Muitos anos há que Aveiro está sendo infelizmente vítima do furor das
febres contagiosas, e dos estragos de morte que lhe tem roubado enfim
os dois terços de sua população, e ameaça de aniquilar pelo espantoso
exemplo
que dão algumas das suas freguesias, onde nos últimos anos o número dos
mortos era quase duplo dos nascidos nos mesmos anos. Esta cidade, tendo
visto submergir e desaparecer sucessivamente pelo entupimento da barra,
e estagnação progressiva do Vouga, os campos mais férteis que
alimentavam a comarca, viu da mesma sorte e pelas mesmas causas abismar
e cobrir de um pântano permanente, foco maligno de corrupção e de
mortíferas exalações, as ricas e vastas marinhas que fizeram noutro
tempo um artigo muito essencial da sua riqueza; ela viu em parte
desaparecer a sua abundante pesca pela diminuição de meios, e de homens.
vítimas da insalubridade do país e da extrema pobreza. Aveiro viu por
outra parte extinguir o seu comércio, em
outro tempo como ela florescente; viu cair em ruínas, e desaparecer
totalmente grande parte dos edifícios que ela havia levantado nos
tempos da sua opulência e tocou enfim
o último termo da sua total e absoluta decadência(1). A sorte de todos
os outros povos que dependiam dos campos, da ria, da barra, e da cidade
de Aveiro piorou, e todos sofreram na proporção da dependência em que
estavam; e a desgraça de
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65 / [Vol. XIlI -
N.º 49 - 1947] Aveiro se tem transmitido a grandes porções das três ou quatro comarcas
mais vizinhas, e particularmente às duas de Aveiro e Feira.
Foi neste estado lamentável, e como na última agonia, que Aveiro invocou
a régia clemência; e S. A. R. compadecido da desgraçada sorte destes
povos, de quem é senhor e pai, mandou em seu socorro as pessoas a quem
confiou os planos e a execução dos trabalhos, que deviam pôr termo a
seus males e torná-los felizes. Escolhido entre estas, S. A. R. honrou
muito as minhas luzes limitadas, dignando-se empregá-las nesta grande
operação da sua real munificência; a bem da qual o meu zelo e
diligências nada pouparam para me fazer digno desta honrosa escolha, e
corresponder, quanto em mim fosse, às esperanças do mesmo augusto
senhor.
Antes de começar os trabalhos desta empresa, indaguei cuidadosamente a
história dos últimos tempos desta barra, e soube:
1.º Que dos planos e projectos das obras de que
foi encarregado o
engenheiro Carlos Mardel em 1756, e de todos quantos lhe sucederam, e
assim doutros hidráulicos célebres, nada havia resultado.
2.º Que se havia mesmo totalmente perdido um rompimento do Vouga pelo rigueirão da Vagueira em 1757 pela conjuntura de uma
extraordinária cheia do mesmo rio, estando a barra nesse tempo perto de
Mira e por extremo entupida; circunstância que felizmente e com muita
discrição e zelo aproveitou um prático do país, o capitão-mor João de
Sousa Ribeiro, cujo efeito por algum tempo minorou os males que oprimiam
então, e oprimem agora Aveiro; porém que hoje infelizmente de tudo isso
e do rigueirão já não existem nem os vestígios no seu lugar, isto é, na
Vagueira; não se divisam hoje mais do que dunas muito elevadas, como no
resto do grande areal que separa o mar da ria, achando-se outra vez, e
como dantes ou mais longe ainda, a mesma barra nas costas de Mira,
errante por aqueles desertos areais sem leito fixo, nem suficiente,
légua e meia ao sul do referido e já não existente rigueirão da Vagueira,
como se vê no mapa (fig. 1).
3.º Que dos planos de Francisco Jacinto Polchet, e major engenheiro
Francisco Xavier do Rego, e seus adjuntos Luís de Alincourt, e o tenente
Adão Venceslau, feitos com assistência do desembargador da Relação do
Porto Manuel Gonçalves de Miranda, e do capitão-mor João de Sousa
Ribeiro em 1758, nada resultou
(2).
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4.º Tiveram o mesmo sucesso os do tenente-coronel engenheiro Guilherme
Elsden, com o capitão do mesmo corpo Isidoro Paulo Pereira, e ajudante
do mesmo corpo Manuel de Sousa Ramos em 1777, de que igualmente nada
resultou a favor da barra.
5.º E que os do hidráulico João Iseppi, começados a executar em 1780,
foram suspendidos em 1783 sem haverem produzido nada favorável.
6.º Que também não houve resultado dos planos que veio fazer em 1788,
para se continuarem as obras da barra, o marechal de campo, depois tenente-general, Guilherme Luís António de Valleré; nem da visita
hidráulica do Doutor José Monteiro da Rocha no ano de 1781, de cuja
visita foi prevenido pelo ministério o desembargador superintendente
Francisco António Gravito, e com grande recomendação.
7.º Que em 1791 ficou inteiramente frustrada uma última
tentativa para abrir um rigueirão, pouco abaixo da Senhora
das Areias, para barcos, e para enxugar as águas encharcadas, cujo
projecto foi, de ordem superior, examinado antes de se pôr em execução,
pelo professor hidráulico Estêvão Cabral; mas desta indiscreta tentativa
nada resultou, e não resta dela nem os vestígios, porque as areias
abismaram tudo quanto então se fez debalde; de sorte que nem um só barco
entrou nem saiu por tal rigueirão; que não obstante custou 41.000
cruzados e pelo qual nunca correram para o mar as águas da ria, nem
existe o menor vestígio de escavação que então se fez, porque o mar
tapou o mesmo rigueirão logo que nele desembocou.
Estes sucessos desastrosos, devidos sempre aos erros cometidos já na má
escolha do local, já pelos insuficientes métodos que empregaram,
estabeleceram a opinião da impossibilidade, de abrir e conservar uma
barra para restaurar o comércio, as marinhas de Aveiro, os campos do
Vouga, e a
saúde pública; tais sucessos recomendaram muito a nossa circunspecção e
cautela, não só para segurar o bom êxito final da empresa, mas até
evitar qualquer incidente desfavorável no progresso, dos trabalhos que
pudesse reforçar a opinião tão geralmente recebida e acreditada da impossibilidade da empresa, cujas fatais consequências poderiam ser nada menos do
que o capitular-se outra vez, desesperada e para sempre abandonada para
eterna desgraça de Aveiro, porque até nem lhe ficariam esperanças de a
poder remediar no futuro.
Também antes de começarmos as obras, era preciso apresentar os planos a
S, A. R. para terem primeiro a sua régia aprovação; e como para isso era
necessário concluir o mapa da parte mais interessante do terreno
submergido, isto
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é, desde a embocadura do Vouga na ria perto da Murtosa
até à barra actual, de que era preciso conhecer todas as particularidades, trabalho este que a estação chuvosa não
deixava adiantar, o mesmo senhor, desejando que se não perdesse tempo
algum tão próprio da primavera que estava -chegada, ordenou que se desse
princípio a alguns trabalhos do plano pedido com tanta 'instância da
parte de S. A. R., o qual tenho a honra de apresentar ao mesmo senhor
com o mapa junto (figs. 1 e 2)
(3). Este mapa compreende toda a ria
desde a barra actual até à Torreira e Murtosa, com uma
porção do Vouga, e campos alagados por onde corre, a qual pelo
nascente é terminada por uma parte dos campos, e terreno pouco elevado
onde se divisam muitas povoações, e a cidade de Aveiro, da qual a
parte mais baixa está quase no nível da ria; ao poente termina com o
areal que separa
a mesma ria do oceano; continuando para o norte até Ovar,
onde acaba por este lado duas léguas acima da Torreira; e pelo sul
confina em parte na extremidade da cale de Vagos;
.e por outra com areais da Gafanha, pelos quais o Vouga tem aberto
caminho até às costas de Mira, onde agora está a barra e termina a dita
ria.
Esta ria, ou superfície, quase de nível e baixa, é cortada pelo Vouga, esteiros, e ramos do mesmo rio, dos quais os mais fundos
têm o nome de cales, e destes a principal é a Cale Grande, onde o mesmo
Vouga se dirige da Murtosa
para o Mondazel, e daí vai costeando o areal até à barra, onde desagua o Vouga, reunido com os outros rios e regatos, que entram
na mesma ria. Os referidos esteiros, o Vouga, e ramos do mesmo, que
servem de canais de navegação, dividem a ria em muitas ilhas, que abundavam noutro tempo em sal, e pão; e hoje não apresenta mais da que uma grande lagoa a
maior parte do ano; e no estio um pântano, depósito imundo de águas
corruptas e outras matérias nelas envolvidas, as quais entretêm,
ajudadas do calor, uma pestilencial fermentação por extremo contrária à saúde dos habitantes, por toda a parte onde pode estender-se a esfera
da sua maligna influência, infelizmente assaz dilatada.
A barra pelo seu entupimento, e distância em que está, 5 léguas a
S.S.O. de Aveiro, não dá actualmente escoante às águas estagnadas do
Vouga; não dá marés sensíveis na ria, nem salgadas para renovar as
mesmas águas durante o estio, e menos para beneficiar as marinhas, as
quais estão inundadas oito ou nove meses do ano, não abaixando as águas no
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68 / restante do ano o necessário para as escoar, e preparar
para o fabrico
do sal, por não haver a precisa baixa-mar, que apenas é sensível, e só de alguma polegada; nem depois se lhes
podem meter águas para a factura do sal, porque a preia-mar igualmente
não levanta o nível das mesmas águas a uma
altura conveniente, pela mesma razão de quase nulas marés
que além disso são de água doce, pois o actual fluxo e refluxo,
apenas sensíveis nesta ria longe da barra, se reduzem a uma quase
oscilação das águas da mesma, que recuam alguma
coisa da barra para cima na enchente, e reciprocamente na
vazante; só nos equinócios com vento sul muito rijo e continuado por dias, mar muito bravo, e seca do Vouga, é que
a maré pode salgar as marinhas na preia-mar; circunstâncias
que raras vezes se reúnem na mesma ocasião, e portanto vem
a ser um fenómeno raro aqui, e assim mesmo insuficiente para utilizar o
país.
O mapa do resto dos campos já submergidos, e dos que
sucessivamente o vão ser pelo aumento progressivo da estagnação rio acima,
ainda não está levantado; essa operação
que levaria ainda algum tempo, não era necessária para fazer
ver agora o plano a S. A. R. Eu reservo para outro tempo
apresentá-lo com os planos secundários para acabar de restituir à
cultura, por meio de operações não muito dispendiosas, terreno
hoje perdido e outros quase de todo arruinados, que
podem produzir anualmente perto de milhão e meio de alqueires de milho e feijão, ou o seu equivalente, contando as ilhas da ria.
Estes grandes objectos de utilidade terão por base a nova barra
projectada; mas que necessitarão em partes desses
planos secundários, de que aquela primeira operação é a base
fundamental.
Nesses planos compreenderei o de
levar, quanto for compatível com uma bem entendida economia, a navegação do
Vouga, mais ao interior da Beira; tratarei de promover a
navegação de alguns outros rios, dos que retalham esta comarca, e
escolherei de entre eles, os que do Vouga se
puderem aproximar mais do Mondego e do Douro, afim de
reunir ou aproximar estes três rios, mananciais de incalculável riqueza.
Reservo também para outro
tempo o plano das fortificações para a nova barra projectada; acho que simples baterias abertas na gola são insuficientes, e que um recinto fechado é
indispensável para livrar as mesmas baterias de
um golpe de mão, que poucos homens, desembarcando em
qualquer ponto dos areais desertos da costa limpa e sem
escolhos, poderiam efectuar. Se esta reflexão agradar, farei o
meu plano de defesa em consequência deste princípio; porque de outra sorte bastará o dique que se há-de construir
para abrir a barra, como adiante se dirá, e a testa do mesmo
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69 / para fornecer baterias suficientes para a defender, mas que ficarão
expostas em muitas ocasiões de mar bonançoso a ser tomadas antes de
servirem.
Dividi a matéria desta
Memória em duas partes: a 1.ª compreende a
eleição do local para a nova barra projectada, e os métodos mais fáceis,
seguros, e económicos para se efectuar a abertura da mesma barra. Na 2.ª
parte, que dividi em três secções se mostrará que o resultado desta
nova barra, será não só o pretendido escoamento das águas estagnadas que
infectam o país, segundo as ordens (doc. n.º 11), mas também
uma barra profunda para grandes navios e estável, cujo benefício a
favor das marinhas, campos, saúde pública, navegação, e comércio, fará
voltar esta comarca, a cidade de Aveiro e o seu porto aos mais belos
dias da sua antiga opulência. Mostrar-se-á igualmente que o local
escolhido é o melhor em razão de barra, e satisfaz a todas as outras
vantagens que se desejam, isto é, dará a mais profunda barra, maiores
marés, menores cheias, a maior salubridade do país, etc., etc. e com a
máxima economia.
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