− Do livro a
publicar Nossa Terra, Nossa Gente −
Curiosidades da região de Vouga −
(Dedicado a uma senhora de olhos lindos)
− ?...
− O caminho p'rá festa da
Senhora d'Almieira?... Não
tem nada que saber, tiasinha:
Ao chegar à Ponte da Rata vossemecê mete p'rá estrada que leva a
Requeixo. Depois, lá adiante, ao dar da volta, atravessa a linha do comboio
do Vale do Vouga; mais à
frente há uma fonte com um telhado e um tanque de lavar roupa, depois
uma ladeirita a subir que passa a Carcavelos, e um nisquito além, um
quarto d'hora de caminho... que nem tanto, e sempre a direito, lá vai
dar à Senhora d'Almieira, que é no lugar da Taipa. Santinha de muita
devoção! E pelos
vistos os mordomos este ano meteram-se em brio, porque desde «tresdantonte»
tem sido p'ra lá tantos foguetes que é
um poder de Deus.
− ?!...
− É lá, sim senhora, não tem nada que errar, tiasinha.
Meta sempre a direito...
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O lugar da Taipa, na região de Vouga, pertence à
freguesia de Requeixo e ao concelho e distrito de Aveiro.
Tem uma escola, uma capela e uma rua comprida ladeada
de muitas casas de lavradores, remediados e ricos, mas todos
incansáveis na labuta da lavoura, o «amanho das territas». E a rua
comprida vai dar lá a riba, a vastos pinheirais que
sombreiam os terrenos onde medra o matito rasteiro do tojo.
Passando a Carcavelos, pequeno povoado da freguesia de Eirol, a estradita faz duas ou três curvas por entre cômoros de silvas e estripeiros a resguardarem leiras de
semeadura e latadas de vinhedos nas estremas dos vizinhos e logo
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primeiras casas da Taipa, com abóboras «meninas» e «machadas» encarrapitadas sobre os telhados baixos e nos muros
dos pátios.
A ermida (capela da Senhora d'Almieira) fica num alargamento da rua,
quase à entrada do lugar. E dentro do
pequenino templo não há interesse de maior: − o altar com
a imagem da Padroeira, S. Francisco, S. Mateus, Santa Ana, uma Senhora
d'Almieira pequenina e, a um dos lados, o púlpito. Mas tem grande e
larga fama na redondeza a tradicional festa da Senhora d'Almieira, por
causa dos seus folares e dos «partos felizes».
Realiza-se no dia a seguir ao dia de Páscoa, para que os «padrinhos» tenham oportunidade de «mercar» os folares para os
«afilhados».
Na véspera é costume haver «noitada» com entremez e músicas ao
despique. E vão muitos homens e mulheres dos arredores (casados e
solteiros), depois da ceia e com o pretexto da «noitada»... para
ouvirem as músicas, para verem «aquilo» do entremez... «que deve ser
coisa boa!»
Ai, as «noitadas» das
romarias!...
Há homens e mulheres que, sob tal pretexto, como os
caminhos são «escuritos» e têm atalhos providenciais, às vezes perdem-se
e só mais tarde chegam à «noitada». Os namorados, sobretudo, têm uma
tendência especial para se perderem no escuro romântico dos atalhos, que andam cheios de
promessas de amor e de murmúrios de beijos.
A «noitada» vai até às tantas. O entremez, aquilo é que
foi!... As músicas, muito boas, sim senhores... podiam-se ouvir por gosto! E as estatísticas da população do País vão, como é
lógico e humano, aumentando, e muito bem!... que tudo é preciso neste
mundo de Cristo. E a «Senhora» é advogada dos partos felizes...
Folguem, raparigas!
Ao outro dia é a festa.
O chão da capelinha da Senhora d'Almieira está todo
juncado com ervas de cheiro, flores campestres e pétalas de rosas e de
malmequeres em profusão. Há toalha rendada e
passada a ferro no altar da «Senhora» e pano rico adamascado no púlpito
do padre pregador. Há solitários e vasinhos com flores. E a Santinha lá
está, entre velas acesas, muito linda, muito linda! Os olhinhos a
luzirem e a sorrirem um sorriso místico, no seu altar florido.
Mas nem só os olhos da Santinha luzem, porque
também as suas
mãozinhas e o seu rosto têm o mesmo brilho. É que
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todos os anos, para renovar aquele brilho que até parece
luzimento celeste, a mulher do sr. juiz da festa, ou alguém a seu
mando, ali vai com uma tijelinha onde deitaram duas ou três «claras» de
ovos. E com um paninho que se vai
molhando nas «claras» da tijelinha, vão-se bezuntando os olhinhos, o
rosto e as mãozinhas da Senhora d'Almieira. Depois de seco, o oleoso
das «claras» dos ovos deixa a «Senhora» a brilhar até ao ano seguinte.
Ora, no dia da festa, manhãzinha cedo, sobem, ao ar muitos, muitos
foguetes!... e mais tarde uma das músicas, «depois de fazer a missa»,
anda a tocar rua abaixo e rua acima, tudo muito juncadinho com ervas
aromáticas, a rescenderem... e às vezes um foguete!
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Tlin, tlin, tin-tlin-tin...
badala a sineta da capelinha da
Taipa. Badala e repenica.
Neste dia − o grande dia do povoado
− tudo é encantamento:
Madrugada ainda alta, quando os galos cantam ao despontar da luz
matutina − as ervas, os trevos, os pampilhos,
os miosotis e todas as coisas mansas que dormem ao luar, parecem rezar
em rosários de gotas de orvalho, pérolas líquidas, que depois se vão
desfiando lentamente. São, talvez, as lágrimas das inúmeras dores do
coração da noite.
Depois, na manhã fresca, fímbrias de Sol pontilham de ouro a Natureza
orvalhada, que acorda em sobressaltos de festa a preludiar a sinfonia
das cores. O ar que se respira, de emanações suavíssimas, está
impregnado da magia das alturas. As almas, sentindo-se felizes, andam
vestidas de sorrisos de estrelas com asas do azul translúcido dos céus.
E o passaredo também despertou, em gorgeios maviosos, a saltitar nas
amieiras e lamigueiros. É Primavera. Voam andorinhas. Senhora d'Almieira!..
Tudo parece quimérico neste dia festivo.
O dia cresce. Aumenta e difunde-se a luminosidade.
O firmamento é sereno. Dos campos vêm aromas suaves. De um regato
próximo chega aos nossos ouvidos a musicalidade harmoniosa da água a correr e a cair nos fraguedos. Há macieiras,
ameixieiras e pessegueiros floridos. Os corações das gentes moças são
auroras da Vida a cabriolar de
contentes. As raparigas casadouras, de faces trigueiras e coradas,
trazem no azougue das contas negras dos olhos. sonhos de amor e
mistério. Andam, por perto, toadas de cantigas de monótonos ritornelos.
Das chaminés das cozinhas, do lume farto das lareiras, o fumo sai em rodopios a, bailar sobre
os telhados da aldeia. Preparam-se as jantaradas para parentes e
amigalhaços que hão-de vir logo mais.
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Tlin, tlin, tin-tlin-tin... badala o bronze da sineta velhinha da capela da Senhora d'Almieira. Badala e repenica.
E o som musical, cantante, espalha-se no ar, enche o arraial, dá prazer e alento aos espíritos.
A rua está enfeitada. Há mastaréus pintados e bandeirolas de cores berrantes.
Lá ao fim do lugar, na suavidade da distância, ouve-se
a filarmónica, com a nota alegre dos pratos e do bombo.
O rapazio, descalço e irrequieto, de cara lavada, chapéus novos e
roupas domingueiras, corre atrás das canas dos foguetes, pulando muros e sebes de hortas e quintalejos. E ao longe, o ladrar de um cão.
Batem 11 horas no sino da igreja de Requeixo.
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Toda a gente que assistiu gostou muito do sermão do
padre pregador. Sim senhor, sabia daquilo. Podia-se ouvir por gosto. São
as vozes que correm...
E de tarde é a procissão, que mete duas filarmónicas, com foguetório, e vão os andores da Padroeira
− a imagem grande e a pequena − e mais S. Francisco, S. Mateus e Santa
Ana, e os reverendos priores bem paramentados, «a preceito»,
e anjinhos com túnicas de cetim até aos pés, arcos de arame
na cabeça. grandes asas nos ombros, e muito povinho atrás das duas filarmónicas de notas gemebundas, a fazerem dobrar as almas
dos simples, aproximando-as das alturas celestes, na dura luta contra
as tentações do Inferno.
Depois recolhe a procissão e uma das charangas fica por
ali, rua abaixo e rua acima, e à frente das casas dos senhores
mordamos (enquanto na sala melhor da casa do senhor juiz da festa os reverendos priores confortam os estômagos nas
caçoiladas de carneiro assado a rescender) os músicos demoram um poucachinho a soprarem mais animosamente os respeitáveis
instrumentos... e as portarias então abrem-se delicadamente para a pinguíta.
− Vá lá... já que o senhor
mordomo assim quer...
E, devagar, sem pressas, os músicos entram um bocadito
para o alpendre, desatravancado agora do carro da lavoura, da charrua, da grade e das outras alfaias do trabalho agrícola...
Tudo arrumadinho, lá na estrumeira, perto dos currais e da
gaiola dos coelhos.
No pátio largo, coberto a mato e a canoilos de milho,
andam galinhas à solta. Ao lado, no eido, em volta do poço, há um pé de
jasmim de cheiro, roseiras floridas e um pouco
de salsa de tempero. E entre o poço e a cabana da palha uma laranjeira alta carregadinha de frutos amarelos espreita,
por cima dos telhados baixos dos currais, as intimidades do pátio.
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Da cozinha, onde pontifica a nota alegre e ruidosa da
jantarada, vem o cheirinho bom de petiscos dos grandes dias.
E então prontamente o dono da casa, o senhor mordomo,
muito obsequioso e coradinho − os olhitos brilhantes em adoração a Baco
− para não fazer esperar os músicos lá vem com a picheira grande dos dias de festa e um copo de quartilho, para a distribuição na adega, de porta aberta naquelas
ocasiões. E todos escorropicham, dando estalinhos na língua e gabando muito a pinga da lavra do senhor mordomo.
− Sim senhores, grande pinga!... Mas também, pudera,
não! Os cachos vindimados madurinhos e de boas qualidades... gabaia,
trincadeira, santarém, algumas cepazitas de moscatel de cheiro para dar
sainete. Enfim, um vinhão! Um grande vinhão!...
Depois, outra vez a charanga a tocar, rua abaixo e rua acima, tudo juncadinho, e às vezes um foguete!
Finda a procissão, toda
aquela gente principia a «mercar» folares e a
comer folares. Há milhentas pessoas. O mulherio, na maior parte gente da
classe rural, de xaile e lenço. E vêem-se, pelos cantos escusos, carros
de burros, muitas bicicletas, meia dúzia de automóveis.
Por perto da capelinha e a ladear a rua comprida estão as vendedeiras
com as canastras e os açafates. tudo cheio. Há falares de um, dois,
três, quatro, cinco e mais ovos. Pão
doce, saboroso − boa mistura e bom fermento − amarelinho,
amanteigado. Os ovos, de cascas vermelhas, meio enterrados na massa do
pão, desafiam paladares. E, por perto, as «tascas» com a boa pinga, a encherem picheiras, canecas e bilhas, tudo
com grande alarido, muita azáfama, berros festivos, ditos picantes
alheios a conveniências e a preconceitos, gestos largos, rostos
coradinhos, olhos vermelhuços e brilhantes, corações abertos, risos alvares, graçolas pesadas,
palavrões...
E viva a Senhora d'Almieira! Viva!!...
− Ó ti' Jaquim! Ora venha de lá um marquez do tinto...
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Anda, por ali, gente de todas as localidades dos arredores. Desde Mamodeiro e da Oliveirinha, a Requeixo e a
Eirol. Desde Eixo e de S. João de Loure, a Alquerubim,
a Pinheiro e a Segadães. Desde Almear e de Travassô, a Cabanões e a Ois
da Ribeira.
Uns comem e bebem por ali mesmo, à «palra». Outros, juntando-se aos
seus, procuram sítios mais afastados, mais
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convidativos e bucólicos, avizinhando-se de sombras amenas,
de verdejantes e acolhedoras ramadas de carvalhos e pinheiros.
E partem-se bons «nacos» de folares, e descascam-se
os ovos de cascas vermelhas, e escorropicha-se o vinho com volúpia de
crente, os olhos semi-cerrados...
Vestem-se depois os casacos que se haviam tirado para
se estar mais à vontade, se por acaso a tarde ia quentita...
E então o «raparigame», as cachopas com os namorados ao lado, todos
brincalhões, dão umas voltas, satisfeitos e enfarpelados nas roupas
domingueiras − rua abaixo e rua
acima, tudo juncadinho, as ervas de cheiro pisadas e a rescenderem...
e às vezes um foguete!
E lá pelas tantas, ao fim da tarde, enquanto as músicas,
agora nos seus coretos, se «despicam» com os apreciadores
em roda sem arredar pé... toca a «mercar» os folares para no dia
seguinte se mandarem aos «afilhados».
Levam-se ao ombro, numas saquitas de chita, ou dentro
dos açafates, à cabeça do mulherio, Mas, antes do regresso,
vá lá mais uma vista d'olhos ao interior da capelinha, um olhar devoto
ou uma derradeira oração, toda alma e sinceridade, que mais ainda faz luzir os olhos da linda santinha dos
partos felizes...
Depois, cá fora, um aperto de mão ao amigo Diamantino
Jorge, o chefe político e o maioral da terra, e «adeus até p'ró ano se
Deus Nosso Senhor quiser.»
E lá se vão os carritos de burros atulhados de gente, de
rodas barulhentas e pesadas. E lá se vão bicicletas e automóveis a buzinar muito. E lá se vão outros festantes a pé,
estradas em fora, a conversar, a gargalhar, a praguejar... As raparigas azougadas, brincalhonas e felizes, ao lado dos
namoros − todos em saracoteios de festa, flores nos chapéus
e nos cabelos, a cantarolar:
Era manhã, ainda mal se via,
Na minha aldeia tudo dormia...
Viva a Senhora d'Almieira!!!...
Aveiro, Março de 1947.
LAUDELINO DE MIRANDA MELO |