Egas Moniz, Escultor Maurício de Almeida, Vol. IX, pp. 161-244.

MAURÍCIO DE ALMEIDA

ESCULTOR (1897-1923)

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Duas horas e meio de caminho, e além doutras deficiências, aquecimento incompleto para os modelos e mais ainda para os donos da casa.

Outro atelier! De novo empreguei esforços para que o Estado o auxiliasse. Tudo debalde. O caminho do Destino...

No princípio do mês imediato − Agosto de 1922  −, volta a escrever-me. É um postal ilustrado. Transcrevo o que vem no verso:

«Collection d'Art de la Ville de Paris» (Palais des Beaux Arts).

62. Landowski Paul. − «L'hymne à l' Aurore»

São duas figuras, homem e mulher, em atitude de adoração e êxtase. Dois expressivos nus em prece, que atestam o valor do Mestre e justificam a admiração que Maurício consagrava ao grande escultor.

«Paris, 12-X-1922.

«Meu bom Protector e Amigo:

«Estamos em vésperas do «déménagement» e pensamos ficar definitivamente instalados no nosso novo atelier no próximo dia 16. Esperando lá as ordens de V. Ex.ª, rogo a gentileza de tomar nota do meu «adresse» futuro:

«71 bis Rue Danjou.

«Boulogne s/ Seine − Paris.

«O trabalho do mármore, sempre bem. Pensamos trabalhar muito na nova casa.

«As minhas melhores homenagens para S. Ex.ª Família, com o abraço grato do Maurício.»


A vida torna-se cada vez mais penosa, porque qualquer auxílio de Portugal, com o franco a mais de 2 escudos, era difícil de ser eficiente e os recursos próprios muito precários.

Teve de recorrer a um empréstimo que generosamente lhe foi feito por um avancanense, de passagem em Paris. / 211 /

Mas tudo era pouco para as suas necessidades de momento, visto que as suas economias já tinham sido consumidas.


«Paris, 30-X-1922.

«Meu Ex.º Amigo e Protector:

Não estranhe V. Ex.ª de eu demorar tanto a escrever-lhe. Fizemos o nosso déménagement, e V. Ex.ª sabe muito bem o que é isto de preparar quatro paredes para dentro delas se poder viver. Além de tudo os operários ainda não deixaram os acabamentos na nova casa, o que nos tem atrasado imenso a nossa instalação. Escrevo até, no restaurante onde vimos comer, porque só na próxima semana é que teremos a ligação da energia eléctrica e o dia todo é pequeno para o trabalho...

«Muito agradeço o gentil e franco oferecimento de V. Ex.ª. O Snr. Júlio Neves a quem me dirigi, emprestou-me 3.000 francos para estas primeiras despesas da montagem do atelier, e espero mais algum dinheiro até eu começar a receber ordenado. Já não é a primeira vez que este meu amigo me faz um tal favor, e sensibiliza-me bastante também, a maneira tão franca e aberta, como o faz.

«A nossa Santa! Vou agora trabalhar de noite com a luz eléctrica e penso deixá-la pronta neste inverno, se Deus me der saúde e sorte para aqui viver. Creia V. Ex.ª que eu me desespero por não poder ser mais breve com o meu prometimento... O esquiçosinho enviá-lo-ei estes dias, somente para dar uma vaga ideia do que tento fazer. V. Ex.ª dirá da sua Justiça. Tomei nota das novas informações que me dá sobre a nossa capelinha.

«O trabalho do nosso Medina é menos longo a fazer e ele o terá pronto em seu devido tempo. Depois de estarmos instalados vamos meter-nos à obra... Vou enviar um jornal de Nancy (L'Éclair de L'Est) para V. Ex.ª ver umas apreciações que fazem ao meu amigo Medina, sobre umas telas que ele expõe no Salon daquela cidade. É um rapaz de extraordinário valor, que eu me honro de ter como companheiro. Virá a ser um grande pintor.

«O meu trabalho de mármore vai bem. Estou a terminar a modelação dumas mãos e braços pertencente a uma grande estátua. Vamos a ver se, além do grande / 212 / prazer que tenho nesse serviço, consigo tirar algum resultado pecuniário...

«Felicito V. Ex.ª pela nova e interessante ocupação que tem. Como amador já faz trabalho muito aproveitável na fotografia, e deve continuar porque terá facilidade em réussir. Sobretudo a prova em papel é magnífica e eu agradeço-a muito.

«Saudações...

Maurício de Almeida.»


«...se Deus me der saúde e sorte para aqui viver»! Outra plangência: novo pressentimento. É um motivo que agora, ao reler as suas cartas, me denuncia, pela repetição, em frases embora diferentes, um mal-estar que nunca abertamente confessou. Bem contrariado estou por não o ter adivinhado!

Medina começa a revelar o seu talento nos quadros que expõe. A sua ascensão é marcada nas cartas de Maurício, como se fosse o seu próprio triunfo. Ambos subiriam alto; mas o Destino apenas permitiu que Henrique Medina alcançasse a brilhante situação que desfruta.


«Paris, 30-XI-1922.       Rue Danjou, 71 bis. Boulogne s/ Seine.

«Meu Ex.º Protector e Amigo:

«Venho agradecer-lhe muito reconhecidamente a honra da oferta da primorosa edição «Do Valor e da Saudade», bem como a inserção da local, no «Diário de Notícias», referente ao meu caro companheiro de atelier Henrique Medina, que ficou satisfeitíssimo e imensamente penhorado com a surpresa da publicação, honrando-se muito, também, com a oferta do novo livro de V. Ex.ª Ele disse que lhe escreveria a patentear-lhe a sua gratidão por uma e outra coisa, mas não sei se já o fez. Ultimamente tem andado bastante por fora de casa e talvez ainda não tivesse ocasião; mas ele lembrar-se-á do seu dever.

«A edição do «Do Valor e da Saudade» é interessante e bem cuidada. Porém, o retrato do meu bom Protector deixa muito a desejar, podendo mesmo dizer-se que é uma desgraça. Fotografia horrorosa, nela não pode adivinhar-se o homem de ciência, o tribuno, o político, o artista, nem nada. Não é o Snr. Dr. Egas Moniz que ali está, com a sua larga fronte de pensador, o seu olhar de visionário, a sua feição acentuadamente aristocrática. É um retrato à século 17 sem graça nem carácter, que mais / 213 / parece a pose dum oficial da armada, ou dum brasileiro rico. Desculpe-me V. Ex.ª a rudeza da apreciação, mas foi o que me sugeriu o desapontamento que recebi ao olhar a fotogravura «Do Valor e da Saudade», onde a custo pude reconhecer a figura distinta do meu caro-Protector.

«Moldei ultimamente, do natural, a mão direita do filho mais novo do Snr. Homem Cristo e vou ver se o modelo em mármore, para uma surpresa que Madame Cristo deseja fazer a seu marido para o próximo Noël.

«As minhas homenagens....

Maurício de Almeida

 

Esta carta não devia vir a lume, por quase apenas se referir, e de forma excessivamente elogiosa, ao autor do artigo. É, porém, tão espontânea na crítica, tão severo na apreciação do meu retrato, que passei a considerá-lo fero censor fotográfico.

Como crítico da arte alheia, era, porém, muito mais benevolente, embora precisasse sempre os motivos das suas apreciações.

Vem aqui a propósito dar lugar a uma carta de Henrique Medina, que corrobora a boa amizade que ligava os dois artistas.

Ambos se preocupavam com a minha encomenda para a capela da Areia de Avanca, que, por azares da sorte, não chegou a albergar as produções artísticas de nenhum dos dois. Mas nem por isso os esqueci no meu reconhecimento. A prematura morte de Maurício fez-me perder a Santa, e a saída de Henrique Medina do atelier e, depois, de França, impossibilitou-o de realizar os seus bons desejos.


«Ex.º Snr. Dr. Egas Moniz:

«Venho envergonhadíssimo desculpar-me, perante V. Ex.ª da enorme falta em que estou, agradecendo tão tardiamente as extremas e imerecidas atenções de V Ex.ª: o admirável discurso que já tive o prazer de reler e o elogioso artigo do «Diário de Notícias», que me deixaram imensamente confundido e que, penhoradíssimo, agradeço.

«Pelo meu bom amigo e companheiro Maurício, eu conhecia V. Ex.ª mais que de nome, e muito me honra pôr ao serviço de V. Ex.ª o meu inútil préstimo. / 214 /

«Tenciono enviar brevemente o estudo para panneau prometido, que se for de acordo com o desejo de V. Ex.ª se poderá expor em Lisboa na ocasião da Exposição da Sociedade de Belas Artes. Muito estimarei saber a valiosa opinião de V. Ex.ª que melhor conhece a luz e o local para onde o panneau é destinado.

«Boulogne s/ Seine 21-XII-1922.

Henrique Medina


Na carta que se segue há uma nota que desejo pôr em relevo: «O meu trabalho no atelier Landowski avança sempre...». Soube, quando mais tarde estive em contacto com os seus companheiros, que o seu cinzel era tão delicadamente conduzido, que passou a ser admirado, mesmo por aqueles que, de há muito, trabalhavam com o Mestre.


«Paris, 3 de Janeiro de 1923.

«Meu Ex.º Protector e Amigo:

«Disse já que me foi entregue a carta de V. Ex.ª com a devolução do croquis e também estou possuidor da de 24 último, que agradeço vivamente. É meu desejo que o novo ano traga à casa de V. Ex.ª a mais completa felicidade.

Soubemos que o «Concelho» tinha publicado também alguma coisa sobre o meu caro Medina; mas esse número ainda nos não foi remetido, porque o meu Pai deseja talvez fazer a transcrição na «Gazeta de Arouca». V Ex.ª 10i duma gentileza extrema e o meu companheiro está-lhe profundamente reconhecido.

«Vou principiar a Santinha nos meus serões, agora que recebi um bocado de dinheiro para as primeiras despesas. Não sei se a poderei enviar para a exposição, porque a argila necessita muito tempo para secar em condições de entrar no forno. Veremos. Será em terracota e eu me encarregarei também de a pintar.

«Nos dias de consoada e ano Novo almocei no Hotel do Louvre com o Snr. Visconde da Pesqueira, que tem sido muito amável para comigo.

«No próximo domingo volto lá para saborear um menu completamente novo para mim e que o Snr. Visconde já encomendou, para pôr à prova a minha coragem. É o que segue: ninhos de andorinha, caracóis e / 215 / rãs. Faz rir, mas é verídico e eu sentir-me hei feliz se chegar ao fim do almoço... Que afinal pode ser uma deliciosa refeição.

«O Snr. Homem Cristo ficou muito satisfeito com a surpresa da mãozita em mármore que eu modelei. Sua esposa escreveu-me as mais lisonjeiras palavras.

«O meu trabalho no ateIier Landowski avança sempre e neste mês quero ver se peço ordenado para regular a minha situação.

«Já é tarde e este ano estou a ver que pouco ou nada poderei fazer para o «Salon» daqui. Inferno! É isso que me desespera, é isso que me rói a consciência, é isso que me faz descrer da vida! Bons projectos já feitos, castelos no ar! E eu que tanto queria tapar a boca a alguém que no ano último me acusou de literato... Mas isto é sina do artista. As suas melhores ideias são para deitar ao vento. Tant Pis!

«As minhas melhores homenagens...

Maurício de Almeida.»


A sua correspondência é, por vezes, cheia de pitoresco. O leitor que tiver lido esta última carta há-de ter sorrido. Não me disse depois se gostou do almoço que o Snr. Visconde da Pesqueira, devotado amigo dos artistas portugueses em Paris, lhe desejava oferecer.

Sempre na ânsia do trabalho, consumia as suas energias em outros esforços, alguns úteis, é certo, mas sem que pudesse desferir voos à sua fantasia em objectivações plásticas.

«Inferno!» escreve. A vida!


«Paris, 31-1-1923. 71bis, Rue Danjou, Boulogne s/ Seine.

«Meu Ex.º Protector e Amigo:

«Enfim, tenho, felizmente, quase decidida a minha situação. Quando me preparava para pedir ordenado ao meu Mestre, chama-me à parte o praticien do atelier de mármore para me perguntar se era minha intenção trabalhar ali simplesmente para saber, ou se era também com o fim de ganhar a minha vida. À minha resposta afirmativa sobre a questão pecuniária, disse então que me preferia a qualquer outro artista que tivesse de chamar e, desde que eu terminasse um grande baixo-relevo que tenho entre mãos, resolveria o ordenado a dar-me / 216 / mensalmente, ficando eu no atelier também como praticien. Esse trabalho em que me ocupo ainda, demora algumas semanas a acabar, mas, desde que depois comece a receber, fica atingido o meu fim. Felizmente! Vamos a ver quanto ganharei, mas sempre hei-de ter o suficiente para me sustentar aqui.

«A Santinha vai avançando. Não é muito o tempo de que posso dispor para trabalhar em casa na escultura; mas aproveito todos os momentos e... petit à petit..

«O engenheiro Aníbal, o célebre regedor da «Nossa Aldeia»(1), deu-me a honra da sua visita, há coisa de 10 dias. Passeou pelos Grands Boulevards, aproveitou uma soirée no Casino, dormiu aqui no atelier, à laia de boémio, e partiu no dia seguinte para a Alemanha. Ainda me não escreveu, não sei se chegou bem.

«Cumprimentos.

Maurício de Almeida


Um raio de sol lhe entrara pela janela da existência atribulada em que se consumia. Ia ganhar, como praticien, no atelier de Landowski! Ele, que queria viver independente, que queria bastar-se a si próprio, sentia que a felicidade o vinha finalmente bafejar.

As duas cartas que se seguem mostram esta nova faceta da sua adaptação à vida; mas não esquece as dificuldades em que se encontra, a algumas das quais eu pensava dar solução na minha próxima ida a Paris.


«Paris, 8-IV-1923.

«Meu bom Protector e Amigo:

«Há muito que me não dá as suas notícias, o que estranho deveras. Das duas uma: ou está doente, ou está zangado comigo. E destas conjecturas não sei o que seria mais doloroso para mim. Quê? Talvez preferisse que estivesse zangado comigo, pois, ao menos com saúde, teria tempo para saber que não tinha razões para isso...

«Há mês e meio que trabalho em casa. Ainda nada ganhei no atelier de mármores, mas estive lá até adquirir a certeza de que ia receber ordenado. E depois? Depois, fortificado com essa fé, zás! Resolvi empenhar-me em mais dois mil francos, para concorrer ao / 217 / [Vol. IX - N.º 35 - 1943] Salon deste ano. E comecei a trabalhar. A trabalhar muito! Quis modelar um pedaço grande de escultura, um torso que, ligado a figura inteira, daria um homem maior 3 vezes do que eu! Mas fui infeliz, Principiei tarde! Embora com esforço extremo, não havia possibilidade de acabar a tempo o meu trabalho.

«Desanimei? Não. Estou em vias de acabar uma parte dessa obra começada para dela me servir como envio ao Salon. É uma cabeça de expressão e parte do torso, que ainda assim mede quase um metro. Não sei se agradará. Se não agradar, é contudo a demonstração dum esforço de trabalho, o que já é qualquer coisa.

«Amanhã pelas 8 1/2 da manhã terei cá a visita do meu mestre Landowski. Verei o que ele me diz. Eu sou homem para, no último momento, escacar a minha obra em vez de a mandar para o Salon desde que a não veja muito a meu gosto...

«Ah! E a nossa Santinha? Ainda não está pronta, mas não penso em outra coisa. Desde que a minha situação o permita, necessito ficar alguns dias em casa para a terminar. À noite não posso mais continuá-la. A luz artificial não é grande coisa e de resto, um dia destes grandes, cheio de trabalho, é já bastante para um mortal. E o pior é que, além da escultura, há o ménage a fazer e muitas outras coisas a tratar, que me roubam um tempo imenso! Eu confesso, não posso chegar a mais. Não posso! E Deus tenha em conta a minha boa vontade de sempre querer tudo cumprir a tempo e horas! Agora, em seguida a este meu trabalho, fico com uma grande barreira a vencer. Um «Adamastor» se me atravessa já na ideia... É a minha dívida de 6.000 francos que eu desejo pagar. Não tenho medo disso, não! Mas enquanto não satisfizer a minha consciência de homem honesto, não poderei descansar.

«O Medina faltou-me aqui em casa ultimamente muitas semanas, esteve fora de Paris a fazer o seu quadro para o Salon. Ele vai escrever a V. Ex.ª

«Queira apresentar...

Maurício de Almeida


Hoje, ao reler essa carta em que a delicadeza de sentimentos se manifesta mais uma vez, vejo que o seu organismo, enfraquecido pelo trabalho e perturbado pelas dificuldades, estava em perigo iminente. Mas, mesmo nessa altura, nem por sombras me lembrei de que uma doença traiçoeira o arrastava para o precipício final.
/ 218 /

O Amateur (fig. 15), a última obra que levou ao Salon, é uma preciosidade de técnica que igualmente se perdeu na voragem desatenta dos que passam sem dar apreço ao talento e esforço alheios.

Não teve tempo para levar obra de maior vulto. Esta falta existiu por certo; talvez por carência de força e energia, primeiras nuvens a ensombrarem o horizonte de uma actividade sempre alerta.

A Santa encomendada preocupava-o excessivamente; muito mais do que o assunto merecia. Tomou a solução muito a seu cargo; passou a ser objectivo próprio.

Escrevi-lhe a pedir que se poupasse. As fadigas consomem e não há energias que vençam as deficiências orgânicas. A encomenda da Santa não devia alterar a sua vida. Se não viesse este ano, viria para o imediato. Trabalho para realizar nas horas vagas, mas sem sacrifícios.

Em breve nos encontraríamos.

Como a sua técnica tinha melhorado vê-se no busto da Fig. 16, cujo destino ignoramos. Na Fig. 17 damos um aspecto do seu atelier, em que se vê uma cabeça de criança, que, mesmo nas más condições da fotografia, mostra o cuidado e escrúpulo de execução que punha em todas as suas obras.


«Paris, 23-V-1923.

«Meu Ex.º Protector e Amigo:

«Peço desculpa de só agora responder à sua prezada carta de 6 último. Tenho tido imenso trabalho e o pouco tempo que me resta, a minha frágil constituição requisita-o para repouso.

«Meu Mestre Landowski, que ainda não tinha visto trabalho nenhum meu de modelação, ficou muito satisfeito com L' Amateur e chamou-me para sua casa afim de o ajudar nas suas obras. Deixei, pois, o atelier de mármores para dedicar-me à modelação dos originais, o que é sobremaneira interessante para mim, e desta vez creio ser certo começar a ganhar dinheiro. Até ao domingo tenho trabalhado, porque temos obras de urgência. É um esforço que faço, mas estou muito contente porque vejo desenhar-se uma situação. Que Deus seja conosco!

«Alegrou-me deveras a notícia que me deu sobre a viagem a Paris. Teremos ocasião de conversar sobre a minha vida, e V. Ex.ª verá em que alturas se encontra a modelação da Santinha, calhando, à maravilha, para emitir o seu parecer. Não posso dizer já, as horas em / 219 / que me encontro em casa, porque isso depende do serviço que tiver na ocasião. O melhor será V. Ex.ª prevenir-me por um «pneumático». Para apanhar-me de surpresa, naturalmente só às 7 da manhã ou depois das 8 da noite...

«Disseram-me que o «Diário de Notícias» publicou uma local a meu respeito, mas eu ainda nada vi. Se é verdade, creio ser V. Ex.ª a quem eu tenho de agradecer uma tão grande gentileza.

«Então até breve, não é verdade? Nós conversaremos.

«Os meus respeitos...

Maurício de Almeida.»


Depois dessa carta, vem o último acto da tragédia, que acompanhei em Paris até ao transe final. Confiei a uns papéis, hoje desbotados pelo tempo, as impressões que então me deixaram esses dias sombrios e dolorosos.

Após trabalhos profissionais da Reunião Neurológica de Paris, estava para seguir para Lisboa, mas quedei-me junto do infeliz Maurício.

Este artigo é uma pequena notícia histórica para o «Arquivo»; mas é também uma página pungente da minha vida. Por isso dou publicidade às folhas então escritas e que ficaram esquecidas durante mais de 20 anos, juntas a muitas fotografias, algumas das quais damos à estampa.

A fig. 17 dá a impressão do seu atelier. Outro aspecto (fig. 18), mostra a Senhora do Rosário no seu delineamento geral. Foi junto da sua Santa, já adiantada na modelação, que ele nos disse o último e supremo adeus.

Um outro aspecto do atelier de Maurício a trabalhar no seu «Amateur» (fig. 19), a sua última obra, merece também ser recordado, tanto mais que é flagrante a semelhança da obra com o modelo.

Os que tiverem paciência para nos seguir no relato que ao tempo deixámos escrito, história do epílogo de uma vida atribulada pela ânsia do triunfo, que o leiam com devoção. A minha sensibilidade encanecida não me deixa segui-lo sem constrangimento.

 

Paris, Junho de 1923. Maurício de Almeida deixou-se seduzir, como dissemos, no alvorecer da sua aprendizagem artística, pela obra de Soares dos Reis. Recorda-me ainda hoje a emoção que ele me comunicou, mostrando-me um dia «O Desterrado» no velho museu do Porto. Todas as suas belezas eram vistas por Maurício sob um aspecto muito / 220 / particular. Prendia-o a expressão, mas entusiasmava-o a linha geral do adolescente, a atitude um pouco enovelada, a vida que palpita naquele pedaço de mármore animado, pelo cinzel dum grande Estatuário.

Também o dominou a obra de Teixeira Lopes, seu primeiro Mestre, sempre respeitado e admirado. Muitas vezes conversámos sobre algumas das suas mais belas esculturas.

Foi Teixeira Lopes quem lhe deu cartas para Charpentier e Noël, em Paris, cartas que não aproveitou, porque o seu espírito, ávido de novos horizontes, mostrou, desde o início da sua chegada à grande capital, uma acentuada predilecção pelas concepções de Landowski.

Dos antigos preferia Miguel Ângelo. Passava horas, quando lhe sobrava tempo do seu trabalho, a admirar, no museu do Louvre, os Escravos do grande e incomparável escultor, talvez o maior de todos os tempos. Les Captifs são um pouco a expressão da sua última maneira de ser 'artística. Miguel Ângelo quis representar aspectos das suas concepções sobre as «Artes liberais prisioneiras da morte» e eram destinadas ao túmulo do Papa Júlio lI, que muito as protegeu.

Uma das figuras é movimentada, torturada, os braços presos atrás das costas, como torso em movimento. A outra, mais serena, tem os braços em torno da cabeça e uma expressão fisionómica de depressão e desalento. Maurício esquecia-se a revê-las com o meticuloso cuidado que punha em todas as suas observações.

Ao lado destas, experimentou as demais influências do meio artístico de Paris, em que os museus estão cheios de preciosidades do passado e em que tantos grandes mestres da actualidade mantêm a hegemonia da escultura, pois nem Roma consegue avantajar-se-lhe.

Quando o fomos encontrar, pela primeira vez, no seu inconfortável atelier da Rua Danjou, tinha sobre o leito um volume de Rodin, um dos seus mais admirados escultores. Ia assim formando a sua individualidade artística, misto de moderno e de clássico, de movimento e de forma. A sua atenção prendia-se especialmente às grandes linhas.

A obra exposta no Salon deste ano, L'Amateur, não estava no plano da sua concepção inicial. O busto, maior do que o natural, como mostra a fotografia que o artista me ofereceu do seu atelier (fig. 19), é apenas um fragmento, como ele o denominou, da obra que imaginara. Na mão esquerda tinha uma pequena quimera a justificar o título do busto.

 

Arrumados os assuntos científicos que me tinham levado a Paris à Reunião Neurológica, enviei um pneumático a Maurício de Almeida, a dizer-lhe que estávamos no Hotel / 221 / des Capucines e lhe pedia para vir almoçar connosco no dia seguinte, 14 de Junho de 1923.

Era um dia cinzento, bastante agreste, lembrando mais o início do inverno do que o desenvolver da primavera.

Ao meio dia chegava o Henrique Medina a dizer-nos que o Maurício tivera uma hemoptise, havia três semanas, e outra pouco tempo depois. Não dera importância de maior a este incidente e continuou na sua faina. Ligado a Landowski, com quem estava havia quase um ano, tinha sido ultimamente chamado pelo Mestre para o seu próprio atelier afim de trabalhar a seu lado, honra que nunca, até então, concedera a nenhum discípulo. O seu trabalho L'Amateur, exposto no Salon, tão cheio de verdade e tão rico de expressão, decidiram Landowski a escolhê-lo para seu primeiro auxiliar.

'O seu talento, que vibrava em cada dedada imprimida ao barro, impunha-se aos seus companheiros, que o consideravam o primeiro dos novos. Não tinha rivais. A sua admirável conduta, a sua modéstia tão natural como sentida, a sua ânsia de triunfar no meio, sem acotovelar ninguém, faziam com que as simpatias o acariciassem na hora em que fomos encontrá-lo no seu atelier, ofegante, febril, numa tarde de Junho sombria e fria.

Tinha uma respiração rápida, precipitada. O seu corpito franzino dava a impressão de uma ave a que tivessem quebrado as asas quando ia voar alto, fendendo o céu em rajadas vigorosas. E lembrou-me o seu trabalho Par la Route de la Vie, que em 1922 tínhamos admirado no Salon. E, sem querer, a minha imaginação parava na interpretação daquele vulto que ficava imóvel atrás do cortejo...

Fiz-lhe perguntas, para me assegurar dos seus antecedentes mórbidos. Que andava bem, com uma saúde como nunca tivera, quando a primeira hemoptise o veio chamar à terrível realidade do seu mal. Julgava não ser nada. Continuara a aplicar a sua actividade, desde as 7 da manhã às 8 da noite! Depois, nova crise na rua. Tivera de se encostar para não cair. Pôde ainda alcançar a sua inconfortável vivenda da rua Danjou 71bis, em Boulogne s/ Seine. Apesar desta nova crise, voltou, no dia seguinte, ao trabalho. Os amigos quiseram evitar que ele fosse; mas a sua vontade impôs-se. O Mestre ia pagar-lhe os seus serviços e carecia de um trabalho de urgência.

Partiu. A febre veio visitá-lo. Trinta e nove graus. Resistindo sempre, bebendo goles de água fria, conseguiu arrastar-se por mais uns dias. Caiu por fim.

Anunciaram-lhe a minha chegada. Eu era para ele, no seu voluntário exílio, como se fosse pessoa de família. Auscultei-o. O pulmão esquerdo estava todo tomado. A sua / 222 / infecção bacilar ganhava também a base do pulmão direito. Era o que em linguagem vulgar se chama uma tísica galopante.

A instalação no atelier era péssima. Pedi ao Medina para me acompanhar à Legação e Consulado, afim de obtermos o imediato internamento numa Casa de Saúde ou mesmo num Hospital. Tudo era melhor do que a permanência ali, com correntes de ar por toda a parte e sem a cuidada assistência médica, de que tanto carecia. Prescrevi-lhe umas ventosas, que um outro companheiro, seu vizinho de atelier, o escultor António Costa, lhe aplicou, com proveito, naquela tarde.

Antes de sair, quis mostrar-me o esboço da Senhora do Rosário que destinava à capelinha de Avanca. Enterneceu-me. Já se desenhavam as formas, já se adivinhava o lindo perfil, já palpitava a vida naquele pedaço de barro húmido que as suas mãos moldaram com arte e piedade, que só um grande escultor e um crente fervoroso podiam conseguir! (Fig. 18).

Disse-lhe frases sentidas de louvor e reconhecimento e dirigi-me para a porta, enquanto o António Costa voltou a cobrir a imagem com panos húmidos que a haviam de manter intacta nas formas esboçadas, duma grande pureza e correcção de linhas.

Da Legação passámos ao Consulado, onde nos pusemos em contacto com o Dr. Bensaúde, que nos prometeu recebê-lo no dia seguinte, no Hospital Saint Antoine. Para ali foi conduzido, às 9 horas da manhã, do dia 15 de Junho, sob um céu chuvoso e uma aragem agreste como me não recorda ter tido em Paris nesse mês. Fizeram-no subir e descer escadas, amparado aos braços dos seus companheiros. Não havia quartos. Teve de ficar num canto da enfermaria geral. Impressão má.

Fomos visitá-lo, pedi que lhe dessem cuidados especiais, atendendo ao seu estado físico e moral. A enfermeira, com quem falei em particular, prometeu fazer por ele tudo o que pudesse.

Conversámos. Estavam também os seus amigos. Ficou um pouco mais satisfeito. Mas o médico não o observava naquele dia, o que só fez no dia imediato (16), e o pobre doente começou a sentir-se só, tão falto de cuidados e tão isolado de carinhos, que resolvemos no dia seguinte tirá-lo para uma Casa de Saúde. Não conseguimos lugar para ele! Os tuberculosos naquele estado são os indesejáveis de todos os serviços médicos, privados ou públicos.  Já tinha sido favor o ter entrado em Saint Antoine!

No dia 17 trocámos impressões sobre a solução a dar àquela terrível situação e, não havendo mais nada a fazer, / 223 / resolvemos melhorar um pouco as condições do atelier e trazê-lo para casa. Somente quando o quisemos levar, o seu estado era tão grave, que não ousámos fazê-lo. Na manhã do dia 18, um pouco mais animado, pôde sair numa ambulância, em que o acompanhei.

Instalámo-lo com todo o cuidado no seu antigo leito, catre de artista pobre, de limitadíssimo conforto, a um canto da sua sala de trabalho, que cercámos de cortinas de chita. Inalações de oxigénio levantaram-no um pouco e fizemos-lhe as injecções usuais que o seu estado deprimido aconselhava. Passava da uma hora da tarde quando voltei a Paris. A despedida foi cruel, e o seu olhar fundo parecia vir já dum outro mundo.

Depois de almoço, eu e a Elvira(2) voltámos para lá. Passámos a tarde a enchê-lo de cuidados. Eu ocupei-me do seu estado físico, no que era auxiliado por Henrique Medina, António Costa e Mr. e Mme. MarceI Girard, seus amigos muito dedicados. Mme Girard e a Elvira dispuseram o melhor possível as coisas do ménage. Por duas vezes o vi cair em síncope cardíaca que a cafeína e o óleo canforado conseguiram vencer.

Procurávamos reanimá-lo, dizendo-lhe que, logo que estivesse melhor, voltaria a Portugal, restabelecer-se-ia em Arouca, estaria connosco em Avanca... Não havia possibilidade de lhe fortalecer o moral. À despedida, disse-nos apenas:

− Até ao outro mundo!

Antes de sairmos, chegaram D. Irene de Vasconcelos, distinta estudante da Sorbonne, e Henrique Medina, que anunciaram a próxima vinda de uma irmã de caridade para o tratar. Esperei. Chegou a bondosa senhora, que era das irmãs de l'Assomption, cuidando mais de socorros espirituais do que dos cuidados físicos que nós desejávamos que lhe prestasse. Tudo isso impressionou o infeliz artista. Prometeu que ia fazer o possível para que viesse alguém naquela tarde. Antes, porém, fez uma investigação a tudo quanto se passava em torno do desventurado e saiu, dizendo que até às sete da tarde devia chegar a irmã enfermeira. Ela era visitadora. Mas que tudo dependia da Superiora. Se viesse (?), estaria lá à hora aprazada; caso contrário, que não esperássemos, porque estavam com excessivo trabalho.

À noite, tarde, voltámos de novo a Boulogne s/ Seine. A freirinha não veio, mas uma boa mulher da vizinhança / 224 / prestou-se a fazer os seus serviços até ao meio dia seguinte. Comprou-se uma garrafa de champagne, que ela lhe deu com água, às colheres, o que o reanimou. Teve para com o doente um carinhoso cuidado que profundamente me sensibilizou. Só falava de mais, descrevendo-lhe as belezas da sua Bretanha, onde desejava que ele fosse convalescer.

O estado de Maurício era cada vez mais grave. A febre quase desaparecera, mas as pulsações em discordância não baixavam de 130 e a sua respiração ofegante e superficial condicionava um esforço cardíaco cada vez mais violento.

Despedimo-nos. À saída tomou-me a mão, apertou-a longamente e beijou-a como única demonstração do seu reconhecimento e amizade. O mesmo fez à Elvira. Ambos fortemente abalados e profundamente comovidos, saímos apressadamente para o táxi que nos esperava à porta.

Os arredores de Paris são, alta noite, sombrios e tranquilos. O auto rodava rapidamente para as bandas dos boulevards. O Sena ficava-nos à direita. Surgiram-nos, umas após outras, as suas pontes iluminadas, apenas animadas pela passagem de alguns autos de noctívagos. A custo pôde ver-se, em fundo esfumado, a base da Torre Eiffel, com as suas quatro patas de monstro mitológico. Íamos galgando pouco a pouco a route de Versailles. Inesperadamente, alcançarmos o Grand Palais, onde a obra de Maurício vivia entre mármores mortos e gessos inexpressivos. Tinha sido o esforço que aquele trabalho exigira, a última fustigadela a precipitar a queda. Não conversámos quase durante o trajecto; mas, chegados ali, tivemos ambos a mesma expressão que saiu num uníssono: L' Amateur! Quem sabe, se o não tivesse moldado, talvez não estivesse tão mal!

E como a Place de la Concorde nos viesse acariciar com a sua luz afagante, naquela noite escura e fria, renasceu-nos na alma uma esperança. Quem sabe? A natureza faz milagres, por vezes!

E procurámos mudar de conversa. Eclipses de pouca dura. O espectro da sua desventura voltava constantemente a inquietar-nos. Seguiam-se as frases em dialogal.

Vem-lhe a terrível doença, quando o caminho se abria diante dos olhos sem dificuldades!

Ia ganhar, ao lado de Landowski, a maior aspiração da sua vida!

Poderia finalmente dar algum tempo às suas melhores concepções. As asas podiam dilatar-se em largos voos...

A alma podia subir, em espirais de sonho, até às culminâncias da arte, em que cintilavam todas as suas aspirações e era toda a sua vida!

E sem querer, os nossos olhares cruzavam-se dolorosamente perturbados. / 225 /

Manhã cedo do dia 19 recebo uma comunicação do Medina, dizendo-me: − O Maurício está mais animado e um pouco melhor. Tem bebido leite e diz que se lhe tivéssemos aplicado logo um cáustico à esquerda, pois o pulmão direito estava bem, talvez se tivesse curado. Eram as suas reminiscências de velhos tratamentos de pneumónicos. Um pouco do passado a pesar sobre o presente.

Deixei coisas que tinha a fazer e parti para a rua Danjou.

Encontrei a enfermeira improvisada e o António Costa, a acompanharem o doente. Daí a pouco chegava Madame Girard.

Maurício, sorridente, falou-me mais bem disposto.

Pulso menos frequente, respiração memos ofegante. Auscultei-o. O mesmo estado pulmonar. Lembrámos uma alimentação mais forte, que nós próprios acompanhámos, e depois de uma picada de óleo canforado ficámos a fazer-lhe companhia.

O atelier era um barracão de ferro e madeira. Tinha a um canto uma pequena divisão que servia de cozinha e uma escada para uma espécie de balcão que formava os dois quartos, aliás muito primitivos, dos dois artistas. Em baixo uma poêle para aquecimento e um pequeno armário onde se amontoavam vários estudos dos dois artistas: livros, objectos de toilette, tudo em mistura e confusão.

Ao centro, os barros do escultor: a maquette avantajada de L'Amateur e o esboço da estatueta da Senhora do Rosário a rescender doçura e misticismo.

Em torno, nas paredes, telas de Medina, nus, retratos, paisagens e dois estudos sobre o Maurício: um em que ele trabalha no Amateur, que, por falta de tempo, teve de reduzir para o Salon, e outra em que o escultor tinha sido surpreendido numa atitude de passeio.

Nesta altura das minhas notas de 1923, escrevi.: «Medina tem grandes qualidades de pintor», o que foi largamente confirmado na evolução da sua arte.

Pequenas mesas, espalhadas ao acaso, continham vários trabalhos, em barro, de Maurício. A um canto um grupo chama a minha atenção. Um homem abraça pelos pés a estátua de uma mulher nua, em que se esboça uma atitude sadia e forte. O barro é ainda impreciso, mas adivinha-se o dorso arqueado do homem, o abraço violento que cerca os pés da sua Deusa, a que a face se encosta como que afagando-os em carícias. A figura da mulher sobe como que a desprender-se, aureolada de sensualidade agreste.

Maurício quis fazer alguma coisa de belo. Chamou-lhe Eterno sonho. Inspiração forte da vida da espécie, em admiração à beleza feminina. / 226 /

'Permaneci por algumas horas no atelier, ora animando o desditoso artista com palavras de conforto em que iam piedosas mentiras; ora demorando-me na contemplação daquele pequeno museu que a amargura de momento valorizava, falando alto à minha sensibilidade.

Sentia-me preso ao meio, aos artistas que, na ânsia de triunfo, tudo sacrificavam. Julgava-me velho camarada do Quartier e frequentador assíduo da sua convivência e das suas modestas salas de trabalho.

Esperávamos a cada momento a irmã de caridade que Medina tinha de novo solicitado para prestar serviço de enfermagem, pois a enfermeira laica improvisada tivera de sair.

Chegou era meio dia outra irmã visitadora. Madame Girard chamou em especial a sua atenção para a imagem da Virgem, o que denotava os sentimentos religiosos do doente.

Pretendia assim decidi-la a enviar a garde-malade. Os seus olhos perscrutadores divisaram, porém, nas paredes pinturas de dorsos nus, de braços musculosos, de colos que julgou provocadores, telas que pertenciam a Medina. A saída disse a Madame Girard que seria necessário arrear aqueles quadros e esconder o que fosse excessivamente profano, para que a sua companheira pudesse vir tomar o lugar que desejávamos.

Tranquilizámos a piedosa irmã. Executaríamos as suas ordens. Não fossem aqueles anódinos quadros trazer maus pensamentos e induzir ao pecado...

Não me tive que lhe não dissesse, nos melhores termos, que em Arte como na Medicina, tudo isso são incidentes sem importância a que a enfermagem deve estar acostumada.

Além de que nada havia no modesto atelier que pudesse ser tomado como pornográfico ou que mesmo se lhe aproximasse. Podia, porém, garantir-lhe que as paredes ficariam despidas de quadros, e as esculturas menos pudibundas recatadas e cobertas.

Despediu-se. Que mandaria a irmã-enfermeira. Pedimos-lhe pressa e informámo-la de que as despesas correriam por nossa conta.

Resolvemos transformar por completo a decoração da sala. A piedade da Soeur não seria perturbada pela presença da anatomia dos pintores e escultores: temível motivo de pecado para aquelas freiras, coisas inexpressivas e sem sentido imoral para a humanidade laica!

D. Irene de Vasconcelos e Henrique Medina, que entrementes, tinham chegado, conversaram connosco. Disse-lhes a vantagem de vir outro médico. Eu estava ali, de empréstimo, e fora da minha actividade profissional por só cuidar de medicina dentro da minha especialidade. Foram procurá-lo de auto. / 227 /

Esperei, mas, como se demorassem muito, voltei a Paris, pedindo ao escultor António Costa que me desculpasse junto do clínico por ter assunto urgente a tratar. Deixei uma nota escrita, pedindo ao médico o favor de tomar o doente a seu cargo.

Voltei à noite. Maurício menos ofegante e melhor disposto. Estiveram a vê-lo Tixier e Melo Viana. Ambos infelizmente repetiram as minhas palavras. Prognóstico fatal. Lá estavam, além das pessoas do costume, o pintor José Campos; D. Irene de Vasconcelos, que foi amiga carinhosíssima de Maurício; uma sua companheira, estudante russa, ainda mais uma ou duas pessoas.

O atelier tinha uma luz discreta para o lado da cama do Maurício e os pequenos grupos conversavam, aos cantos, discretamente, parando quando o doente tossia, procurando todos saber do seu estado, da sua disposição de momento.

A Sr.ª D. Irene de Vasconcelos trouxe uma enfermeira. A freira mais uma vez faltou, talvez com receio de lhe não terem arreado os estudos que tanto afligiram a pudicícia da visitadora. Contudo, o atelier estava despido de quadros, como tínhamos prometido.

À tarde fomos ver, de novo, o querido doente. Estivera toda a manhã a fazer recomendações aos seus companheiros de vida artística. Falou muito nos pais. Pediu que lhes manifestassem o seu reconhecimento e o seu afecto. Não queria que lhe falassem de melhoras. Sabia que era impossível vencer. Debalde tentei encorajá-lo um pouco. Demorei-me até tarde, para ver corno a enfermeira se ocupava do doente. Deixou-me satisfeito.


20-VI-23 − Telefonam-me de manhã. O Maurício desejava falar-me. A comunicação é-me feita após o almoço e às três horas sigo para Boulogne-sur-Seine. Não sabia sequer se ele estaria melhor e receava encontrá-lo em alguma crise. Entrei no atelier precipitadamente. D. Irene de Vasconcelos, que sentiu o auto, veio à porta com António Costa. O Maurício tinha estado excitado toda a manhã e, como se sentia bem disposto e receava, a cada momento, deixar de falar, pediu que me telefonassem.

Tinha recebido a visita do seu Mestre Landowski. Sentou-se rapidamente na cama. Mestre e discípulo abraçaram-se longamente. Houve lágrimas, agradecimentos, apreciações de arte, que, em vez de afastar a emoção que pairava naquela atmosfera de sentimentalidade exaltada, mais a intensificavam. Landowski prometeu voltar e saiu com os olhos húmidos, a escutar palavras de eterno reconhecimento do discípulo que tanto admirava a sua obra. / 228 /

Depois começou a discursar. Todos o escutaram absortos. A obra do Mestre fê-lo derivar para as novas concepções da Arte.

− «Que o Mundo era um emaranhado de mentiras e maldades. Que só a Arte, mas a verdadeira Arte, o podia levantar, regenerando-o pela adoração da beleza, eterna divindade a que os artistas rendiam a suprema homenagem». Sentou-se de novo, recostou-se mais alto. Gesticulava largamente.

«A Arte seria a nova estrela a guiar-nos no caminho escabroso da existência. O interesse, o ódio, as lutas dos homens haviam de ser vencidas pela luz dominadora e refulgente do culto do belo!». E disse o que ela devia ser, dissertou sobre as artes plásticas, sobre a nova orientação que devia tomar à escultura, sem que ninguém pudesse conseguir dominar aquela oração feita à sua Deusa.

Entrou depois a freira visitadora. Não mandou a enfermeira, apesar de as paredes branquearem, desnudadas dos estudos de Medina. Ia todavia informar-se do seu estado de saúde. Sempre era alguma coisa!

O Maurício recebeu-a com um sorriso e, inesperadamente e, pela primeira vez, pediu um padre, mas que viesse depressa, enquanto estava lúcido. Era crente, queria morrer em graça. Também tinha a certeza de ir para o céu. Nunca fizera mal algum, gastara a vida a lutar, a trabalhar, moldando o barro e esculpindo o mármore. Mas queria que viesse o padre. E já. Dizia-o com uma inesperada intimativa.

Não tardou a chegar. Tranquilizou a sua consciência num curto e recolhido colóquio com o sacerdote.

Depois, a sós com os seus amigos, chamou-os para que o escutassem. A todos devia os maiores favores. A todos patenteava os seus melhores agradecimentos.

«Na terra não poderia, mesmo que vivesse, pagar-lhes tanta dedicação; mas ia para o céu e lá velaria por eles. Viria em espírito à terra. Estaria ali no atelier, acompanhá-los-ia sempre, protegê-los-ia.. Falou dos pais, do Dr. Egas Moniz, o seu melhor amigo, que ainda ontem vira com lágrimas nos olhos. Bem sabia que lhe queria muito; também o estimava como Pai. Precisava de falar-lhe, dizer-lhe tudo isto e muito mais, muito mais...»

Enumerou todos os presentes, para todos teve frases amigas. Depois pediu limonada, gasosa, cerveja, champagne!

Que ao menos o deixassem morrer com satisfação. Saíram para lhe satisfazer os seus desejos. E tudo lhe deram, embora em doses reduzidas. Champagne já ele estava tomando às colheres.

Depois pediu que, se voltasse a sofrer como sofrera, lhe dessem qualquer coisa que o matasse, evitando-lhe o seu / 229 / martírio. Agora sentia-se bem, mas receava voltar ao estado em que estivera.

Quando cheguei, encontrei-o risonho, falando alto, discursando muito sobre arte, bastante sobre os presentes. Estava agora bem disposto. Nada sofria. Considerava-se mesmo tão bem como antes da doença.

Aproveitei para lhe dizer que isso indicava que havia de curar-se. Sorriu, descrente.

− Não, não podia ser. Basta que me evitem o sofrimento.

E, fitando uma cabeça que tinha aos pés da cama, um dos seus últimos trabalhos, disse-me:

− Ontem perguntaram de quem era aquela linda cabeça. É do irmão do meu Mestre Landowski. É também um grande artista, que trabalha no seu atelier. É uma linda cabeça, não é? E fixou-a com ternura.

Pedi-lhe que sossegasse. Dei-lhe uma poção opiada. Consegui que estivesse mais calado, mas excitava-se ao menor pretexto.

Fazia uma ligeira crise hipomaníaca, tão vulgar nesta fase da intoxicação tuberculosa, em que toda a sua alma se esvaziava em ímpetos de ternura e hinos entusiastas à sua Arte.

Fi-lo alimentar. Disse-lhe que carecia de avigorar as suas forças para vencer a crise. Que deixasse as apreciações para depois. E, como falasse em francês, observou Madame Girard:

− Nunca ouvi o Maurício falar tão bem em francês, como hoje, ao fazer a sua prelecção sobre Arte!

Quando saímos, a alma entristecida, a afectividade amarfanhada por tantas emoções, dilatei a vista pela estreita rua Danjou, e perguntei a mim próprio como podia caber naquele atelier e naquele bairro modesto e afastado, um espírito de tão elevado quilate, capaz dos mais amplos e prodigiosos voos. E Paris, para onde voltei, encostado a um canto do auto, pareceu-me, naquela tarde, muito menos grandioso e até menos belo.


21-VI-1923 − A freira sempre passou uma noite em substituição da enfermeira laica.

Maurício bem disposto, continua a falar. Sente-se melhor. Há no atelier uma outra atmosfera. Renasce a alegria. Os rostos tomam inesperadas expressões. Ausculto-o. Parece
que não piorou. Também me deixo enlevar num frouxo raio de esperança. Mas, ao deixá-lo, recaio no meu cepticismo. Escrevo ao pai desalentado, mas menos pessimista pelo que respeita ao fim imediato.

Landowski volta a visitá-lo. A mesma crise emocional do primeiro encontro. Ao contarem-me a tristeza da separação, / 230 / lembrou-me o admirável grupo do Mestre, Les fantômes (fig. 14). E desenha-se na minha retina uma das figuras do segundo plano do seu grupo, vulto que já não pertence ao nosso mundo, fantasma, sombra de uma existência abruptamente cortada, apresentação de uma alma sofredora na última encarnação...

A Santa está agora a descoberto, e o seu rosto, de um lindo perfil grego (fig. 18), mostra ao Maurício, que a olha do seu leito, a maternal atitude que as suas mãos criaram numa hora de suavíssima inspiração.

Surpreendo um colóquio ao canto do atelier.

− Dá vontade de ter crenças, de voltar a aprender as orações ingénuas da infância, de povoar o cérebro dos encantos das doces e ingénuas recordações de um passado inconquistável, e ajoelhar e erguer as mãos e rezar como outrora...

− Maurício, atalhou alguém, reza, com mais proveito, por todos nós!


22-VI-1923 − O doutor Tixier ia vê-lo às 4 e 30 da tarde. Pediu para eu comparecer. Lá me encontrei com ele e com o Dr. Melo Viana, amigo muito dedicado dos artistas portugueses. O Maurício tinha caído imenso. Estado pulmonar ligeiramente agravado da véspera. Após a observação, conversámos numa casa ao lado, no atelier de António Costa. Todos nós considerámos o doente irremediavelmente perdido. Far-se-iam injecções de sedol, se as crises de sufocação o afligissem. O doutor Tixier fez um prognóstico para 2 ou 3 dias.

Voltámos junto do doente. Animámo-lo. Prognosticámos rápidas melhoras. Inútil querer iludi-lo. Sorriu cepticamente.

Fiquei depois a sós com ele.

− Muito obrigado, diz-me, por me ter feito esta última vontade de não me abandonar, tendo adiado o seu regresso ao nosso querido país.

E os seus olhos encovados, profundos, humedeceram. O pulso passou a estar arrítmico. Repetiram-se as sufocações. Dei-lhe a primeira injecção de sedol, que D. Irene de Vasconcelos e Madame Girard se apressaram a ir buscar à farmácia. Resultado fraco. O oxigénio parecia ser mais eficaz.

− Desejo-lhe muita saúde e à Sr.ª D. Elvira. Muita saúde, muita saúde... repetiu com insistência.

As pálpebras fecharam-se lentamente num pródromo de agonia. Reagiu em seguida, e o seu sorriso, de uma candura infantil, voltou a bailar-lhe nos lábios. Torpor mais prolongado.

/ 231 / As pessoas amigas que estavam junto do leito compunham um grupo real de imensa mágoa e cruciante tristeza. Ainda regressou ao consciente, quando mãos delicadas lhe aconchegaram a roupa.

− Para que me acordaram? disse. Estava a entrar no céu! Que maravilha de cor, que suavíssima música, que doçura de ambiente! As estrelas muito brilhantes alumiavam o caminho e anjos de asas irisadas de sóis iam a meu lado. Tudo azul e oiro... Para que me chamaram?

Reproduzia, em projecção colossal, o cenário dos presépios que vira em criança... E as pálpebras cerraram-se de novo e fez-se um silêncio profundo na completa imobilidade dos presentes.

Depois fomo-nos afastando, como sombras, do pequeno leito.

Voltei para Paris com D. Irene de Vasconcelos. Tudo perdido. Não mais voltaria a sorver o ar morno do nosso querido Portugal! E a nossa conversa caiu sobre a sua desventura, o seu talento, a sua bondade.


Dia 23 − 8 horas da manhã. O sol entra a Jorros pela janela.

Até que enfim chega a primavera!

O telefone dá sinal de alarme. Sinto uma sensação de frio a atravessar-me. Precipito-me sobre o aparelho. É Monsieur Girard.

− Maurício? perguntei.

− lI est mort à 3 heures du matin.

− lI a souffert?

− Pas beaucoup. Un petit délire. Pas pIus.

E anunciou-me a vinda de Medina, que seguira para a Mairie a tratar das coisas referentes à última viagem de quem foi a melhor promessa artística da minha terra e uma das maiores de Portugal.

Fitámo-nos, eu e a Elvira, sem trocarmos palavra. E os nossos olhos ensombraram-se... Minha mulher balbuciou qualquer oração e eu divaguei em conceitos filosóficos para conter a explosão da minha sensibilidade excessivamente perturbada.

Depois, quase em coro, dissemos, como para remate de uma conversação sem palavras sobre um desejo constante da nossa vida:

− Ainda bem que não tivemos filhos!

E voltámos a concentrar-nos num silêncio reparador. Esperei com ansiedade o Henrique Medina.

Chegaram por volta das 11 horas, ele e António Costa, os dois melhores amigos do Maurício. O infeliz caíra sem se dar por isso, como uma luz que se extingue pouco a pouco.

/ 232 / Julgavam-no ainda com vida. Deixou apenas de respirar. Cena, em flagrante, da Vie de Bohème!

Deram-me informações. Após a minha saída, voltou um pouco de delírio e não se queixou mais.

Falámos do funeral, do que havia a fazer e assentámos nas últimas combinações.

Depois com rosas e lilases brancos, iguais aos que em Portugal anunciam a primavera, partimos para Boulogne sur Seine. Que dolorosa jornada, fitando as águas do Sena agitadas pelo movimento dos barcos em doces ondulações! Era um canal da nossa Ria espelhando a benéfica luz ao Sol, que pela primeira vez, em Paris, após muitos dias de bruma, nos visitava.

O auto seguia apressado. No íntimo, queríamos que fosse lentamente, que levasse horas, muitas horas... Passámos a Avenida, que nos levava à Porta de St. Cloud, em alguns minutos. Não tardámos a alcançar a Rua Danjou e o pequeno e modesto atelier, 71 bis. A Elvira tomou as flores num braçado. Abrimos a porta a medo. O Maurício jazia no seu leito. Ardiam duas velas ao lado de um Cristo colocado sobre uma das mesas em que ele modelava o barro.

A Elvira foi colocar as flores sobre o corpo inanimado do querido artista. Muitas outras, e coroas de flores artificiais quase lhe cobriam o leito.

Não tardou que chegassem os homens incumbidos do serviço fúnebre. Retirei-me. O António Costa também saiu, soluçando, para o seu atelier onde eu me refugiara.

Seguiu-o a Elvira. Só o Henrique Medina e os amigos franceses tiveram a coragem de permanecer até final. Armaram, em seguida, um pequeno catafalco, onde foi depositado o modesto ataúde, coberto por um pano preto.

O funeral ficou aprazado para o dia seguinte à uma e meia de domingo, dia de S. João. Fizeram-se convites. Só muito tarde regressámos a Paris.


24 de Junho. − À uma hora da tarde, estávamos na rua Danjou para esperar os convidados... Depusemos mais flores sobre o féretro. Outras vieram, outras ainda, dos companheiros, de outros artistas. O carro funerário aguardava a hora indicada. Passados minutos, organizou-se o cortejo. Eu, Henrique Medina e António Costa logo atrás do caixão, representando a família. Depois as senhoras: Mme Egas Moniz, Mme Plácido de Sousa, Mme Girard, D. Irene de Vasconcelos, Mme Campas e algumas mais, depois Plácido de Sousa, secretário da Legação e filho, escultor Diogo de Macedo, pintor José Campas, e outros artistas: pintores, arquitectos, escultores, Landowski não compareceu, o que foi muito notado.

/ 241 / [VoI. IX - N.º 35 - 1943]

O séquito dirigiu-se para a Igreja de Boulogne sur Seine, pequeno templo de paróquia aldeã, com três pequenas naves. Numa das laterais foi colocado o pequeno ataúde. Fizeram-se as cerimónias religiosas com os cânticos habituais.

De novo se pôs em marcha o cortejo para a última jazida.

O cemitério, todo arborizado a plátanos, dava, à distância, a impressão de um parque. Nos cemitérios da Banlieu não abusam dos jazigos − capelas que há por toda a parte em Portugal, em geral anti-estéticas e desgraciosas. Preferem as campas rasas, mais ou menos ricas, onde é mais fácil colocar flores.

Nessa tarde estival de 24 de Junho, dia do Grand-prix de Longchamps, que de mulheres e crianças, de velhos e adolescentes a visitar os seus mortos queridos, levando-lhes flores, tributo das saudades que não morrem! A alma francesa é de uma grande afectividade. Frívola algumas vezes, é, ao mesmo tempo, o que há de mais doce e de mais terno.

E o cortejo seguia. Ao fundo, voltou à direita, depois à esquerda.

O padre esperava ali os últimos despojos do que foi a maior esperança artística da minha terra. Fez as orações. O caixão desceu ao coval, e todos foram espargi-lo com água benta: lágrimas dos que muito lhe queriam, saudades dos que estavam longe e eram ali presentes.

Depois o coveiro fez o resto. E uma cruz escura foi colocada sobre o coval, com estes simples dizeres: Maurício de Almeida − 26 ans − Mort le 23 Juin 1923.

Uma tragédia em estilo telegráfico.

O sol coava-se através da folhagem e naquele pequenino cantinho do cemitério de Boulogne-sur-Seine, que vira ao poente, do lado de Portugal, ficou para sempre inumado o corpo frágil de um rapaz que albergou uma grande e nobilíssima alma. Era fraco e estreito o invólucro para tão grande e elevada aspiração. Não podia conter-se a dentro daquele corpo franzino e débil: dispersou-se no espaço, voltou ao sossego eterno da Natureza.

Ao retirarmo-nos da pequena sepultura onde ele repousa, olhámos para o sul donde parecia vir o eco de longínquos gemidos. Sugestão que avultava ao recordar aqueles que, muito longe, nas serras de Arouca, lhe enviavam, naquela hora suprema, o seu mais enternecido adeus.

No dia seguinte voltei ao atelier para me despedir dos companheiros do desditoso artista e pensar no rumo a dar a algumas das suas coisas. Tudo se arranjou de sorte a enviar à família recordações do desventurado Maurício. Todo o seu material de trabalho foi escrupulosamente respeitado. Henrique Medina, António Costa e eu resolvemos mandar cozer / 242 /  todos os pedacitos de barro em que ele pusera as mãos.

Relíquias de um grande artista, que serão guardadas, com carinho, pelos amigos a quem foram oferecidas. Promessas de um talento a expandir-se, sem esforço, à luz sedutora da Arte que tanto amara.

Por fim, fiquei com Henrique Medina, hoje glória da pintura portuguesa, e António Costa, escultor de mérito, conhecido do publico português pelos trabalhos que tem exposto em Lisboa, a recordar aquele que deixara um vazio impossível de suprir.

Sentei-me a contemplar a Santa que ele modelara para a capela da minha aldeia. O barro começara a desmoronar-se.

− Morre com ele, disse eu, a Santa que idealizara...

Reinou silêncio por algum tempo, e desviamos os olhares em pungente concentração.

António Costa abeirou-se, para me dizer que estimaria fazer a Senhora do Rosário, o que levou a termo, e hoje honra a capelinha da Areia de Avanca (fig. 20).

Henrique Medina fez-me a oferta de um magnífico quadro, em que surpreendeu um aspecto nocturno de Paris e em que o próprio Maurício lhe serviu de modelo, encostado ao corrimão da varanda do primeiro atelier da Rue Vandamme (fig. 21) (3).

A falta de Maurício de Almeida foi, para todos os que o cercavam, sinal de debandada. Perdera-se o elo mais forte que os unia!


Dois anos mais tarde, encontrei-me em Paris com as minhas sobrinhas, companheiras de Maurício na récita de Avanca. Numa manhã de verão, fomos à Madeleine comprar flores brancas e cor de rosa, e seguimos para o pequeno cemitério de Boulogne-sur-Seine, onde lhes mostrei o coval do pranteado Maurício. A sua pequenina campa foi juncada de flores. Notámos que outras, embora já ressequidas, ali tinham sido depositadas. Houve alguém que também se lembrou do desditoso artista.

Depois fomos à rua Danjou e parámos diante do seu atelier: lugar sagrado onde revivia a saudade portuguesa.

Ali nos demorámos algum tempo.

Passados minutos seguimos silenciosamente para a Torre Eiffel, que lhes fui mostrar e onde, do seu ultimo balcão, dilatámos a vista pela imensidade das ruas e casario da grande capital. Quisemos localizar, sem o conseguirmos, o bairro de Boulogne s/ Seine, onde tantos artistas trabalham e se esforçam por vencer. / 243 /

Multi sunt vocati, pauci vero electi. E, ainda assim, alguns dos poucos eleitos da Arte, caem no caminho, quando já pressentem o triunfo!

Era, porém, necessário afastar o pensamento de tristes recordações. Alargámos a vista pelas Tulherias, Praça da Concórdia, Campos Elísios, Arco de Triunfo... E a conversa deslizou para a História de França, que se projecta naquela imensa acrópole de tão heróicas tradições:


A Gazeta de Arouca de 7 de Julho de 1923 foi dedicada a Maurício de Almeida. Nesse número vem publicada a seguinte carta que mandei a seus pais.


O funeral do saudoso artista.

«Sobre o funeral, realizado na manhã do dia 24 de Junho, tomámos a liberdade de transcrever a carta que segue, escrita pelo distinto estadista e professor da Universidade de Lisboa, Ex.mo Snr. Dr. Egas Moniz − mui respeitável amigo do saudosíssimo Maurício de Almeida − ao pai do malogrado artista e nosso amigo Snr. José Maria Valente de Almeida.


                              «Meu caro amigo:

«Vimos de acompanhar o nosso querido Maurício à sua última morada, no cemitério de Boulogne-sur-Seine. O seu caixão ia todo coberto de flores e de coroas. Não calcula o montão que fazia sobre o seu pequeno ataúde! Eram as saudades dos seus amigos e até de alguns vizinhos que mal o conheciam, mas que admiravam as suas virtudes e qualidades. Fizemos-lhe tudo, creia, não nos furtando a nada. Henrique Medina e António Costa, escultor, são amigos que sempre devem considerar.

No acompanhamento, que foi feito a pé até à Igreja e de lá até ao cemitério, ia imensa gente, para um domingo como hoje. Senhoras, pessoal da Legação, artistas, amigos franceses, toda uma porção de admiradores das suas superiores aptidões.

Morreu o mais formoso talento artístico da nossa terra e uma das maiores, se não a mais fundamentada esperança da escultura em Portugal. E fica-nos sempre na alma a mais forte e violenta das saudades.

Não tenho palavras para os consolar, porque também os outros as não têm para me aliviar, e a minha mulher, do grande desgosto que tivemos. Parece que esteve à nossa espera para nos dizer o seu último adeus. O que foi a nossa estada, desta vez, nesta barulhenta Paris, nem o podem calcular!

Querido Maurício! Que bondade a sua! Morreu sem sofrer, a sorrir! Separei-me dele quando ia a entrar na penumbra da vida, no período da inconsciência.

As suas últimas palavras para mim foram «desejo-lhe saúde, muita saúde...» Era o bem que perdera. Foi o que o preocupou ao deixar esta vida.

Da sua família falava sempre, e do desgosto que pais e irmãos haviam de ter. Pediu-me para lhes manifestar mais uma vez o seu eterno reconhecimento! Aí fica expressa a sua última vontade.

Àparte o afecto da família e a satisfação que ele teria em vê-los, antes de partir para a sua última jornada, creia que foi aqui tão bem tratado como o seria aí. Nada, absolutamente nada, lhe faltou. / 244 /

Todos choravam ao vê-lo partir do seu atelier. Foi uma cena dolorosíssima que me há-de lembrar toda a existência. Eu estimava o Maurício como se me pertencesse um pouco, como se fosse de minha família. E ele era o primeiro a dizê-lo. Mas nada disso lhe valeu: nem afecto, nem dedicação, nem meios... De nada lhe serviram.

Adeus, meu bom amigo. Não posso mais. Nem releio esta, porque me falta energia para o fazer e o coração já não pode mais.

Saudades aos seus − a sua santa mulher, a mais infeliz das mães. − e aos seus filhos.

Paris, 24 de Junho de 1923.

                            Seu mt.º e mt.º am.º

                            Egas Moniz


No mesmo número dedicado ao artista, vem publicada uma gravura que cabe bem nesta altura (fig. 22). Tinha a legenda:

«No seu atelier, em Paris, transmitindo alegria aos pais e irmãos».

Abraçado à sua arte, representada numa cabeça de mouro que as suas mãos modelaram, ficou para sempre a sorrir.

Não podia conseguir melhor epílogo para a biografia do escultor! A sua alma, tantas vezes torturada, apresenta-se complacente, descuidada, confiante, feliz...

Naquele momento, o sonho do seu futuro enchia-o do ânimo, coragem, euforia, que a mocidade realça em horas, de bom humor.


De Maurício de Almeida ficaram algumas preciosas peças de Arte, a recordação do seu grande talento e belas qualidades, e um... sorriso, cheio de suavidade e ternura, síntese da bondade que foi a estrela de alva que o guiou pela vida fora.

O leitor que tiver tido paciência de levar até ao fim este longo relato, em que há páginas íntimas de tristes reminiscências, terá razão para me recriminar por ter tirado ao «Arquivo» muito espaço útil. A censura seria justa se eu apenas tivesse querido fazer a apreciação da obra de um artista notável. Mas pretendi mais do que isso: revelar aos meus conterrâneos um nome inteiramente ignorado e que, mesmo na aldeia onde nasceu, vai pouco a pouco esquecendo, contando-lhes o romance real de uma vida de trabalho, aspirações e sofrimentos, exemplo dignificador que merece ser divulgado.

Mas, se estas razões me não desculparem, a amizade que dediquei ao desditoso artista me absolverá.

EGAS MONIZ

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(1)A comédia representada em Avanca.

(2) Nome de minha mulher. Quis guardar, tanto quanto possível, o texto integral que escrevi em 1923. Desculpe o leitor uma ou outra nota mais íntima e alguma frase de contexto familiar.

(3) Por erro tipográfico, saiu com o n.º 25. Mas está corrigido na versão digital.

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