HÁ dias, revendo papéis
antigos que juntei para folhear em melhor ocasião, encontrei notas e apontamentos referentes a um
artista português, Maurício de Almeida
(fig. 1), que não chegou à sua fase decisiva e independente,
porque a morte o levou quando ia desferir os definitivos voos. Deixou,
apesar disso, obra notável, que podemos documentar, embora,
infelizmente, o tempo, a incúria e o abandono a desgastassem na sua maior
parte.
O que resta, porém, da sua actividade, é suficiente para exalçar a sua
memória e marcar o lugar a que tem jus entre os artistas modernos mais
distintos do nosso distrito.
Maurício de Almeida nasceu
em Pardilhó (concelho de Estarreja) em 1 de
Agosto de 1897. Seu pai, José Maria Valente de Almeida, era apreciado
executante da filarmónica
pardilhoense e mais tarde fiscal dos impostos em Arouca, para onde
deslocou a família, que ali vive ainda, representada pelos irmãos do
artista. Dedicaram-se à arte gráfica tendo fundado naquela vila a
Gazeta de Arouca. Sua mãe era filha do professor primário do Bunheiro,
António Joaquim Valente de Almeida que, ao tempo, residia em Pardilhó,
donde era natural, e de uma senhora de Gonde, de Avanca.
Logo na escola das primeiras letras, como ao tempo soía dizer-se,
manifestou Maurício de Almeida decidida vocação para o desenho. O seu
mestre, Saavedra Guedes, professor livre e jornalista de grandes
qualidades combativas, fundador do jornal Concelho de Estarreja, que
entrou em Outubro último no seu 43.º ano de existência, dizia-me
repetidas vezes:
− O Maurício, se pudesse ser ajudado, devia dar um
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162 /
grande artista. É inteligente e tem rara vocação para o desenho.
Passados os seus primeiros exames, seguiu para o
Porto, onde, com um
pequeno auxílio que António Resende e eu lhe instituímos, entrou na
Escola das Belas Artes no ano lectivo de 1913. Em 1914 fez os seus
exames com distinção e num concurso de desenho com alunos do 4.º e 5.º
anos ganhou um prémio pecuniário.
Em 1915, continuou a frequentar a Escola, com distinção, ganhando,
em novo concurso, o primeiro prémio de desenho.
As aulas de arquitectura e escultura eram incompatíveis, o que levou o
nosso estudante, sempre muito aplicado e estimado pelos seus mestres, a
enveredar para a escultura, sendo discípulo dilecto de Teixeira Lopes.
Em 1916, terminou, com o maior brilho, o curso das Belas Artes e o da
Escola de Arte Aplicada Soares dos Reis.
Terminados os estudos, Maurício de Almeida, num desejo
salutar de emancipação, e por não haver concursos para pensionistas do
Estado, montou em Gaia a sua modesta Empresa de Laboração Artística para
fabricação de estatuetas, bustos, etc., em terre cuite, onde foi um
incansável trabalhador
até 1921.
Um dia, perguntámos-lhe porque não assinava os seus
trabalhos, alguns de incontestável valor.
Trazem o nome da Empresa. Quando muito, têm o meu monograma (M. A.)
dentro de uma circunferência, à laia de marca de Fábrica. É uma pequena
indústria em que trabalho ao sabor dos outros. O que vier a produzir
há-de ser bem diferente, quero que seja só obra minha e, então, o meu
nome tomará a responsabilidade do que produzir.
Não insistimos. Serviu-me a resposta para bem aquilatar
da altitude a que elevava a sua arte.
Deu-me algumas peças do seu labor industrial, como
ele aborrecidamente o
designava. Na frente donde escrevo, sobre uma estante de livros,
olham-me: de um lado, HERCULANO(1), de rosto grave e solene
(fig. 2),
como compete ao grande historiador, e do outro, EÇA DE QUEIRÓS
(fig. 3)
esboçando um sorriso sarcástico que o monóculo sublinha. Duas terras
cozidas bronzeadas, que convivem comigo de há muito, e me recordam o
artista na fase em que levava às costas a cruz do seu destino
utilitário. Sobre outra estante, está um busto de CAMILO
(fig. 4),
velho e alquebrado, lembrando-o na última fase, quando todas as ilusões
lhe desapareciam sob a tortura da tabes que o arrastava, inexoravelmente,
para a cegueira,
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163 /
antecâmara do suicídio. É aquele velho «alcachinado e encornicado» a
que RICARDO JORGE se refere em sugestiva evocação.
Existe um exemplar deste
busto no Liceu de Aveiro, muito apreciado pelo
seu distintíssimo reitor, Sr. Dr. JOSÉ PEREIRA TAVARES.
Do outro lado, o busto perscrutador de VICTOR HUGO
(fig. 5), tal como é
conhecido das gravuras, lembra o pensamento francês numa das suas mais
altas manifestações. Também o Liceu de Aveiro possui um destes
exemplares: preito do artista à França do seu sonho, onde aspirava ir
acabar a sua educação.
Além destes bustos, possuo um grupo de pescadores em atitude de puxar
uma rede, que se termina na base por uma concha. A
fig. 6 mostra a
atitude das três figuras, em que há movimento e esforço. Rostos típicos
dos trabalhadores do mar e da Ria que o artista conhecia de perto, por
ter com eles acamaradado quando vivia em Pardilhó.
Em lugar de maior distinção, tenho o busto de VOLTAIRE, que Maurício
copiou, no último ano da Escola, e que protege a estante onde
enfileiram os 95 volumes das suas obras completas. Esse busto do velho enciclopedista mostra a modelação de um futuro artista.
É uma cópia do VOLTAIRE que todos conhecem,
em idade provecta, quando o Génio que o iluminou foi fixado no sorriso
sardónico da sua superioridade. Já se nota qualquer coisa de pessoal
naquela máscara. Não parece que o busto seja tirado da estátua de Houdon,
que muitas vezes contemplei em Paris, junto à Comédie. Maurício
delineara-o e modelara-o com grande sobriedade e segurança.
Tanto este trabalho como os bustos e alegorias esculturais em série, já
denunciavam o artista.
Com a sua modesta indústria ia provendo ao seu sustento e amealhando
alguns vinténs, como ele se expressava. O seu
espírito pairava, porém, acima dessas fantasias artísticas a que o
forçavam as necessidades da existência. Não passava de um meio, nunca
podia ser uma finalidade. Voavam mais alto as suas aspirações. Todo esse
labor foi uma tortura moral a pesar como chumbo sobre os seus desígnios,
esmagados pela força das circunstâncias.
Dizia:
− Mal me ficava, se não soubesse tirar algum proveito
material do meu curso. Mas isto é apenas um passo na vida. Há-de chegar
um dia em que darei expansão à minha sentimentalidade artística.
Em certa altura procurou-me para me informar das suas
intenções.
/
164 /
− Resolvi ir estudar para Paris, trabalhar, lutar; fazer boa Arte. Sem
isso não sairei do pouco que sei. Já tenho dinheiro para me aguentar por
lá algum tempo. Careço de espraiar a vista por novos horizontes,
conhecer o que os grandes mestres produzem. É necessário vibrar em
outros diapasões. A escultura, especialmente, não se pode apreender em
álbuns, e as cópias são raras e nem sempre perfeitas. Mesmo na
pintura, as reproduções, por melhor que sejam,
não mostram os autores na sua verdadeira expressão. Falta-lhes em
grande parte a alma que lhes deu vida e os pequenos nadas que se
contorcem na curva e ascendem na tonalidade. A profundidade da tela só
se sente na contemplação das obras originais que ninguém consegue imitar
com
absoluta fidelidade.
Maurício amava as artes
plásticas. A pintura atraía-o. Fez felizes
tentativas nessa orientação. Possuo da sua autoria uma interessante
natureza morta. Mas essa arte não conseguia dominá-lo. A escultura
atraía-o de preferência.
− Há mais vigor numa estátua, comentava, do que num quadro, por
primoroso que seja. A vida, a acção, o movimento o esforço, as grandes
expressões da luta da existência, vibram 'mais nas esculturas. Pelo
menos, resplandecem mais ao meu espírito nas formas, nas atitudes e na
mímica; nas crispações da dor e nos sorrisos misteriosos; na expressão
sombria do crime e na claridade dos êxtases das santas.
Quando lhe falava na cor, a alma viva da pintura, objectava:
− É a superioridade da escultura. Nem dela precisa.
Basta o mármore ou o bronze. A curva dos seios, as saliências de um dorso
em esforço, os recôncavos das faces famintas, a contractura dos
músculos em acção, falam mais à minha sensibilidade. A escultura está
mais perto da vida do que o quadro. Olhe o Desterrado de Soares dos
Reis. Passo horas a observá-lo. Comunica-me as suas mágoas e
preocupações. Não está ali um bloco de mármore, mas a infinita tristeza
a que o génio deu o sopro da dor. Fala-me diferentemente, segundo o
quadrante em que o observo. Aureola-o uma grande serenidade. Não há
actividade nos músculos da face. Apenas um ligeiro relaxamento deixa
cair levemente as comissuras dos lábios e, na testa, tão somente se
esboça o rito da íntima tortura. É a dor em lausperene!
E noutro tom:
− A estátua prende-me mais, exerce
sobre mim a sedução de uma arte em que se pode pôr a alma mais a descoberto. Nem todos
têm a mesma visão, a mesma impressionabilidade, o mesmo padrão de
predilecções artísticas.
E Maurício de Almeida perdia-se em considerações
sobre as razões da sua
preferência que, de há muito, criara vincos
/
165 / fundos
no seu espírito. A escultura subia às maiores alturas nas suas
apreciações. Por vezes detinha-se silencioso, como enlevado em sonho,
fixando-se em obra que idealizara e havia de realizar...
Maurício de Almeida visitava-me amiúde. Por vezes
deliciávamo-nos com a visão calma dos lindos poentes da minha aldeia em
que a luz irisante que se desprende do mar, tinge o céu de sanguínea e
dá tons de esmeralda para as bandas do levante. Quando as nuvens se
encastelam na orla do horizonte, formam-se cordilheiras aladas em que se
projectam imprevistos cambiantes de luz, esmorecendo suavemente na penumbra que se adensa. As brisas do norte movimentam-nas às
vezes, e divisam-se então recortes de figuras, aspectos valquirianos que
a fantasia anima e contorce em vibrações audazes, perdendo-se por fim
nos últimos revérberos crepusculares.
Era nessas tardes de Setembro que as nossas palestras prosseguiam, no sossego reconfortante da aldeia adormecida no langor das
almas e na imobilidade dos campos desertos. Hora propícia para
espraiar o pensamento em divagações artísticas. As suas confidências
sobre programas futuros e inclinações esculturais, davam-me crescentes
esperanças do seu triunfo.
Em 1921 fez para a exposição da Sociedade de Belas Artes de
Lisboa, o
seu belo trabalho «Arrependimento»
(fig. 7) que mereceu justos louvores(2).
É um adolescente
sentado, em cuja mímica pairam sombras e remorsos.
A estátua, bem delineada, mostra uma posição curiosa, no apoio que dá ao
tronco no braço esquerdo, enquanto a mão direita, que apoia a cabeça com
o cabelo em desalinho, completa a síntese do desgosto e inquietação que
o atormenta.
O dorso (fig. 8) é perfeito de modelação.
No conjunto é um pouco inspirado na obra prima de Soares dos Reis.
Encostou-se a bom mestre ao fazer a sua estreia pública.
Antes de partir para Paris, deu o seu concurso a
uma pequena récita de aldeia, festa sem pretensões, em que colaborou a
gente moça que, ao tempo, abundava em Avanca. Incumbiu-se do cenário,
realizado em poucos dias, com grande sabor caricatural. Os jovens
actores tiveram ocasião de estar em contacto com o artista e admirar
as suas excelentes qualidades. Todos se louvaram no seu convívio.
Em fins de Setembro aparece com uma surpresa artística: uma estatueta
que fugia às regras da série em que trabalhava na sua Empresa
Industrial. É uma cabeça de mulher, de tamanho natural
(fig. 9), símbolo
de sofrimento, que se
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166 /
encosta a um espaldar com reminiscências de cruz. No rosto há uma
tristeza íntima que se traduz na imobilidade flácida da mímica. As mãos,
meio cruzadas, enterram-se no cabelo. Envolve-a uma poalha de
religiosidade.
Foi Maurício quem a colocou
sobre um velho contador árabe donde foi
removido um pequeno bronze, figura de pedinte, tipo de Teniers, assinado
por Crozalier, que Maurício apreciava. Não foi sem o seu protesto que se
operou a troca. Submeteu-se à minha decisão, por ser o melhor local
que podia destinar à linda cabeça que me oferecera, em que a dor e a
beleza se entrelaçam como os dedos das suas mãos.
Maurício não era só religioso, tinha tendências místicas; por isso lhe
perguntei se ele quis representar no seu trabalho a cabeça da Virgem
depois da tragédia do calvário.
− Quis apenas exprimir a dor sem pretensão a personificá-la. Dor de mãe,
dor de noiva, dor de filha... não sei. A dor que anda à espreita por toda a parte e que aparece
quando menos esperamos.
Referi-me ao modelo que reproduziu com inteira verdade e era do meu
conhecimento. E, como se admirasse da minha observação, falei-lhe de uma
interessante rapariga de Rossas (Arouca), por sinal de boa e laboriosa
gente, filha de um
antigo caseiro da casa de meus tios.
− É exacto. Casou e foram
morar para Gaia. Foi ligado a esse casal que
montei a minha pequena Empresa de laboração artística que acabo de
liquidar. Foi ela o modelo.
E, mudando de rumo:
− Tenho uns 30 contos que arranjei à custa do meu trabalho. Já posso seguir para Paris, sem ser pesado aos meus
protectores...
E, como insistisse que recebesse a remuneração que lhe
devia pela sua bela obra, quase se indignou.
− Não. Essa estatueta fica para avaliar a diferença, antes
e depois, da minha aprendizagem em Paris.
Voltou no dia seguinte. Pediu-me para colocar uma
legenda no seu trabalho:
«Depois da tragédia»
E partiu.
− Até breve! − lhe disse. Lá irei ver os teus progressos. Escreve.
Esmorecia a tarde; e, ao despedir-me, agourei-lhe o mais largo futuro.
Contudo, ao voltar para a sala onde me prendia a mágoa daquele rosto de
mulher, em cuja contemplação me demorei − como, ainda hoje, tantas vezes me sucede
− deixei cair os olhos
sobre a legenda e fixou-se no meu cérebro, não
sei por que íntimos desígnios, aquela palavra sinistra − tragédia.
/
167 /
Em 30 de Setembro foi de abalada para Paris com a devoção de um crente
que sobe a escarpa em busca da ermida da sua devoção. Viagem em comboios
morosos que o deixaram em 2 de Outubro de 1921, no Quai d'Orsay.
Conservo bastantes cartas de Maurício. Desejo incluí-las
neste relato, sem amputações. É o que fica, a valer, neste artigo, pois
dá o romance de uma alma ansiada de arroubos e atormentada de realidades
cruéis. Mais do que isso, é um comentário sobre arte, numa época de
transformação que ele viveu e a que se ia adaptando.
Em Dezembro desse mesma ano escreveu-me a falar da sua instalação
provisória na Rue Vandamme, 45.
«Paris, 20 de Dezembro de 1921
«Meu Ex.º Protector e Amigo:
«Fiquei contente com as boas palavras de V.
Ex.ª Depois de muitas semanas de intensa procura, consegui, enfim, alugar um atelier.
Caríssimo, custa por mês 500 francos, mas é completamente mobilado e tem
belos appartements: cozinha, sala de jantar e quarto. Será para mim e para o
meu camarada do Porto(3), pintor de quem há tempos falei a V. Ex.ª e
que é um bom rapaz com quem sempre me dei bem. Fica-nos assim mais
barato e nós podemos, juntos, fazer o ménage, o que evitará grandes
despesas.
O atelier é a casa onde viviam um engenheiro e sua esposa, artista de
teatro, que agora vão ausentar-se para o estrangeiro. Calcula-se, pois,
como a tenham mobilada, e o interessante, é que eles se safaram deixando-nos tudo, tudo que
dentro da sua casa tinham mesmo até coisas
íntimas, sem fazerem apontamento do que possuíam. Disseram que depositavam toda a confiança em nós e essa declaração foi o documento
que fizeram! Espantoso! Só gente de Paris. − Temos o aluguer seguro por
três meses, depois veremos no que param as modas. Tratamos agora de
dispor as coisas
a nosso gosto, anda tudo aqui hoje numa revolução, Não nos faltam
estofos e ornamentos de toda a espécie; temos uma esplêndida livraria e
até um magnífico piano para nos distrairmos nas horas mais amargas(4).
Nestas condições
/ 168 / podemos receber quem quer que seja e dar o
nosso chá. V. Ex.ª um dia que venha a Paris, não deixará de nos
honrar com a sua visita.
É muito caro, é certo, mas se fôssemos a alugar um
atelier despido e tivéssemos de comprar tudo, mais caro, muitíssimo
mais caro nos ficaria. Sem bom dinheiro, enfim, nada aqui se faz. Mas
deixá-lo! Não me importa
gastar os últimos vinténs para poder trabalhar à vontade! Até Abril
próximo quero ver se me preparo para as exposições de Lisboa, Porto e
talvez do Salon de Paris. Nessa cidade já peço a V.Ex.ª para outra vez
me auxiliar, pois seria bom que eu vendesse muita coisa. Precisava conservar-me aqui durante alguns anos...
− Tenho
visitado no Mr. Bourdelle, o velho discípulo de Rodin que actualmente é tido como um dos primeiros escultores. A sua
obra é sugestiva e enérgica, embora, por vezes, demasiado «cubista».
São os tempos.
O «Salon de Outono»
deste ano, parecia mesmo o outono da Arte! Quase
um dia de finados. Raras obras de valor. Que tristeza!
«Apresento os meus cumprimentos e com
eles os meus serviços...
Maurício de Almeida.
Quanta esperança, quanta fé, quanta mocidade, ajuntadas a um exagerado
optimismo, transluzem desta carta!
Respondia-lhe com assiduidade. Um dia
comuniquei-lhe
que estávamos na intenção de auxiliar a construção de uma capela que a
gente do lugar da Areia (Avanca) ia erigir. Lembrara-me dele para o
incumbir da escultura da padroeira.
Desejava que a sua arte deixasse perdurável vestígio na
nossa, terra. Na resposta vê-se como o ascetismo lhe dominava o
espírito.
«Paris 18 de Janeiro de 1922. 45, Rue Vandamme.
«Meu Ex.º Protector e Amigo:
«Extremamente carinhosa e simpática a ideia de construir uma ermidinha em Avanca, berço de V.
Ex.ª e que eu adopto também como o principal torrão do meu
começo. Eu dou a essa iniciativa toda a minha adesão, e pena tenho de
não ser rico para poder contribuir largamente para a realização de tão
bela obra. Hoje, mais do que nunca, nós precisamos de elevar o
pensamento para regiões mais divinas e puras que esta malfadada
/
177 /
terra,(5) pois nela não encontramos actualmente um só canto onde o espírito não
embata com a dura e fria materialidade, nata da crueldade,
dos ódios e das ambições humanas. Assim, a ermidinha de Avanca
ficará sendo o fito da nossa religião, o tabernáculo santo onde se
concentrará toda a nossa alma em adoração a Deus, único refúgio das
penas que nos rodeiam. Abraço comovidamente, pois, essa, ideia, e
para ela concorrerei com tudo que esteja dentro das minhas forças.
Vim para Paris numa época terrível, tendo de lutar imenso, para aqui
me conservar. E eu precisava de aqui viver bastante tempo, e eu queria
aqui viver por muito tempo... Nossa Senhora de Avanca, eu lhe prometo fazer gratuitamente a Sua Imagem para a ermidinha
nova, com toda a minha inspiração religiosa, se a vida me correr bem por
este
ano e se for bem sucedido nos
meus trabalhos. Mais ainda, o meu companheiro de
atelier, jovem
pintor de talento extraordinário(6) e muito conhecido já em Portugal,
fará uma tela para o altar, se igualmente a vida lhe correr bem para poder aqui sustentar-se.
− Nossa Senhora seja connosco!...
«Vou começar amanhã o meu trabalho destinado ao «Salon», um grupo dumas 25 figuras, ocupando um
espaço de 2 metros. Tenho já pronto o estudo, que tem
agradado bastante. No entanto a sua execução, em grande, é difícil e
para ela terei que gastar as minhas economias, principalmente se tiver
de comprar o franco, como ainda ontem, a onze tostões. Mais ça ne fait rien. Eu confio no destino e o que quero é apresentar alguma coisa que se veja. Já que sou pequeno de corpo queria ver, ao menos,
se conseguia ser grande nas minhas obras...
«Tenho tomado por aqui boas relações, tanto no
meio português como no estrangeiro. Frequento a Associação Internacional
dos Estudantes, grémio interessantíssimo e de
grande alcance para mim sob todos os pontos de vista.
«No dia de Ano Novo almocei no Hotel do Louvre com os Srs. Viscondes da
Pesqueira; que tiveram a gentileza de me convidar para esse fim.
«Agradeço do coração as boas palavras
De V. Ex.ª e...
Maurício de Almeida.
/
178 /
Esta carta é o retrato de uma alma em prece!
Autobiografia em poucas linhas. Confiava-se todo em
confidências íntimas à amizade de quem o compreendia.
No fundo talvez houvesse um
propósito discreto de apostolado...
A sua religiosidade era estrutural, dominadora. Tinha,
porém, a suavidade da adoração do Jesus-Menino, acompanhando a Virgem, num cenário de Guido Reni. Não conhecia nem a intransigência, nem a obcecação.
Maurício era acima de tudo a personificação da bondade.
Não me furto a relatar um episódio da sua vida, pois tenho
a opinião de que os artistas devem ser estudados na sua obra e nas
forças íntimas que os orientam e dominam.
Contou-nos um seu companheiro que, às vezes, iam com
ele aos dancings
do Quartier. Todos procuravam divertir-se tentando relacionar-se com as mais esbeltas e desenvoltas raparigas. Maurício ficava um pouco à banda, e só aparecia a dançar com as menos dotadas de encantos. Alguém lhe
perguntou a razão deste procedimento.
− É que, coitadas, ninguém as tira para dançar.
Quanta delicadeza de sentimento brilha neste procedimento! Quanta doçura estrutural de são altruísmo se reflecte
nesta conduta!
Anuncia-me, em carta de 18 de Janeiro de 1922, o arrojado intento da realização da obra que havia de abrir-lhe as
portas do Salon: Par la Route de la Vie. Um título que
é ao mesmo tempo uma nota de psicologia pessoal, como dá
a entender na carta que a seguir publicamos. Quanta ansiedade, quanto nervosismo se adivinha através dessas páginas:
confidência amiga dum espírito torturado pela dúvida!
«Paris, 7 de Abril de 1922.
«Meu Ex.mo Protector e Amigo:
«Uma tão longa carta para um homem de tantos
afazeres, obrigado a ser limitado em todas as suas ocupações, é efectivamente a comprovação de uma grande
amizade que eu tenho de distinguir no amontoado dos meus reconhecimentos
para V. Ex.ª.
«Acabei o meu trabalho. Está
actualmente nas mãos
do moldador. Não sei a sorte que me espera, estou bem
receoso, devido à ingratidão do meio e à incerteza da
época, onde nos é difícil adivinhar o que é que agrada
ao público e − sobretudo − o que agrada à severidade de um júri, tão
numeroso e portanto tão diverso na sua
maneira de julgar. Meu Deus! Quanta ingenuidade em
/
179 /
mim, quanta imprudência em dizer que fazia um trabalho
com destino ao Salon! Os maiores mestres de hoje foram muitas vezes
recusados, e demais quando aparece um estrangeiro, desconhecido, será
de uma enorme dificuldade acordar a complacência dos austeros peritos.
Todos o sabem, todos o confessam. V. Ex.ª também
conhece muito bem o meio e faz um cálculo. É realmente uma grande audácia da minha parte, mas deixá-lo! Se for recusado
adeus «viola», e Isso fica cá entre nós sem se dizer nada a ninguém.
Depois a inteligência do meu Ilustre Protector está bem ao par de compreender
as coisas, felizmente.
«É agora que eu começo a pensar no meu arrojo:
novato na arte, novato em Paris, sem conhecer ninguém; empreender uma obra de tão complicada execução e idealização, com um grande sacrifício do meu parco capital,
para a apresentar num certame onde concorrem os
artistas do mundo, é fantástico! − Mas bem, a aventura está feita,
esperemos pelo resultado de cabeça erguida. De uma ou de outra maneira
nunca será caso de morte...
«Na «Imprensa da Manhã» do dia 3 último foi publicada uma descrição do meu trabalho, e feita com muita
inteligência. Se V. Ex.ª se der ao incómodo de a procurar dispensa-me de fazer aqui outro relato, que se tornaria longo.
Depois as fotografias irão completar a ideia desse trabalho. − O que é
de certo alcance para mim é o
final da crónica, gentileza que tenho a agradecer ao jornalista que teve a indiscrição de vir saber o que eu fazia.
Se acaso o Governo olhasse para aquilo e se «comovesse»... O que eu
precisava, efectivamente, era de
vender a minha obra, e ela não é apropriada para ser comprada por
particulares. Se essa sorte − se essa sorte
grande! − não estiver comigo o que é de contar, lá se vão as esperanças de
continuar a minha vida em Paris... É o diabo, isto dos artistas também precisarem de dinheiro!
«O Snr. Dr. Afonso Costa
disse que queria ver o
meu trabalho depois de pronto. Na próxima semana convidá-lo-ei a vir
ao meu atelier e talvez na mesma ocasião convide o Snr. João Chagas, que
sei interessar-se por estas coisas. Quando aqui se encontrava, de
passagem, o nosso ministro em Viena, Snr. Dr. Veiga
Simões, visitou-me, inesperadamente, com sua gentil
esposa, para ver também, Par la route de la Vie,
em que lhe tinha falado o redactor correspondente da «imprensa da Manhã». Ainda me deram a honra da sua
visita os Snrs. Conde de Monsaraz e Visconde da Pesqueira, etc. Todos mostraram ficar agradados da minha
/
180 /
obra e disseram colocar-se à minha disposição para
o que pudessem ser prestáveis. Ora se todos estes
ilustres cavalheiros pudessem, fora da política, empurrar-me o bloco para a venda juntamente com o auxílio
valiosíssimo de V. Ex.ª que, estou certo, mais uma vez
se poria em campo, a meu favor, − seria isso uma ideia altamente
luminosa para o pobre artista que dizem ter um largo futuro, mas que vê um caminho demasiado
estreito para poder passar... E é a estreiteza desse
caminho, justamente, que me inspira assuntos como
«Pela Estrada da Vida», que afinal é bem sentida, embora
não tenha outras qualidades.
«Agradecerei muito a V. Ex.ª a recomendação para
o Snr. Homem Cristo, que me pode ser útil para qualquer coisa. Sei que ele está aqui muito relacionado,
sobretudo no meio literário, e que faz parte da conhecida casa Chez Fast, onde actualmente está uma pequena
exposição de esculturas de Ernesto do Canto. Para
fazer a vida de Paris são indispensáveis muitas relações.
«A minha obra será apresentada em gesso e, graças
ao Senhor, já não é pouco. Para fazer a mesma coisa
em mármore teria que gastar alguns 20,000 francos e a
execução demoraria mais de um ano. E por cima de
tudo, sujeito a perder dinheiro e trabalho, por não ter
a sorte de réussir. Peco desculpa, mas V. Ex.ª ainda
não conhece bem o métier do escultor... − A síntese
de Par la Route de la Vie, tenho o gosto de o constatar, é precisamente moldada na ideia que V. Ex.ª me
explana sobre a arte moderna, e que eu aprovo completamente.
«Falemos agora da nossa Santa. Tanto eu como o
meu companheiro Henrique Medina, estamos dispostos a cumprir com a nossa
promessa, e o mais largamente
possível, desde que a sorte nos não falte para aqui podermos viver mais algum tempo até completarmos a nossa
educação. Sem querermos impor qualquer ideia, aceitamos todas as indicações e pareceres que queiram ter
a gentileza de nos dar. O tamanho da Imagem, assim como do retábulo, depende das dimensões da Ermidinha.
Para mim acho muito bem a Senhora do Rosário e o
meu companheiro inspirar-se-á no assunto que lhe queiram dar.
Se a moldagem da minha obra ficar
bem, V. Ex.ª
verá pelas fotografias, que terei o gosto de enviar-lhe,
um estudo já para essa Santa, na figura que domina o
grupo principal. É curioso: quase nas condições em que
V. Ex.ª me fala.
/
181 /
Henrique Medina tem já um quadro
− um retrato de dama aceite ao Salon. Não é qualquer nulidade,
pelo que será de grande valor a sua oferta.
Esperamos a nossa sorte para empreendermos a
sério esta agradável
tarefa. Falaremos largamente no assunto para todos ficarmos satisfeitos.
Oxalá que venha a ocasião de eu poder empregar na nossa Imagem
querida toda a força da minha arte, todo o poder da minha
crença. Tenhamos esperança.
«Sinto-me hoje um pouco constipado,
escrevendo com esforço, de cabeça
pesada, numa oscilante mesinha colocada á beira do fogão. Desculpe-me V.
Ex.ª por favor, estas «mal notadas regras».
«Os meus cumprimentos...
Maurício de Almeida»
Maurício procurava criar em torno da sua obra uma
atmosfera favorável, ao menos entre os compatriotas. E tudo me
relatava na certeza de que a sua actividade me agradaria. Nesse
sentido lhe escrevi. Incitei-o a que não deixasse de mostrar o seu
trabalho, para que soubessem do seu esforço e do seu valor. Continuava,
porém, cheio de apreensões e incertezas
que, felizmente, rapidamente se dissiparam.
«Paris, 19 de Abril de 1922.
«Meu Ex.º Protector e Amigo:
«Tenho a satisfação de comunicar-lhe que o meu
trabalho foi aceite ao «Salon». Acabo de o saber por carta do grande
mestre escultor Felix Charpentier, membro do júri.
«No principio da próxima semana enviarei as fotografias.
«Em expondo segunda vez fico com direito de pertencer à «Sociedade dos
Artistas Franceses», o que já quer dizer alguma coisa.
«E agora muito em particular, cá só entre nós:
O . . . . . . foi recusado.
«Com as minhas saudações...
Maurício de Almeida»
/
182 /
Rasgara-se um horizonte na sua vida. Admitido ao
«Salon»!
A obra mereceu boa crítica. Era condicionada pelas
correntes, ao tempo, dominantes, e que ele foca na carta, que vai ser transcrita, de uma maneira impressionante.
O artista toma individualidade na ideação e na execução.
Muito tinha que caminhar e que corrigir; mas o escultor apresenta-se, no movimento do seu grupo, como pioneiro
de mais largos empreendimentos.
Há uma pequena nota pessoal na referência ao irmãozito querido: alguém
que caíra exausto no caminho... Débil demais para a luta da vida! Trouxera à cena uma representação familiar, quando era ele próprio que, inconscientemente, se escondia no relevo final, mal delineado, de quem, exausto de forças, não pôde acompanhar a caravana.
«Paris, 28-IX-1922. 4, Rue Vandamme (14ème).
«Meu Ex.º Protector e Amigo:
«Seguiram ontem as fotografias do meu trabalho (figs.
11,
12 e
13). Ficaram razoáveis as duas faces laterais, mas a de frente não dá bem a impressão do que é
pela má escolha da luz e posição da objectiva. Não sei
se V. Ex.ª se agradará da minha obra, bastante fora do
vulgar. Eu penso que, por isso mesmo, ela vai fazer um certo «barulho»
como já o fez até aqui, mesmo escondida aos olhares do público.
«O que eu procurei no meu trabalho foi principalmente: grandes linhas, expressão, sentimento e movimento. Creio que V.
Ex.ª tudo isso verificará nas provas fotográficas.
Tenho cá para mim − e julgo ser esse
o espírito moderno − que mais vale uma linha bem sentida, mesmo sacrificada pelo rigor clássico da forma, que
uma forma de rigor fotográfico sem sentimento algum.
Nós hoje, mais do que nunca, procuramos sensações
fortes. Um pedaço de pedra, cortado em quatro golpes
decisivos pelo ardor de um espírito que sente, pode
impressionar-nos melhor que as linhas bem cinzeladas
duma forma não sentida. E quase sempre o nosso espírito, nos momentos do nervosismo sentimental, não tem
tempo para prolongar-se na fixação das suas impressões. E o desejo espontâneo de materializar a visão não permite delongas para um acabamento perfeito, que nesse caso inverteria o
espírito pela forma. Hoje não se pode estar parado, a descobrir numa estátua as linhas de
/
183 /
beleza que ela nos não pôde dar de momento, no primeiro relance.
«As grandes sensações! Eis o que nós hoje desejamos, e não podemos
encontrá-las nas obras de arte desde que elas não sejam concebidas com
grandes linhas, expressão, sentimento e movimento, e sem preocupações de formas mesquinhas.
«Eu quando concebi o meu modesto trabalho imaginei-o numa grandeza de
dez metros, cortado a larga silhouette azul no horizonte púrpura dum
poente doentio. E impressionei-me e achei-o belo (vaidade!). Pense-o V.
Ex.ª também assim, para sentir comigo as ilusões da vida, que, no fundo,
essa obra é metida para um canto da puerilidade, perdida no turbilhão
do espírito material que passa. Deixá-lo! Eu rir-me-ei da foule e
fico, ao menos, tranquilo de ter feito o que senti. A vida, até hoje,
eu vi-a mesmo assim. E parece que passei por todas as fases de expressão
que compõem o meu grupo... E depois eu tive um irmãozinho que sofreu
imenso e morreu no meu lugar, sem até hoje eu descobrir porquê.
«Sensibilizou-me, em extremo, a carta última de
V. Ex.ª ... Quanto carinho, quanta amizade eu vejo por mim! É isso
ainda o que alimenta a alma, embora me não julgue merecedor de tanto.
Agradecido!
«Obrigado também, mil vezes, pela propaganda que faz do meu modesto
nome, bem como pela apresentação para o Snr. Homem Cristo. Devo
procurá-lo logo ou amanhã, pois ele tem estado para Portugal.
«A minha escultura mede 2,20
metros de comprimento
por 0,84 de largura e tem o preço de 20.000 frcs. Apesar dos bons
ofícios de V. Ex.ª eu penso que não será possível conseguir que o Estado
a compre, na penúria em que se encontra. Em todo o caso tentar... mas
não se sacrifique V, Ex.ª demasiado por mim.
«É amanhã a vernissage do
Salon. Alguma coisa que se passe no decorrer
da exposição eu transmitirei ao meu bom Protector.
«Vai para todos a
expressão....
Maurício de Almeida.»
Imaginei o meu trabalho, escreve o artista, na grandeza de dez metros,
cortado a larga silhouette azul, no horizonte púrpura de um poente
doentio. O projecto do seu trabalho em revoada de fantasia. Queria mais
para o seu grupo do que a atitude das suas figuras em marcha. Apela para
a cor,
para o contraste de tons... num poente doentio.
/ 184 /
O grupo Par la Route de la Vie
é uma audaciosa composição em que o movimento vale mais do que a forma,
o esforço mais do que o perfeito
delineado dos personagens, a luta mais do que a composição cuidada das
figuras. É a escultura em movimento...
Na minha ida a Paris tive ocasião de ver, no
Salon, o
precioso grupo, que, desde logo, chamou a atenção dos visitantes. De lado,
tanto à direita como à esquerda (figs.
11 e
12), vê-se o esforço dos que seguem na penosa tarefa. Ao centro uma
figura de mulher tem qualquer coisa de santa dos altares. Visto de
frente (fig. 13), nota-se a exaustação nas atitudes, mesmo dos que
alcançaram a dianteira. A fotografia, que a gravura reproduz, é má, e
apenas dá uma ideia vaga do valor da obra do notável escultor.
Toda a vida do artista ali
está condensada: as energias despendidas, os sonhos insatisfeitos, as
aspirações na ânsia de realização, e ainda a mística do seu espírito
alteando-se a regiões inacessíveis.
«Paris, 31-V-1922. Rue Vendamme, 45-XIV.
«Meu Ex.º Protector e Amigo:
«Apresentei-me com a carta de V.
Ex.ª ao Sr. Homem Cristo, que me
recebeu muito gentilmente com o seu convencional sorriso de politesse,
pondo-se imediatamente à minha disposição para tudo, tudo em que me
pudesse ser prestável. Para qualquer referência nos jornais já era tarde, porque as críticas no
Salon já tinham sido publicadas.
Mostrei-lhe o desejo de ser aproximado dum escultor de nome que me
fizesse trabalhar a seu lado, sobretudo no mármore. Enviou-me, com uma
apresentação, para casa dum seu íntimo amigo, pintor espanhol, que
começa de afamar-se em Paris:
Frederico Beltran Manes. Este, por sua vez, e depois de uma espera de 3
semanas, deu-me uma carta que não valeu de nada. O Sr. Homem Cristo disse poder-me
pôr em contacto com Landowski, justamente o escultor
da minha paixão. Por duas vezes o incomodei pedindo-lhe esse favor.
Esqueceu-se. E como eu não gosto muito de importunar os príncipes, não
voltei a aparecer-lhe.
«Este final foi a causa de eu tanto demorar a escrever a V. Ex.ª. Não me
surpreendeu o resultado. Eu já sabia
de antemão que aquele nosso ilustre amigo era − eis a
definição: muito Homem e... pouco Cristo!
/ 193 /
[VoI. IX - N.º 35 -1943]
«Vi no «Concelho» e hoje também no «Diário de
Notícias» os artigos que V. Ex.ª publicou a meu respeito. Meu Deus, que
de palavras benevolentes caem sobre mim! Eu já perdi aquela qualidade
ingénua de corar por qualquer coisa, mas confesso que ruborizei ao ler esses
artigos. V. Ex.ª é bom de mais. Custa-me a compreender o motivo de tão carinhosa dedicação por quem tão pouco vale... E como
agradecer-lhe? Não encontro maneira. Limito-me a pedir, um dia à
Senhora do Rosário, para ter em conta essas bondades hoje tão raras na
terra!
«Felizmente não me prejudicam esses prematuros elogios. Conhecedor do
meu atraso, só desejava poder continuar a trabalhar, para, mais tarde,
ver se conseguiria dar uma. justificação às referências que me são
feitas. −
O meu companheiro Henrique Medina muito reconhecido fica também, pelas
palavras que lhe tocam.
«O crítico de arte de «La Revue Moderne»
escreveu-me ultimamente pedindo-me algumas notas da minha biografia e
qualquer prova fotográfica do meu trabalho, dizendo que, entre as
obras escolhidas, para a elas se
referir, figura a que é assinada por mim (!?). Essa revista
publica-se nos dias 15 e 30 de cada mês; vamos a ver se nos próximos
números diz alguma coisa a tal respeito...
«Tento ver, actualmente, se consigo
descobrir qualquer importante atelier que me possa dar trabalho,
para decidir a
minha situação. Tinha grande vontade de continuar em Paris. Mas se, de
todo em todo, isso me não
for possível, procurarei alcançar país estranho, pois em Portugal, por
enquanto, nada terei a fazer. Esperemos algumas semanas, que eu depois
darei parte a V. Ex.ª do meu destino. Se eu viver e tiver saúde, a Imagem do Rosário será sempre feita em qualquer parte onde me encontre. Não tão depressa, provavelmente, como era meu desejo, mas
creio que a questão do tempo não é o que mais importa. Confiemos no
Destino.
«Sempre...
Maurício de Almeida.»
Se eu viver e tiver saúde... escreve ele. Talvez um primeiro e
impreciso rebate do seu estado físico! A alimentação, sobretudo, devia ser deficiente. Por excesso de economia e porque
os francos iam desaparecendo, não chegando para o que lhe era
indispensável. Queria seguir a sua aprendizagem em Paris, onde via
outros vencer e prosperar sem as qualidades que justamente se atribuía.
E não podia contar com o auxílio que o Estado devia conceder-lhe.
/
194 /
La Revue Moderne de
30 de Junho de 1922 (22.º ano, N.º 12)
dedica-lhe palavras justas de encorajamento. Reproduz um dos aspectos laterais
(fig. 11) da obra do artista.
Arquivamos as palavras que lhe dedica. Não só honram o
meu biografado. mas justificam, em parte, a razão deste artigo no «Arquivo»
do nosso Distrito.
Maurício de Almeida
Parmi les sculptures qui, au Salon des Artistes
Français, ont retenu mon attention, le groupe plâtre
Par la Route de la Vie, m'a révélé M. de Almeida.
Ce groupe se compose de vingt cinq personnages dont chacun a son
expression propre, presque toutes tragiques, dénotant l'énergie, la volonté de vaincre, le
désenchantement, les convulsions de la Mort.
Une des parties de cette composition
représente l'Amour: un homme
soutient avec une extraordinaire énergie une femme et l'aide à marcher.
D'autres expriment la Fraternité, la Charité, L'Amitié. Les
personnages en sont tantôt robustes, tantôt décharnés, tous marchent
péniblement, vers la Mort, guidés par une figure idéale et mystique
qui représente la Religion. C'est une oeuvre originale, de pensée
philosophique et
de grande envergure, ce qui n'exclut pas l'habileté du
métier. De quelque côté que nous voyons ce groupe, il nous semble voir marcher
les personnages.
Le sculpteur est portugais, né à Estarreja (Portugal), em 1897.
Il est l'élève de Teixeira Lopes, le
plus grand des sculpteurs portugais, qui le fit travailler à l'École
des Beaux-Arts de Porto. Toujours classé le premier, le ieune artiste
obtint plusieurs récompenses et termina ses études en 1916, exposant,
l'année dernière, pour la premiere fois, à Lisbonne, une statue
grandeur naturelle, intitulée «Le Repentir» qui eut un très vif succès.
Il n'est que depuis huit
mois notre hôte, car il est venu à Paris pour
étudier les oeuvres des grands Maîtres français et surtout celles,
dit-il, qui sont puissantes. C'est un jeune sculpteur de grand avenir,
dont le Portugal aura souvent l'occasion d'être fier et que nous devons remercier
de faire à notre pays l'honneur de venir y pulser un
complément de culture artistique.
Envidei todos os esforços para que o grupo fosse adquirido pelo Estado português. José de Figueiredo ainda me deu algumas
esperanças; mas, por falta de verba ou de interesse, o trabalho de
Maurício não chegou a vir para Portugal. Foi para um armazém de Paris.
Depois da morte do
/
195 /
artista, ainda insisti. Esforços baldados. Eu não tinha local em casa
onde pudesse colocá-lo. Lá ficou para sempre, como o seu autor, entre
o desprezo das gentes que deviam estimá-lo e o camartelo funesto que o
reduziu a cisco.
Decepções sobre decepções, a que o autor não teve tempo
de assistir.
Maurício, após esse esforço, pensou em aproximar-se do escultor que mais
admirava e que, ao tempo, marcava o primeiro lugar em Paris: Paul Landowski.
O grupo Les fantômes, de oito bem diferenciadas personagens
(Fig. 13),
de atitudes levantadas e espectrais, era uma das obras do Mestre, que
Maurício mais admirava. Reproduzo a fotografia que ele me ofereceu.
Lembra-me ainda a impressão que me causou essa composição
escultural,
quando a apreciei no Grand Palais. Fantasmas que voltaram e andam
ainda no espaço...
Daí não veio inspiração alguma para a obra do escultor português, executada antes de conhecer a do grande artista francês.
Os grupos de figuras apareciam nos monumentos e baixos
relevos da época, especialmente nos monumentos do após-guerra.
Maurício animou-se a fazer obra de fôlego e na corrente das impressivas ideias dominantes. A sua composição foi influenciada pelas novas
directrizes artísticas.
«Paris, 20-VI-1922. 45, Rue Vandamme - XIV.
«Meu bom Protector e Amigo:
«Ainda espero ser apresentado a Landowski por
intermédio do Snr. Homem Cristo. Talvez hoje ou amanhã. O meu
companheiro Medina, que trabalha
actualmente no retrato da esposa, mais uma vez lhe lembrou esse favor e parece-me que o amigo de V. Ex.ª se
interessa agora
para me servir. Direi o que se passar. O meu fim era praticar no mármore
e ver se, ao mesmo tempo, ganhava algum dinheiro. Caso Landowski não
possa aceitar-me procurarei por outro lado, esforçando-me por conseguir
a tão ambicionada situação que me permita estabilidade aqui. Por coisas,
gastaria imenso de cá estar para o ano próximo e em condições de poder
expor novamente. Trabalharei para isso. Conto com revezes, mas a dor já
me não é estranha e os artistas, parece que de
preferência aos outros, estão condenados a sofrer. Prosseguirei no meu intento sem desânimos e, com este desejo de vencer,
quase me convenço que só deixarei Paris quando me vir forçado a dormir
mais que cinco noites debaixo das pontes do Sena. Depois tenho amigos
/
196 /
que dão força ao meu espírito... V. Ex.ª é o primeiro.
Benditos os que assim sabem aquecer a alma alheia!
«Vi a «Ilustração Portuguesa»,
quase me envergonhando do que ela
diz sobre mim. É demais, Snr. Dr.! Mas fique em proveito do reclamo,
visto que a propaganda é hoje a condição essencial para o sucesso de
qualquer coisa. Muito e muito obrigado. La Revue Moderne, pela maneira
como a mim se dirigiu, deve fazer-me qualquer referência. Se assim for
não me esquecerei de reservar um exemplar para V. Ex.ª.
«Acho muito interessante os assuntos esculturais
para a nossa capelinha e terei gosto que a sua execução
fique também reservada para mim. Vamos primeiro à nossa Santa, que
depois é questão de eu me encontrar
em situação propícia.
«O Henrique Medina, que envia os seus cumprimentos, não se esquecerá do
seu retábulo e dentro em pouco principiará a estudá-lo. Eu olharei por
isso e, tendo tempo, até lhe sirvo de modelo... E a construção da
ermidinha vai adiantada?
'«Actualmente estou a fazer dois estudos de cabeça. O mais avançado
tem-me rendido muitas palavras de
elogio, pelo seu carácter e factura.
«D. Irene de Vasconcellos, formada aí em direito e que tem
frequentado
a Sorbonne, encontrando-se actualmente em Lisboa, escreveu-me, dizendo
que falará com
'alguns ministros e que talvez seja possível o governo português
conceder-me um subsídio, pelo que me lembra de eu requerer nesse sentido
ao Ministro da Instrução. Não tenho fé nenhuma em semelhante «graça»
mas em todo o caso requeiro, que não é o que mais custa.
«O Snr. Marques da Silva, do Porto, enviando-me
um documento que eu lhe pedi, diz-me se eu quero concorrer a um concurso
que ele vai abrir para a execução escultural do monumento à Guerra
Peninsular, visto ter falecido o autor da maquette aprovada. Vou pensar
no assunto para responder-lhe. Julgo que é um trabalho de muita
responsabilidade para preço tão diminuto.
«Deu-me satisfação a última carta de V.
Ex.ª. Escreverei breve.
«P. S. − O Snr. Homem Cristo acaba de enviar-me
'uma carta de Landowski. Nela diz que terá gosto em
receber-me e de ser-me útil, sendo-lhe possível, marcando-me a manhã do próximo domingo para o visitar. Vamos a ver o que dai
sairá.
«As minhas saudações...
Maurício de Almeida»
/
197 /
Homem Cristo, Filho, conseguiu, finalmente, que Paul Landowski o
tomasse como seu auxiliar. Foi das grandes satisfações da vida do
artista, e, contudo, foi o trabalho exaustivo que veio a ter no atelier
do Mestre que precipitou a
doença que o vitimou. O triunfo no caminho que encetara
preocupava-o muito mais do que o bem-estar e a saúde. Comida mal
preparada e fora de horas, distâncias grandes a percorrer a pé, excesso
de esforço superior às suas débeis
forças, tudo concorreu para a tragédia que veio a dar-se.
A alma, em Maurício, era tudo, o corpo quase nada.
«Paris, 27-VI-1922.
«Meu bom Protector e Amigo:
«Mais uma espera de 15 dias, e eis que talvez consiga o que desejava.
«Mr. Landowski recebeu-me muito amavelmente,
prometendo-me dentro do prazo de duas semanas introduzir-me num atelier de mármores onde ele tem obras a executar, para eu fazer a aprendizagem da pedra e ganhar
algum dinheiro. Era tudo isso o que eu queria, vamos
a ver se desta vez me calha a sorte... Direi o que vier.
«Estive hoje em casa do Snr.
Homem Cristo, onde
fui agradecer-lhe e participar-lhe da boa recepção que me fez o Mestre Artista seu amigo. Disse-me que tinha
recebido ultimamente carta de V. Ex.ª
«Os meus cumprimentos e a gratidão do protegido
humilde
Maurício de Almeida.»
As esperanças que se apresentam quase como realizadas ainda tinham
longo curso a percorrer... Nestes embates da vida as coisas nem sempre
deslizam como as águas dos regatos a espelharem à luz do sol.
«Paris, 25-VII-1922. Rua Vandamme, 45-XIV.
«Meu bom Protector e Amigo:
«Ainda nada resolvido a respeito da minha pretensão com Landowski.
Findos os 15 dias que me foram dados para a obtenção duma resposta,
procurei-o novamente e, não lhe podendo falar, telefonei-lhe em hora
própria sendo-me pedida mais uma espera de alguns dias, muito
/
198 /
amavelmente, com a justificação de trabalhos urgentes nos preparativos
da partida para a praia. Eis mais 15 dias
passados. Enviei-lhe ontem um pneumático, fazendo-me
lembrado mais uma vez. Espero a resposta. Insistirei até a conseguir,
que os franceses precisam disso. Mas seja tudo pelo amor de Deus!
«Esforço-me actualmente por conseguir um outro
atelier. Este é muito
caro e tem o inconveniente de
não aquecer o necessário para sustentar modelo nu, e é já preciso ir
pensando no inverno. Por essa razão não poderei aqui principiar
trabalhos grandes, mas os estudos para a Santa já os tenho entre
mãos.
«O Medina, para bem se desempenhar da sua missão, deseja que lhe seja
dada resposta ás seguintes perguntas: qual o tamanho aproximado das
paredes interiores, para resolver as dimensões proporcionadas do panneau;
qual
a cor interior das paredes; se a tela é para ficar completamente em face da janela e se esta é
grande ou pequena. Desejamos
cumprir bem a nossa promessa.
«Tenho presente a carta de V. Ex.ª de 16 último. Estimo que as próximas
férias lhe sejam bem proveitosas para a saúde, é necessário repouso.
«Com os meus cumprimentos...
Maurício de Almeida.»
As incertezas deste período foram das mais cruéis da sua vida.
Não esquece, porém, a encomenda da Santa para a Capela de Avanca, nem
tão pouco deixa de instar com Medina para que dê, igualmente, a sua
colaboração. Mesmo nas horas mais amarguradas, não deixa de pensar em
satisfazer o meu desejo, dando-lhe desmedido vulto.
Cheguei a ter remorsos de lhe ter falado num trabalho que, de modesto
propósito, transformou num premente dever, dando-lhe um pouco da sua
alma, que, por ser grande, não sofreria com o desfalque. O seu corpo,
porém, é que não comportava, embora eu o não suspeitasse, tanto fogo de
empreendimentos, em que, afinal, viria a queimar-se!
«Paris, 10 de Agosto de 1922. Rue Vandamme, 45-XIV.
«Meu Ex. mo Protector e Amigo:
Enfim! Comecei anteontem a trabalhar no mármore, no
atelier de Landowski. Ocupo-me a cortar grandes pedaços de pedra
− esboçar − para
habituar-me
/
199 /
aos escopros e, ao martelo, passando, mais tarde, para serviços mais
leves e de responsabilidade. Tenho a certeza que nestes primeiros
tempos me não pagam nada; pois o serviço não é de grande adianto e não
posso trabalhar horas determinadas, devido ao cansaço dos braços
e às grandes ampolas que se criam nas mãos, emperrando
o necessário movimento dos dedos. Mas o hábito virá e com ele a firmeza
do cinzel e a técnica de corte, esforçando-me então nessas alturas
para receber qualquer salário mensal, um dos fins importantes a que eu
viso.
«O praticien do atelier, assim como os operários, são criaturas muito educadas e amáveis, estimando-me bastante. São todos italianos. Uma vez
adquirida a prática, o trabalho no mármore torna-se interessante e faz-se com vontade. Aqueles blocos brancos, de aspecto
ríspido e frio,
são afinal excelentes companhias que até ao fim nos entretêm numa
conversa intensa e misteriosa,
respondendo com precisão a todos os ataques que lhes
dirigimos com os cinzéis. Sensíveis quase como os seres humanos,
exprimem-se em todas as modalidades do sentimento, riem e choram e
cantam e dão gritos dolorosos quando entra mais profundo o golpe do
metal. Compreende-se como, muitas vezes, o estatuário se isola da
outra companhia vivente, quase sempre mais importuna e falsa...
«Um pequeno desastre veio atrasar-me um esboço para a Imagem do Rosário
que já tinha bastante adiantado. Mas em breve o reconstituo e depois enviarei dele um desenho ou
fotografia, para V. Ex.ª ver se lhe agrada. Da mesma forma o nosso amigo Medina enviará um esquiço da composição que tenciona fazer.
«É meu desejo que lhe seja proveitoso o
séjour no
Gerez, bem como, depois, em Avanca.
«Os meus respeitos.
Maurício de Almeida.»
Maurício dirige um hino ao mármore que trabalha, em que há paixão e
calor, apesar de o bloco ser informe e frio. É a adoração do artista ao
seu trabalho. Recorda o trecho magistral do nosso PADRE ANTÓNIO VIEIRA
ao falar do estatuário. Maurício sabia exprimir-se com facilidade e
elegância. Por isso o chamei a colaborar comigo. Sem o valioso subsídio
das suas cartas ficaria inexpressiva esta notícia: Assim é uma
interessante autobiografia em que apenas alinho os documentos em que ele soube descrever as suas contrariedades e incertezas.
/
200 /
'Todos poderão soletrar, nas palavras dessas cartas, as amarguras que
tenham passado na vida própria. Os artistas, os literatos, os
cientistas mesmo, têm horas que se aproximam das que o nosso
escultor descreve e sofreu...
As suas aptidões revelaram-se por tal forma
no atelier de Landowski, a
sua habilidade de cinzelador mostrou-se tão eficiente, que o Mestre,
embora tarde, e com pouca generosidade, pensou em compensá-lo do seu
árduo mister de auxiliar valioso. Até lá, porém, quantas inquietações o
torturaram! E, por fim, o pagamento demorou-se e o artista
nada chegou a receber.
É nesta altura que consegue, com Henrique Medina, seu
companheiro querido e hoje retratista de grande categoria, um novo
atelier, que, além de outras vantagens, tinha a de
ficar mais próximo do de Landowski.
«Paris, 30-IX-1922. 45, Rue Vandamme − XIV.
«Meu Ex.º Protector e Amigo:
«Sinto deveras os incómodos de
V. Ex.ª e muito
folgo que o repouso de Avanca lhe tenha produzido o
melhor benefício para a saúde.
«Ainda não envio desta vez a prova do meu
estudo para a Snr.ª do Rosário,
mas ela está quase pronta e será remetida talvez em breve tempo. Já há
muito que poderia ter isso feito, não é verdade? Mas, Snr. Dr., há-de
haver sempre qualquer força superior á nossa vontade que violenta a
nossa acção para caminho imprevisto e que é aquela por onde sempre
temos de seguir − o do Destino. E então, desta vez as contramarés
acumulam-se:
é a falta de tempo por causa do meu trabalho no mármore, é a falta de − a pior falta
− de... dinheiro, é a preocupação
do «déménagement» do nosso atelier que agora sé impõe e é ainda a
história dum dente do siso que muito me veio dar que contar.
«Como vê V. Ex.ª, são problemas ainda assim pouco fáceis de resolver e
alguns demandam até, para entrarem em solução, um pouco de filosofia. E
além de todo, o cuidado do nosso pobre espírito.
«O trabalho do mármore vai muito bem. Já há bastante tempo que adianto
serviço para a casa e, por causa disso foi-me solicitado pelo praticien
do atelier para aproveitar o dia inteiro, porque a princípio eu só lá aparecia do lado
da tarde. Com duas horas e meia de caminho todas as vezes, lá vai o
dia ocupado por completo... É um serviço pesado, por enquanto; mas eu
felizmente
/
209 /
tenho o pulso forte e não faço caso das dores próprias dos primeiros
tempos. Além disso também quero fazer a vontade aos «patrões» do
atelier, embora com algum
sacrifício, porque isso convém de toda a forma. Mr. Landowski, chegado da praia, disse-me palavras muito agradáveis pelo meu
adiantamento e prometeu dentro em pouco entregar-me trabalhos de maior
responsabilidade. Em dinheiro ainda não falou, infelizmente. E eu por
enquanto também tenho acanhamento de nisso lhe falar, visto reconhecer a
minha qualidade de praticante e saber que tenho certo o benefício na
frequência da sua casa. Uma vez feito praticien, creio ter assegurado o
meu ganha-pão no seu ou noutro atelier. Mas até lá talvez tenha de me
conservar calado...
«O Snr. Homem Cristo tem estado fora. Irei estes dias procurá-lo para
lhe contar as atenções que tenho tido no atelier e para lhe agradecer
mais uma vez o seu favor, de alta importância para mim. V. Ex.ª também
se não esquecerá, isso lhe peço, de lhe falar no meu reconhecimento,
sempre que lhe escreva. Seria bom que ele se lembrasse do meu nome nas
suas conversas
com o Snr. Landowski.
«Este atelier onde
vivemos é muito caro e para o inverno tem os seus defeitos: um pouco
sombrio e difícil de aquecer o suficiente, para
sustentar o modelo. Tivemos a grande sorte − foi um milagre da Snr.ª do
Rosário! − de encontrar um outro que nos traz benefícios de toda a
ordem, sobretudo na questão económica, no qual tencionamos ficar
instalados no dia 15 do mês que amanhã principia. É perto do meu
Mestre onde trabalho no mármore, bem iluminado, com um pouco de quintal,
facilidade de instalação eléctrica, etc. Acabado de
construir, tomámo-lo em primeira mão e só o «contra» que há, é termos
de gastar uns milhares de francos para comprarmos o indispensável para
nele vivermos. Mas em poucos meses recuperaremos essa despesa, visto que
lá vamos pagar 2.200 francos por ano quando aqui desembolsamos 2.700
em 6 meses. E depois tudo nos ficará pertencendo, perdendo pouco, um
dia que nos quisermos desfazer dos «tarecos».
«Cumprimentos...
Maurício de Almeida.»
Uma nota fatalista: «...para caminho imprevisto e que
é aquele por onde sempre temos de seguir − o do Destino».
Coisas tantas a bailarem na sua mente e, de quando em
vez, uma nota de desalento ou de fatídico pensar.
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