Luís Gomes de Carvalho, Memória descritiva da abertura da barra de Aveiro, Vol. XIII, pp. 58-69

MEMÓRIA

SOBRE O PLANO DE ABERTURA DA BARRA DE AVEIRO,
SUA EXTENSÃO E CONSEQUÊNCIAS,
SEGUNDO AS ORDENS DE SUA ALTEZA REAL, EXPEDIDAS PELA SECRETARIA DE ESTADO DOS NEGÓCIOS DA FAZENDA EM JANEIRO DE 1802, DIRIGIDA AO MESMO SENHOR PELA MESMA REPARTIÇÃO EM JUNHO DO MESMO ANO

Muitos anos há que Aveiro está sendo infelizmente vítima do furor das febres contagiosas, e dos estragos de morte que lhe tem roubado enfim os dois terços de sua população, e ameaça de aniquilar pelo espantoso exemplo que dão algumas das suas freguesias, onde nos últimos anos o número dos mortos era quase duplo dos nascidos nos mesmos anos. Esta cidade, tendo visto submergir e desaparecer sucessivamente pelo entupimento da barra, e estagnação progressiva do Vouga, os campos mais férteis que alimentavam a comarca, viu da mesma sorte e pelas mesmas causas abismar e cobrir de um pântano permanente, foco maligno de corrupção e de mortíferas exalações, as ricas e vastas marinhas que fizeram noutro tempo um artigo muito essencial da sua riqueza; ela viu em parte desaparecer a sua abundante pesca pela diminuição de meios, e de homens. vítimas da insalubridade do país e da extrema pobreza. Aveiro viu por outra parte extinguir o seu comércio, em outro tempo como ela florescente; viu cair em ruínas, e desaparecer totalmente grande parte dos edifícios que ela havia levantado nos tempos da sua opulência e tocou enfim o último termo da sua total e absoluta decadência(1). A sorte de todos os outros povos que dependiam dos campos, da ria, da barra, e da cidade de Aveiro piorou, e todos sofreram na proporção da dependência em que estavam; e a desgraça de / 65 / [Vol. XIlI - N.º 49 - 1947] Aveiro se tem transmitido a grandes porções das três ou quatro comarcas mais vizinhas, e particularmente às duas de Aveiro e Feira.

Foi neste estado lamentável, e como na última agonia, que Aveiro invocou a régia clemência; e S. A. R. compadecido da desgraçada sorte destes povos, de quem é senhor e pai, mandou em seu socorro as pessoas a quem confiou os planos e a execução dos trabalhos, que deviam pôr termo a seus males e torná-los felizes. Escolhido entre estas, S. A. R. honrou muito as minhas luzes limitadas, dignando-se empregá-las nesta grande operação da sua real munificência; a bem da qual o meu zelo e diligências nada pouparam para me fazer digno desta honrosa escolha, e corresponder, quanto em mim fosse, às esperanças do mesmo augusto senhor.

Antes de começar os trabalhos desta empresa, indaguei cuidadosamente a história dos últimos tempos desta barra, e soube:

1.º Que dos planos e projectos das obras de que foi encarregado o engenheiro Carlos Mardel em 1756, e de todos quantos lhe sucederam, e assim doutros hidráulicos célebres, nada havia resultado.

2.º Que se havia mesmo totalmente perdido um rompimento do Vouga pelo rigueirão da Vagueira em 1757 pela conjuntura de uma extraordinária cheia do mesmo rio, estando a barra nesse tempo perto de Mira e por extremo entupida; circunstância que felizmente e com muita discrição e zelo aproveitou um prático do país, o capitão-mor João de Sousa Ribeiro, cujo efeito por algum tempo minorou os males que oprimiam então, e oprimem agora Aveiro; porém que hoje infelizmente de tudo isso e do rigueirão já não existem nem os vestígios no seu lugar, isto é, na Vagueira; não se divisam hoje mais do que dunas muito elevadas, como no resto do grande areal que separa o mar da ria, achando-se outra vez, e como dantes ou mais longe ainda, a mesma barra nas costas de Mira, errante por aqueles desertos areais sem leito fixo, nem suficiente, légua e meia ao sul do referido e já não existente rigueirão da Vagueira, como se vê no mapa (fig. 1).

3.º Que dos planos de Francisco Jacinto Polchet, e major engenheiro Francisco Xavier do Rego, e seus adjuntos Luís de Alincourt, e o tenente Adão Venceslau, feitos com assistência do desembargador da Relação do Porto Manuel Gonçalves de Miranda, e do capitão-mor João de Sousa Ribeiro em 1758, nada resultou (2). / 66 /

4.º Tiveram o mesmo sucesso os do tenente-coronel engenheiro Guilherme Elsden, com o capitão do mesmo corpo Isidoro Paulo Pereira, e ajudante do mesmo corpo Manuel de Sousa Ramos em 1777, de que igualmente nada resultou a favor da barra.

5.º E que os do hidráulico João Iseppi, começados a executar em 1780, foram suspendidos em 1783 sem haverem produzido nada favorável.

6.º Que também não houve resultado dos planos que veio fazer em 1788, para se continuarem as obras da barra, o marechal de campo, depois tenente-general, Guilherme Luís António de Valleré; nem da visita hidráulica do Doutor José Monteiro da Rocha no ano de 1781, de cuja visita foi prevenido pelo ministério o desembargador superintendente Francisco António Gravito, e com grande recomendação.

7.º Que em 1791 ficou inteiramente frustrada uma última tentativa para abrir um rigueirão, pouco abaixo da Senhora das Areias, para barcos, e para enxugar as águas encharcadas, cujo projecto foi, de ordem superior, examinado antes de se pôr em execução, pelo professor hidráulico Estêvão Cabral; mas desta indiscreta tentativa nada resultou, e não resta dela nem os vestígios, porque as areias abismaram tudo quanto então se fez debalde; de sorte que nem um só barco entrou nem saiu por tal rigueirão; que não obstante custou 41.000 cruzados e pelo qual nunca correram para o mar as águas da ria, nem existe o menor vestígio de escavação que então se fez, porque o mar tapou o mesmo rigueirão logo que nele desembocou.

Estes sucessos desastrosos, devidos sempre aos erros cometidos já na má escolha do local, já pelos insuficientes métodos que empregaram, estabeleceram a opinião da impossibilidade, de abrir e conservar uma barra para restaurar o comércio, as marinhas de Aveiro, os campos do Vouga, e a saúde pública; tais sucessos recomendaram muito a nossa circunspecção e cautela, não só para segurar o bom êxito final da empresa, mas até evitar qualquer incidente desfavorável no progresso, dos trabalhos que pudesse reforçar a opinião tão geralmente recebida e acreditada da impossibilidade da empresa, cujas fatais consequências poderiam ser nada menos do que o capitular-se outra vez, desesperada e para sempre abandonada para eterna desgraça de Aveiro, porque até nem lhe ficariam esperanças de a poder remediar no futuro.

Também antes de começarmos as obras, era preciso apresentar os planos a S, A. R. para terem primeiro a sua régia aprovação; e como para isso era necessário concluir o mapa da parte mais interessante do terreno submergido, isto / 67 / é, desde a embocadura do Vouga na ria perto da Murtosa até à barra actual, de que era preciso conhecer todas as particularidades, trabalho este que a estação chuvosa não deixava adiantar, o mesmo senhor, desejando que se não perdesse tempo algum tão próprio da primavera que estava -chegada, ordenou que se desse princípio a alguns trabalhos do plano pedido com tanta 'instância da parte de S. A. R., o qual tenho a honra de apresentar ao mesmo senhor com o mapa junto (figs. 1 e 2) (3). Este mapa compreende toda a ria desde a barra actual até à Torreira e Murtosa, com uma porção do Vouga, e campos alagados por onde corre, a qual pelo nascente é terminada por uma parte dos campos, e terreno pouco elevado onde se divisam muitas povoações, e a cidade de Aveiro, da qual a parte mais baixa está quase no nível da ria; ao poente termina com o areal que separa a mesma ria do oceano; continuando para o norte até Ovar, onde acaba por este lado duas léguas acima da Torreira; e pelo sul confina em parte na extremidade da cale de Vagos; .e por outra com areais da Gafanha, pelos quais o Vouga tem aberto caminho até às costas de Mira, onde agora está a barra e termina a dita ria.

Esta ria, ou superfície, quase de nível e baixa, é cortada pelo Vouga, esteiros, e ramos do mesmo rio, dos quais os mais fundos têm o nome de cales, e destes a principal é a Cale Grande, onde o mesmo Vouga se dirige da Murtosa para o Mondazel, e daí vai costeando o areal até à barra, onde desagua o Vouga, reunido com os outros rios e regatos, que entram na mesma ria. Os referidos esteiros, o Vouga, e ramos do mesmo, que servem de canais de navegação, dividem a ria em muitas ilhas, que abundavam noutro tempo em sal, e pão; e hoje não apresenta mais da que uma grande lagoa a maior parte do ano; e no estio um pântano, depósito imundo de águas corruptas e outras matérias nelas envolvidas, as quais entretêm, ajudadas do calor, uma pestilencial fermentação por extremo contrária à saúde dos habitantes, por toda a parte onde pode estender-se a esfera da sua maligna influência, infelizmente assaz dilatada.

A barra pelo seu entupimento, e distância em que está, 5 léguas a S.S.O. de Aveiro, não dá actualmente escoante às águas estagnadas do Vouga; não dá marés sensíveis na ria, nem salgadas para renovar as mesmas águas durante o estio, e menos para beneficiar as marinhas, as quais estão inundadas oito ou nove meses do ano, não abaixando as águas no / 68 / restante do ano o necessário para as escoar, e preparar para o fabrico do sal, por não haver a precisa baixa-mar, que apenas é sensível, e só de alguma polegada; nem depois se lhes podem meter águas para a factura do sal, porque a preia-mar igualmente não levanta o nível das mesmas águas a uma altura conveniente, pela mesma razão de quase nulas marés
que além disso são de água doce, pois o actual fluxo e refluxo, apenas sensíveis nesta ria longe da barra, se reduzem a uma quase oscilação das águas da mesma, que recuam alguma coisa da barra para cima na enchente, e reciprocamente na vazante; só nos equinócios com vento sul muito rijo e continuado por dias, mar muito bravo, e seca do Vouga, é que a maré pode salgar as marinhas na preia-mar; circunstâncias que raras vezes se reúnem na mesma ocasião, e portanto vem a ser um fenómeno raro aqui, e assim mesmo insuficiente para utilizar o país.

O mapa do resto dos campos já submergidos, e dos que sucessivamente o vão ser pelo aumento progressivo da estagnação rio acima, ainda não está levantado; essa operação que levaria ainda algum tempo, não era necessária para fazer ver agora o plano a S. A. R. Eu reservo para outro tempo apresentá-lo com os planos secundários para acabar de restituir à cultura, por meio de operações não muito dispendiosas, terreno hoje perdido e outros quase de todo arruinados, que podem produzir anualmente perto de milhão e meio de alqueires de milho e feijão, ou o seu equivalente, contando as ilhas da ria. Estes grandes objectos de utilidade terão por base a nova barra projectada; mas que necessitarão em partes desses planos secundários, de que aquela primeira operação é a base fundamental.

Nesses planos compreenderei o de levar, quanto for compatível com uma bem entendida economia, a navegação do Vouga, mais ao interior da Beira; tratarei de promover a navegação de alguns outros rios, dos que retalham esta comarca, e escolherei de entre eles, os que do Vouga se puderem aproximar mais do Mondego e do Douro, afim de reunir ou aproximar estes três rios, mananciais de incalculável riqueza.

Reservo também para outro tempo o plano das fortificações para a nova barra projectada; acho que simples baterias abertas na gola são insuficientes, e que um recinto fechado é indispensável para livrar as mesmas baterias de um golpe de mão, que poucos homens, desembarcando em qualquer ponto dos areais desertos da costa limpa e sem escolhos, poderiam efectuar. Se esta reflexão agradar, farei o meu plano de defesa em consequência deste princípio; porque de outra sorte bastará o dique que se há-de construir para abrir a barra, como adiante se dirá, e a testa do mesmo / 69 / para fornecer baterias suficientes para a defender, mas que ficarão expostas em muitas ocasiões de mar bonançoso a ser tomadas antes de servirem.

Dividi a matéria desta Memória em duas partes: a 1.ª compreende a eleição do local para a nova barra projectada, e os métodos mais fáceis, seguros, e económicos para se efectuar a abertura da mesma barra. Na 2.ª parte, que dividi em três secções se mostrará que o resultado desta nova barra, será não só o pretendido escoamento das águas estagnadas que infectam o país, segundo as ordens (doc. n.º 11), mas também uma barra profunda para grandes navios e estável, cujo benefício a favor das marinhas, campos, saúde pública, navegação, e comércio, fará voltar esta comarca, a cidade de Aveiro e o seu porto aos mais belos dias da sua antiga opulência. Mostrar-se-á igualmente que o local escolhido é o melhor em razão de barra, e satisfaz a todas as outras vantagens que se desejam, isto é, dará a mais profunda barra, maiores marés, menores cheias, a maior salubridade do país, etc., etc. e com a máxima economia.

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(1) Partes consideráveis dos bairros da cidade estão hoje convertidos em quintais, cujos muros mostram, ainda que tapadas, as portas e janelas das casas a que pertenceram; além disso são imensos os pardieiros e casas desabitadas por toda a cidade formando um total de 1.600 fogos, que é a diferença dos 900 que actualmente existem e os 2.500 que existiam no ano de 1575; sem contar ainda os que estão habitados por necessidade, ou só em parte, ameaçando ruína, e dos quais pela polícia da cidade se vão mandando demolir os mais arruinados.

(2) Os cuidados que houve da barra em 1758, um ano depois de aberto o rigueirão da Vagueira e as obras começadas pouco depois em M 13, para o segurar, mostram como o seu estado e duração foram precários. 

(3) − Não quis agora evitar esta repetição por não alterar a Memória feita em 1801 com a qual satisfiz às ordens que havia recebido, e que S. A. R. aprovou.

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