I
Travassô, sede de freguesia, pertence
ao concelho de Águeda e distrito de Aveiro.
Com o seu amplo adro da igreja e a sua
vasta paisagem é uma povoação interessante, grande e progressiva, que
já existia quando da fundação da nacionalidade, sendo muito conhecida
por distantes terras em virtude dos seus afamados santinhos milagrosos
muito venerados Santos Mártires de Marrocos.
JÁ vem de anos atrás a usança simbólica, nesta freguesia, com larga
repercussão pela redondeza, do espectaculoso
enforcamento de Judas Iscariote, aquele apóstolo que, segundo a
tradição, vendeu Jesus Cristo por trinta
dinheiros. O referido acontecimento, com mais espectáculo ou menos
espectáculo, mais gente ou menos gente, tem-se realizado anualmente. E,
por tal motivo, é costume haver rivalidades entre os rapazes do Lugar da
Igreja e os do Lugar de Baixo, caprichando cada um dos grupos para que o
seu Judas mereça mais aplausos do público do que o Judas do grupo
contrário.
Essas rivalidades estimulam o brio dos rapazes e dos dirigentes,
comparecendo quase sempre ao movimentado espectáculo muito público dos
arredores (verdadeira romaria!), resultando a tragédia iscariótica de
Travassô em assunto vivamente discutido e apaixonando muita gente por
dias a fio.
Assim, os dois simpáticos grupos, muito antes da noite do espectáculo,
que é pela Quaresma e se realiza via de regra no Adro da Igreja (hoje
Largo dos Santos Mártires),
pedem auxílio em dinheiro pelas portas dos moradores da
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freguesia. Depois, os artistas da especialidade idealizam ou
engendram, muito em segredo, a sua genial comédia trágico-dramática; e, mãos à obra, portas trancadas,
sempre em grande segredo, trabalhando noite a dentro, durante
semanas, depois dos afazeres diários da lavoura, assim que chega o grande dia e que as
horas do espectacular acontecimento se aproximam, os rapazes e os
dirigentes dos dois simpáticos grupos, nervosos, enigmáticos,
inflamados, vivendo aquele «histórico» momento de tão grande e
misterioso mutismo (para que nada se saiba...), dão-nos a impressão de
que no subconsciente lhes pesa a gravíssima e tremenda responsabilidade
de um fatal cataclismo que pudesse abalar alicerces milenários ou o
imenso segredo de uma conjura de Estado que fizesse ruir tronos e
civilizações multi-seculares.
Sim, senhores! Briosos rapazes! Simpáticos e silenciosos
rapazes!
*
Chegam, finalmente, as onze horas daquela grande noite!
Brilham, na escuridão das
alturas, algumas estrelas, e o
ar é friorento. O amplo Adro da Igreja de Travassô regorgita de
Povo. É já multidão. Há automóveis das vilas de Águeda e de
Albergaria-a-Velha e camionetas de longínquas terras, arrumadinhas aos
lados, à espera do regresso dos que vieram
ver aquilo. Vêem-se pessoas humildes e pessoas categorizadas, desde os cavalheiros engravatados e senhoras com os seus
agasalhos, até às outras gentes simples com os seus casacos grossos,
gabões, sobretudos, tamancos, xailes, chinelas, lenços pela cabeça a
cobrir as orelhas das mulheres e, em todos, muito entusiasmo a
reflectir-se nos gestos nervosos e no brilhar dos olhos incendiados.
Estão ali representadas, por suas gentes, as localidades de Ois da
Ribeira,
Casal de Álvaro, Oronhe, Águeda, EspinheI, Mourisca, Trofa, Palhaça,
Segadães, Fontinha, Alquerubim, Albergaria-a-Velha, Almear, Eirol, São
João de Loure, Pinheiro, Horta, Eixo, Ponte da Rata, Carcavelos, Taipa,
Requeixo, Carregal, e outras mais.
De repente, alguém berra:
− Lá vem! Lá vem!
− É agora, é agora, bradam outros.
Toda a gente se mexe, e remexe, e se aproxima, e se aperta, a falar, a
gesticular, aos encontrões. Toda a gente, de nariz no ar, espicha os
pescoços a querer ver, por cima da onda humana, o que vem lá!
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[VoI. X -
N.º 39 - 1944]
Os mais baixos esticam-se nas pontas dos pés. São disputados, a empurrão, os melhores lugares, para se presenciar o grandioso, o magnífico espectáculo. Gente afoita trepa a
árvores, escala muros, sobe a telhados.
*
− Aquele é o Judas do Lugar da Igreja! informa alguém
num desabafo inflamado, nervoso, delirante.
Mas há afirmações de que o do Lugar de Baixo é coisa de mais jeito,
porque vem num carro a capricho com rodas enfeitadas e com espampanante
séquito, que veste bíblicas e curiosas indumentárias! Um carro daqueles
à moda dos arcaicos tempos, que lembra os dos vencedores romanos nas
arenas! Coisa de muito jeito, sim senhores! E até aparecem Herodes, e Pilatos a lavar as mãos, e o bom e o mau
ladrão, e Caifaz, e Madalena arrependida! Tudo em tamanho natural. É
porque a dirigir aquilo andou ali dedo dos artistas Marques Elias e
Manuel Joaquim Laranjeira − dois sabedores...
Contudo, um rapazote trigueiraço e entroncado, moço de lavoura, que
julga estar no segredo dos deuses diz, do alto de um muro, que não; que
a estrondosa vitória caberá ao Judas do Lugar da Igreja... (ora vocês
verão, berra, convicto) e explica: − porque mete fusilaria e bichas de
rabiar, e porque o Judas trazendo na mão a bolsa com o dinheiro da
traição e a correr num arame a propósito esticado no Adro, acabará,
depois da fusilaria, por sucumbir tragicamente queimado, como merecido
castigo da sua feia acção. E aparecem alguns apóstolos de barbas: S.
Pedro, S. Paulo, e ainda outros principais. E o testamento, então, nem
se fala! Que aquilo é coisa de se poder ouvir e foi feito por quem sabia;
e porque a dirigir o grupo deste Judas lá andaram os antigos mestres
Salvador Rodrigues, João Matos, e José da Júlia, que tinham jeito e
sabiam; e também o António da loja lá era intrometido... Haviam
de ver!...
Há partidários apaixonados. Gesticula-se, berra-se, discute-se.
Aqui e além ouve-se um ou outro palavrão...
O mulherio que, depois da ceia, veio de perto e de afastadas terras,
mete-se e aperta-se por entre os homens, muito sem-cerimónia, muito
sensualão...
E os simbólicos Judas dos dois simpáticos grupos daqueles briosos
rapazes, Judas de palha, bonecos sem vida, que tantas vidas atraem ao
Adro de Travassô, ali ficam reduzidos a nada − esqueletos de arame
dependurados da tradição de
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uma hora trágica − depois de pessoa competente e bem falante
haver lido do alto de um velho muro o magistral testamento
dos «haveres» que os Judas deixam a estes rapazes ou àquelas raparigas.
Aproximadamente há dez anos presenciei por duas vezes,
uma em cada ano, os espectáculos dos Judas em TravassÕ.
A descrição que faço reporta-se a uma dessas vezes. E muito embora por
outras localidades da região também, pela Quaresma, queimassem ou enforcassem o Judas (o que ainda se
faz), a verdade é que esse acontecimento nem de longe atingia a espectaculosidade aparatosa das testas dos Judas em
Travassô.
Transcrevo a seguir alguns versos do testamento de um
Judas, versos feitos pelo «poeta» de um dos grupos para a
cerimónia final. Tais testamentos, porque sempre visam os
derriços e as vidas públicas e íntimas dos rapazes e das raparigas da localidade, mudam de ano para ano.
É velho hábito atingir só os
solteiros e não os já casados. São declamados,
como atrás digo, das alturas de um muro.
Copiado do original:
1
Eu sou o Judas malvado
Eu sou o Judas traidor
Todos vós bem sabeis
Que
vendi Nosso Senhor
2
Eu fiz o meu testamento
Com muito boa divisão
Para não ter falta alguma
Chamei para o fazer o sr. padre Rachão
(Por já não poder vir o sr. Júlio da Conceição)
− Ao tempo ainda era vivo o sr. P.e Rachão, e há muito já falecido
o Sr. Júlio da Conceição, dois saudosos e
distintos notários em Águeda
3
Ali temos a Maria Pires
Pequena do meu intento
Deixo-lhe alhos, arroz, azeite e vinagre
Para o dia do seu casamento
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4
As minhas luvas de plica
Ficam à Cazemirinha
Para quando for a passeio
Lá para os lados da Fontinha
5
Deixo à Rosa Lopes gorducha
Uma prenda muito boa
Para deitar urina aos rapazes
Que lhe vão serrar a patroa
6
Deixo um tapete à Rosalina
Que tem um coração sensato
Para estar à janela com o namoro
A catar as
pulgas ao gato
7
Ao Diamantino deixo
A minha bela jaqueta
E quatro metros de corda
Para tocar à sineta
8
Ao Arnaldo catita
E à Elvira da cobiça
Deixo gravata e colete
Para ambos levarem à missa
− e depois de muitos outros versos, todos neste mote e sem
pontuação, termina o inspirado poeta do Judas:
9
Andei de um lado pró outro
Para virem todas a eito
Para contentar
raparigas
É preciso muito jeito
10
São muito desconfiadas
Se as coisas não lhe calham bem
Mas se lhes toca o namorado
Não dizem
nada à mãe
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11
Os rapazes são marotos
Mas elas são matreiras
Quem não quer ser crestado
Não deve pular fogueiras
12
Adeus rapazes e raparigas
Adeus toda a multidão
Dentro em pouco o meu
corpo
Será pendurado na figueira
ou transformado em carvão.
− O «poeta» admitia já o corpo do Judas feito em carvão
por saber que seria queimado pela pólvora da fusilaria.
E onde diz serrar a patroa refere-se ao velho hábito que há
pelas nossas aldeias de Serrar a Velha.
Aveiro. Agosto, 1944.
LAUDELINO DE MIRANDA MELO |