NA
organização disciplinar eclesiástica, a visitação anual às
paróquias por parte de delegados episcopais para esse fim designados
constituiu nos passados séculos um dos meios mais eficazes e salutares
para a manutenção da pureza da fé e do culto católico, muito
contribuindo igualmente para a fiscalização dos costumes, moralidade e
bem-estar dos povos.
Expressamente as
Constituições diocesanas a estabeleciam(1),
e com o maior cuidado se promoveu a sua realização durante centenas de
anos; por fim, devido certamente às convulsões políticas e consequente
transformação social, as visitas paroquiais foram caindo em desuso,
vindo a cessar de todo ainda no 1.º quartel do século XIX.
Não obstante,
Constituições recentemente promulgadas, como são as do Prelado de
Coimbra, D. MANUEL LUÍS COELHO DA SILVA, de 1929, pelas quais se regula
a vida paroquial de uma parte do Distrito de Aveiro, conferem ainda aos
arciprestes direitos e obrigações de visita anual às freguesias do seu
arciprestado (Constituição VII, n.os 187, 188, 192)
que de alguma forma representam a continuação da antiga prática.
/ 133 /
A vida social modificou-se,
no entanto, sensivelmente, e a actuação dos visitadores, embora 'os
objectivos finais permaneçam idênticos aos da sua ideologia de outrora,
difere muito da que pelas actas das visitações nos é revelada,
bem como pelas das devassas que à vida dos
paroquianos cumulativamente por vezes se realizavam nos passados séculos(2).
Constituem essas actas −
umas e outras − fontes preciosas para o conhecimento de particularidades
locais da vida dos povos, que em mais parte alguma se encontram,
fornecendo-nos, ao mesmo tempo, abundantes pormenores históricos,
arqueológicos e artísticos, por vezes de interesse geral.
Extraviou-se grande número
dos livros em que as actas das visitações e das devassas
foram lançadas; no entanto, na importante incorporação de documentos da
Câmara Eclesiástica de Coimbra que em 1933 realizámos, mercê da qual
deram entrada no Arquivo da Universidade dezanove toneladas de livros
manuscritos, processos, e papéis avulsos, alguns
volumes de actas daquela natureza se recolheram(3),
e neles muitas das freguesias do Distrito de Aveiro se encontram
representadas; são, evidentemente, das que pertenciam à Diocese de
Coimbra, pois das do Norte, incluídas na área da Diocese do Porto, tudo
se perdeu. Mal informado, um Prelado portuense autorizou há poucos anos
a destruição de toda a papelada da sua Câmara Eclesiástica, exceptuados
os livros paroquiais ali recolhidos já. Foram séculos de história local
que ingloriamente se queimaram.
*
Como exemplificação de
quanto o conhecimento das visitações, espécie documental com que muitos
historiadores não tomaram ainda contacto, pode subsidiar os estudos
regionais, damos a público a acta de uma visita de grande interesse para
a região bairradina; é a que em 12 de Fevereiro de 1587 se realizou à
igreja paroquial de Sangalhos, cuja acta extraímos não do respectivo
livro de registo, mas já de uma certidão nesse mesmo ano obtida pelo
Mosteiro de Santa Clara de Coimbra, e encadernada num volume de
miscelânea de documentos relativos à extinta vila de Sangalhos que, por
ocasião da secularização do Convento conimbricense, foi recolhido à
Direcção de Finanças do Distrito, donde o recebemos em 1937 com todo o
espólio dos chamados Próprios Nacionais, também para o Arquivo da
Universidade.
/ 134 /
O valor de documento
autêntico, e importante, que se reconheceu àquela acta, extraindo-se
dela certidão por notário público, confirma o que acima dizemos sobre o
conceito em que o historiador deve ter esta espécie de documentos pouco
utilizada ainda como fonte noticiosa.
Compreende-se o interesse do
Mosteiro clarista na obtenção e arquivo daquela certidão desde que se
diga que por D. Afonso IV lhe fora doado o senhorio e o padroado de
Sangalhos.
Suscitou-se em 1755
complicada demanda entre a Abadessa e Convento de Santa Clara de Coimbra
como autores, e os colonos, enfiteutas, caseiros e moradores daquela
então vila como réus, tendo por objecto os foros de vários casais. Os
réus agravaram para a Relaçãõ do Porto, e daí subiu o processo ao Juízo
da Coroa da Casa da Suplicação; em 1757 ainda por lá se arrastava,
requerendo os réus que fosse sustada a execução da sentença proferida no
Porto.
Existe no Arquivo da
Universidade um códice, provindo também do Mosteiro, com certidão
autêntica dos autos desse agravo, interessantes a muitos títulos;
baseando os seus direitos senhoriais em documentos que terminam com o
foral manuelino (que em breve aqui será publicado também), as claristas
relacionavam em primeiro lugar uma carta de D. Afonso IV, de compensação
com os testamenteiros da Rainha sua mãe, em virtude da qual o senhorio
de Sangalhos era transferido para o Convento de Santa Clara. Assim se
explica o brasão de St.ª Isabel de Aragão e Portugal que ainda hoje, em
magnífica talha dourada, a igreja matriz ostenta, bem como as imagens de
Santa Clara e da Rainha Santa, ladeando o altar-mor, e as referências
das Informações Paroquiais de 1721 por nós aqui
insertas já (vol. 6).
Declara o documento
afonsino, que supomos inédito(4):
Dom Affonco por graca de Deõs Rey de Portugal e dos Algarues &.ª ... ...
...
REPRODUÇÃO
DESTE DOCUMENTO EM PDF [PDF 353 KB]
Conhecido assim o donatário
da vila, e as razões por que o era e lhe pertencia o direito de
apresentação, melhor
/ 136 / se compreenderá o texto da visitação, que
reza desta
forma:
(E vai transcrito em PDF)
VISITAÇÃO DA
IGREJA DE SÃO VICENTE... [PDF 940 KB]
/ 139 /
Para a história do
povoamento da região bairradina têm interesse as referências feitas pela
acta da visitação à estrada, verdadeira coluna vertebral da vida
do Distrito; as alusões ao mercado que em Sangalhos se instalava no adro
da igreja dos domingos e dias santos, costume muito generalizado nas
freguesias rurais de Portugal, as relações dos povos vizinhos com a
matriz, a declaração formal de que de Coimbra até Aguada não havia
igreja onde os caminhantes pudessem ouvir missa, constituem outros
tantos elementos que o futuro historiador da Bairrada não deixará de
considerar e que determinaram a presente publicação deste documento, que
até só pela sua data se tornava já digno de registo.
Sangalhos é terra de grande
antiguidade, recordada já nos mais antigos documentos medievais
portugueses.
PEDRO AUGUSTO FERREIRA, na
sua famosa Tentativa Etimológico-Toponímica (IlI, 177), admitia
que o topónimo pudesse ter por origem um nome de santo − São Gallo −
advertindo que em Espanha se lia galho − São Galho − tendo também
sugerido que poderia provir de Gazalhos, com o significado de
tortulhos, ou cogumelos.
A falta de consulta da
indispensável documentação medieval, e a quase absoluta carência de
método científico, que caracterizam e inutilizam as mais das vezes o
trabalho etimológico do Abade de Miragaia, exemplificam-se nestas
propostas.
São Gall, ou
Gallus, monge escocês que em 613 se retirou para um ermitério,
acompanhado por seus discípulos Mang e Teodoro, e que mais tarde a
Igreja canonizou, deu o nome a uma cidade e a um cantão da Suíça
oriental, entre o Lago de Constança, o Reno, os cantões dos Grisões, de
Glaris, de Schwyz, de Zurique e de Thurgóvia. À hipótese do santo haver
igualmente influenciado o topónimo português opõe-se, todavia, o facto
de se não encontrar vestígio do seu culto entre nós; a sobrevivência dos
primitivos oragos paroquiais é lei raramente inobservada; ora a
invocatória local é de S. Vicente e em parte alguma do nosso país se
regista o culto de São Gal na Idade Média.
No Livro Preto da Sé de
Coimbra, cartulário que transcreve os mais antigos documentos do
cartório do Cabido, insere-se um diploma do ano 957 onde Sangalios
é apresentado como confrontação da vila de Aguada doada por lnderquina
Pala ao lugar de São Salvador, documento do maior interesse regional:
... ferit in ila mamola que diuidit cum uilla sangalios
(publicado in Diplomata et Chartae, pág. 42); no mesmo
cartulário, em documento do ano 1087 (Dipl. et Ch.,
/ 140 /
pág. 405), se lê como o Conde D. Sisnando doou à igreja de Mirleus, de
Coimbra, . . . in illos barrios uillam sangalios cum aprestationibus
suis...
No Liber Testamentorum
do Mosteiro de Lorvão (cartulário medieval também) a mesma Inderquina
Pala acima citada doa àquele convento, em 961, ...
uilla aqualada quomodo exparte cum barriolo et de alia parte cum
auelanas et cum sangalias(5)
et monasterium de marnelle que uocitant sancta maria de lamas...
(igualmente in Dipl. et Ch., pág. 53).
A. A. CORTESÃO regista todas
estas formas nos seus utilíssimos Subsídios para um Dicionário
completo (Histórico-Etimológico) da Língua Portuguesa, bem como no
seu Onomástico medieval Português; e nos Documentos da
Chancelaria de Afonso Henriques, de ABIAH ELISABETH REUTER,
inserem-se a carta de couto de Barrô e Aguada, de 14 de Fevereiro de
1132, e a carta de doação de Pedaçães e de Sangalhos, de Junho de 1143.
onde se encontram, respectivamente, as formas Sangalios e
Sangallos; mas a péssima leitura e revisão deste livro tornam-no de
tal forma perigoso para o filólogo, que só confrontando-o previamente
com os textos que lhe serviram de original se pode utilizar.
Buscando formas medievais
aproximadas, notaremos que DU CANGE, no Glossarium ad Scriptores
mediae et infimae Latinitatis, regista «Sangalla, telae genus,. ab
Ital. Sangello, nostris Bougran. Acta S. Juvenalis tom. I. Maii,
pag. 401. Haec tamen (capsula) posita fuit immediata in aliam
capsam magnam & crassam ligneam, intus tela, ut dicitur Sangalla...»
Bougran é o antigo
bocaxim português, espécie de entretela.
Não creio que nada disto
explique o étimo de Sangalhos, sendo preferível, talvez, buscá-lo nalgum
antropónimo, embora para este, depois, o problema viesse igualmente a
pôr-se...
Mas inegável é a muita
antiguidade da povoação, que a fertilidade do seu solo explica
perfeitamente.
ANTÓNIO GOMES DA ROCHA
MADAHIL |