
Feira, 12 de Junho de 1947.
VAZ FERREIRA |