O TRAÇADO da via militar
romana, no percurso compreendido entre o Mondego e o Douro, era tão mal
conhecido dos nossos escritores, que CRISTÓVÃO AIRES, por exemplo, indicou-lhe
este rumo: «De Condeixa
a Velha subia para Coimbra (Eminium), de Coimbra a Aveiro, por pontos
que seria difficil determinar; de Aveiro (Talabriga) á Feira (Langobriga)
atravessando o Vouga e passando perto de Ovar. Da Feira ia a (Calem) hoje Villa Nova de Gaya» (História do Exército Português, voI. lI, pág.
187).
Foi o Dr. FÉLlX ALVES PEREIRA quem reuniu até hoje maior soma de
elementos para a solução do problema, no seu estudo sobre a Situação Conjectural de Talábriga, publicado em
1907. O trabalho desse erudito investigador precisa, porém, de ser
completado em muitos pormenores. Por isso, o Sr. Dr. ARISTIDES DE AMORIM
GIRÃO, no excelente
estudo geográfico da Bacia do Vouga, deixou escrito: «Tão
poucos são os vestígios actuais dessa via militar ou tão escassas as
observações feitas in loco, que ainda se não conseguiu determinar com
precisão a directriz que ela seguia e localizar com segurança as
povoações por onde passava».
Na área do actual concelho de Gaia, adiantou alguns passos o Sr. Dr.
ARMANDO DE MATOS, com o artigo que, em 1937, publicou na Brotéria.
Desejaríamos fazer o mesmo quanto ao segmento − iter diei − compreendido
entre as estações de Talábriga e Lancóbriga. Enquanto se não determinar
a situação exacta destas estações e se não realizarem pesquisas
metódicas dos vestígios da estrada e do espólio dos castros desta
região, tudo ficará sujeito a correcções.
Ainda assim, partindo de hipótese de que a estrada medieval
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45 /
era a própria via romana, alguma coisa acrescentaremos ao trabalho de
FÉLIX ALVES PEREIRA.
Para o conhecimento dessa via via militar, o primeiro texto que interessa
é o do Itinerário, chamado de Antonino, mas organizado, segundo se
julga, em tempos de Caracala (198-217). Na parte respeitante às
estradas de entre o Minho e o Guadiana, apresenta-nos
ele um «iter» de
Lisboa a Braga, por Jerábrica (Alenquer), Scálabis (Santarém)(1),
Conímbriga (Condeixa-a-Velha, Emínio (Coimbra), Talábriga, Langóbriga e Cale. A distância de Emínio a Talábriga é de 40 milhas, de
Talábriga a Langóbriga 18, de Langóbriga
a Cale 13. Cada milha, segundo os cálculos mais recentes, equivaleria a
1.481,5 metros.
FÉLIX ALVES PEREIRA, em outro estudo, publicado em 1937 nas
Memórias da
Academia das Ciências (Classe de Letras, tomo lI, págs. 33-111), diz que
«havia três espécies de paragens nas vias militares romanas e é de crer que aquelas paragens, das
quais constava a denominação nas listas do Itinerarium, fossem as
principais; assim, chamavam-se mutationes as destinadas à simples
substituição do tiro hípico; stationes, que eram lugares de estalagem, e
mansiones, que eram propriamente estações de dormida, quando não se confundiam com as anteriores».
Como notam vários autores, as principais estradas seguem directrizes
determinadas quase necessariamente por condições geográficas, que se não
têm modificado através dos tempos. As vias romanas teriam sucedido a
antigos caminhos ibéricos, e algumas das estradas actuais não devem afastar-se muito
das da época romana.
A falta de verdadeiros
vestígios, como pontes, marcos
miliários, trechos de via, etc., guia-nos a toponímia com as
designações de Rua, Estrada-Velha, Carreira, Marco,
Padrão, Geira e, nos
documentos mediévicos, carraria antiqua, estrada mourisca... As
albergarias, as vendas, velhas ermidas e pontes de cantaria, na
proximidade de castros ou cividades − eis outros tantos indícios, mais ou
menos
seguros, da passagem de antigas estradas.
É da combinação de todos
estes elementos, e sobretudo da leitura dos
documentos medievais, que pretendemos deduzir o traçado da via romana
entre o Vouga e o Douro. Não
pode a «viagem», feita apenas sobre mapas, ter a segurança de uma
exploração directa. Parece-nos, todavia, que as notas coligidas terão
alguma utilidade, ao menos para desembaraçar os arqueólogos de
fastidiosas buscas documentais.
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46 /
MARNEL E SERÉM
Dominavam a passagem do Vouga duas
cividades fronteiras: a do MarneI e a
de Serém. Ficava a primeira à margem esquerda, na freguesia de Santa
Maria de Lamas.
Ali existiu um mosteiro que foi objecto de doações de
D. Enderquina Pala, nos anos de 951 e 961: «monasterium de marnelle que
uocitant sancta maria de lamas cum suas varzenas» (Dipl., n.º 73 e 84).
Com propriedades de D. Pala confinavam as do conde D. Gonçalo Mendes,
doadas a Lorvão em 981 (Dipl., n.º 132). E já dali se toma para referência o monte Meison Frido que não tardaremos a encontrar. Da
cividade ou castro do MarneI falam expressamente alguns documentos: «subtus
ciuitas marnele discurrente riuolum Uauga», ficava o mosteiro de
Santo Isidoro de Eixo ao qual Zoleima Gonçalves doou várias
propriedades em 1095 (Dipl., n.º 819); «et in confinitate Castelli
Marnelis, inter fluvium Vougam, et montem qui dicitur Meiçom frio»,
situava-se a vila do Pinheiro, doada em 1121 a Lorvão por Pedro Pais e Jelvira
Nunes Elucidario, Cidade III).
Documentos relativos a estas
povoações e a outras próximas registam pormenores interessantes: falam
em fontes e moinhos, citam uma lagoa e uma ilha onde costumava armar-se
uma pesqueira («illa insula ubi illa conbona sollen facere»). Todavia, o mais
importante para o nosso estudo é assinalarem o curso da estrada a que
chamam maior: «de alia parte per estrata maiore» (ano 1050); «et diuide
per illa strata maiore et de alia parte diuide per illo termino de sancta
maria de lamas» (ano 1077) (Dipl., n.º 378 e 549).
Na margem direita do Vouga, ficava a «Civitas quae
dicitur Serém»,
como reza um documento de 1170 (Elucidário, Cidade III). Ligando as duas
margens, uma ponte cuja conservação se considerava tão indispensável
que, no
século XIII, era obra de caridade contemplá-la nos testamentos. Gonçalo Gonçalves, chantre das Sés do
Porto e Coimbra,
deixava-lhe 10 libras em 1262 e D. Sancho, bispo do Porto, lembrava-a
igualmente em 1292 (Censual, 405, 408 e 436).
Em importante trabalho, recentemente publicado, se escreveu a propósito
o seguinte: «O indispensável cruzamento da estrada com o Vouga em nenhum
outro ponto se poderia obter tão vantajosamente como no local onde ao presente se faz; e que esta passagem decalca a da antiga via
militar Aeminium−Calem, referida no Itinerário, chamado de Antonino Pio, demonstra-o à saciedade o extenso troço de estrada
antiga, muito provavelmente romana, que ainda hoje se vê cortada na
rocha viva e fundamente sulcada por
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47 /
milenário rodado de carros, trepando ao alto de Serém, perfeitamente ao
lado da actual, partindo sensivelmente do
mesmo ponto do rio, e à qual, não obstante, nenhum arqueólogo ainda, que eu saiba,
fez referência. Considero também
a ponte velha do Marnel, cujas siglas de construção mais de uma vez
pessoalmente tenho estudado, sobreposição medieval de uma outra, romana. A meu ver, a via militar
Aeminium−Calem passava, pois, rigorosamente ali» (ANTÓNIO GOMES DA ROCHA
MADAHIL, Estação Luso Romana do Cabeço do Vouga, pág. 9; Coimbra,
1941). Segundo a opinião de um
investigador local, referida nesse trabalho, «a civitas Serem
era a mesma civitas ou castellum Marnelis, nomeada de diferente modo nos
diversos documentos» (Ibid., pág. 71, nota).
ALBERGARIA A VELHA
Em princípios do século XII, era aqui um dos pontos mais perigosos do
percurso. Deixadas as povoações da margem do Vouga, entrava-se por uma região selvática, só frequentada por caçadores de veados, corças, gamos e ursos, e por
salteadores que não raro desciam à estrada a espoliar e assassinar os
caminheiros. Para assegurar a defesa da terra e a assistência aos viandantes, a Rainha D. Teresa coutou a Gonçalo Eriz a vila chamada de
Osseloa, entre os limites da Terra de Santa Maria e os de Vouga, com a
condição de ele e seus descendentes proverem à manutenção de uma
albergaria.
A carta de couto, lavrada com as solenidades do estilo em Novembro de
11I7, «in terra Sancte Marie, ubi vocant Feira», é a certidão de
nascimento de Albergaria-a-Velha.
Em Abril de 1174, confirmou-a D. Afonso Henriques a Mendo Fernandes,
neto
de Gonçalo Eriz, e em 1258 o bispo de Coimbra D. Egas mandou-a trasladar
em pública-forma,
para que se não perdesse(2).
Não vem ao
nosso propósito extrair desse documento tudo o que interessa
à historia de Albergaria(3). Várias são as referências que nele se
fazem à «strada que currit de Portugal in directo de Petra de Aquila», situando-se uns lugares
acima e outros abaixo dessa estrada: a albergaria, fundada por
colaboração de D. Teresa e Gonçalo Eriz, ficaria
num lugar de «super strada». Alguns dos topónimos ainda
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48 /
subsistem e outros são de fácil identificação. O couto veio a constituir a freguesia,
o nome de Osseloa revive no lugar de Assilhó
e um dos padrões chegou até nossos dias no sítio em que primitivamente
se erigiu.
A poente, ia o termo do couto até à «Mamoa
nigra, que vocabatur arida»,
mencionada também em documento de 1298: «Que fossem na mamóa da par da
carreira de sobre Anzega, que chamam Mamóa negra» (Elucidário, Mamóa).
Fica este local a cerca de 6 quilómetros de Albergaria e 2 de Angeja, e
ainda é conhecido pelos nomes de Mamoa Negra ou Mamoa
da Areia. Guiado pelo onomástico, um investigador local encontrou restos
de outras mamoas no planalto de Albergaria: a mamoa das Arrotas, à
direita da estrada nacional do Porto a Lisboa, perto da povoação
de Açores, e as três mamoas do Taco, visitadas pelo Dr. LEITE DE
VASCONCELOS
(4).
Segundo o mesmo investigador, a Pedra de
Águia é o actual Bico do
Monte, belo miradouro perto do qual se erigiu em 1857 a ermida da
Senhora do Socorro. Ali terminam as colinas que vêm desde o Vale de
Cambra e acompanham a margem direita do Caima até à foz, uns 400 metros
acima de Sernada. Era esse decerto o monte chamado de Mesão Frio nos
documentos medievais(5). A própria carta do
couto fala na «Fonte fria, que antea vocabatur Fontanini de Meigonfrio»;
ordenando a pública-forma em 1258, o bispo D. Egas declara fazê-lo para
utilidade «Albergarie veteris de Meigonfrio».
Qual seria a origem desta designação, inteiramente obliterada na
toponímia actual? O notário de um documento de 1183 pretendeu
explicá-la pela grandeza do ermo: «monte qui propter heremi magnitudinem
vocatur mansio frigida». Sabemos, por documento de 1097, que mansio
era
sinónimo de albergaria (Dipl., n.º 847), e vimos que nas estradas
romanas havia paragens chamadas mansiones. Pode talvez concluir-se pela
sobrevivência onomástica de vetusto albergue existente junto à via
militar. D. Teresa, porventura sem o saber, fez uma simples
restauração.
Nada resta hoje da obra da Rainha, além da pedra que lembrava o seu nome
nas paredes do albergue. Pela descrição que se encontra no «Tombo do
Real Hospital de Albergaria-a- Velha»(6), vê-se que era em 1790 uma
casa pobríssima de mobiliário e utensílios; a inscrição, gravada em
pedra de Ançã na parede do norte, dizia: «Albergaria de
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49 / [Vol. IX -
n.º 33 -
1943]
pobres, e passageiros da Rainha Dona Thereja com quatro
camas, dois enxergoens, esteiras, lume, agoa, sal, fogo e cavalgaduras,
esmolas, e ovos, ou frangos aos doentes». O Dicionário Geográfico do P.e
Luís CARDOSO (1747) esclarecia que «a todo o passageiro pobre, que traz carta de guia, se lhe dá hum vintem de esmola, e sendo Clerigo, ou Frade meyo tostaõ, e vindo
doente se cura, e depois de estar saõ, se naõ pode ainda andar, se lhe dá cavalgadura atê à caza de
Misericordia mais visinha [...] e a todos os que nelle morrerem se dá
mortalha, e enterramento com officio de tres lições, e Missa, e mais
tres de Altar privilegiado; e para este Hospital pagaõ os moradores da
Freguesia certas pensões».
Albergaria a Velha está, assim, intimamente relacionada
por nome e história com a estrada romana e medieval. Para
não esquecer que deve os seus progressos às vias de comunicação, tem agora diante dos olhos o caso da Sernada,
«onde
actualmente podem admirar-se as grandes e apetrechadíssimas oficinas da
Companhia [dos Caminhos de Ferro do Vale do Vouga] − triste e quase
recôndito lugarejo de uma ou duas moradas antes de ali passar a
via-férrea e de aquelas instalações serem erguidas, no cruzamento da Linha de Aveiro com
a de Viseu»(7).
BRANCA
Como adiante se verá, guarda a freguesia dá Branca as
maiores probabilidades de possuir o jazigo da velha Talábriga. Andam na
sua onomástica várias lembranças arqueológicas e da passagem da estrada: lugares de Crestelo, Outeiro,
Mamoa, Estrada, Albergaria a Nova, etc. Domina o povoado a serra chamada
de S. Julião, onde por certo se erguia o castro de Abranka, mencionado
em documento do ano de 1088 (Dipl., n.º 708). Em 1758, o prior AMARO
MANUEL DE SOUSA informava que, segundo a tradição, existira ali a cidade
dos mouros chamada Langóbria da qual ainda havia restos de muralhas
cujas pedras o povo ia aproveitando(8).
MARQUES GOMES dizia por sua vez: «No alto da serra, há ainda vestígios
salientes de uma atalaia, que, ao que parece, ocupava
toda a circunferência do plaino, na extensão de uns trezentos
metros de comprido, de norte a sul, e cento e vinte de largo;
divisando-se ainda parte da vala, ou cava exterior, e da linha
do parapeito em toda a vala. Do lado do nascente, por detrás
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50 /
da serra, há uma saída e estrada larga pela encosta do monte abaixo, com
muros ou cortinas laterais de pedra e terraço(9). Desta serra de S.
Julião ou S. Gião recolheu Fr. Bernardo de Brito uma pedra com letras
«mal distinctas e muy quebradas», que supôs ser padrão de via romana (Mon.
Lus., lI, V, p. 3); apesar da desconfiança de HÜBNER, o Dr. FÉLIX
ALVES PEREIRA inclinava-se para admitir a autenticidade desse marco
miliário e declarava-o pelo menos «reabilitável».
A passagem da estrada pela Branca está assinalada na inquirição de D.
Afonso II, em 1220: «quantum laborauerint sub estrada». Nesta
inquirição, fala-se num lugar chamado Crastelo e noutro com o nome de
Albergaria de Castineyra. Parece-nos que este se poderá identificar com
a uilla castiniaria dum documento de 1097 (Dipl., n.º 845), e
corresponderá ao actual lugar de Albergaria a Nova. O que não sabemos é
se aqui existiria de facto outro albergue ou se tal designação é apenas
uma réplica de Albergaria a Velha.
PINHEIRO DA BEMPOSTA
Da passagem da estrada na freguesia do Pinheiro da Bemposta, outrora
chamada de Figueiredo, temos já indício no facto de aí serem assinados
documentos públicos. Lembramos, por exemplo, uma convenção entre os bispos D. Gonçalo de
Coimbra e D. Hugo do Porto, celebrada apud Fikeiredo, a 30 de Dezemhro
de 1114 (Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 240 v.). Nas inquirições de
D. Dinis em 1284, encontram-se várias disposições relativas aos géneros que no julgado de Figueiredo se deviam fornecer para sustento da
corte, «quando se veer EI Rey dalem Doyro [...] en quanto y
stever (L.
II de Inq. de D. Afonso 3.º, fl. 40).
Nos Anais do Município de Oliveira de Azeméis
(pág. 317), lê-se «que,
no lugar de Figueiredo-de-Baixo, próximo da antiga estrada romana,
existe uma casa e sítio a que ainda hoje chamam o Paço, e a distância de
cerca de 150 metros, outra casa que conserva ainda a designação de
Alcance, o que junto à circunstância de ser ainda conhecido o lugar por Figueiredo-de-Rei, faz supor que já ali tivesse a sua residência algum
rei da antiguidade, árabe». É o vulgar expediente de atribuir tudo aos
árabes. Foi nas inquirições de 1288 que encontrámos pela primeira vez
«Julgado de Figeyredo deI Rey». Como a igreja pertencia ao padroado
/
51 /
real e quase toda a terra era reguenga, talvez se dispensem
mais complicadas explicações. É natural que nesse Paço
tenham pousado muitos reis e rainhas de Portugal. Na vizinha freguesia
de Loureiro, esteve, por exemplo, el-rei
D. Afonso IlI, como consta de uma inquirição (Livro Preto
de Grijó, fl. 19). Supomos que os «paços do Curval» em que D. João I
esteve uns quinze dias retido por doença, em
Julho de 1387, ao regressar da sua peregrinação a Santa Maria da
Oliveira, eram precisamente no lugar do Curval,
do Pinheiro da Bemposta.
TRAVANCA
Pertenceu ao julgado de Figueiredo a freguesia de S. Martinho de Travanca onde existiu a
honra de Baesteyros (Besteiros) em que estavam incluídos alguns lugares da vizinha
freguesia de Palmaz. Lá encontraram menção de um castro
os inquiridores de 1274:
«Item disserom que ha y huum crasto que chamam da Damundi em essa honra
e trage o El rrey aa ssa maão» (Livro
Preto de Grijó, fl. 19).
Existem actualmente os lugares chamados de Damonde
(de Baixo e de Cima) e outro com o nome de Cale que
lembra talvez uma via de comunicação, afluente da estrada principal.
UL
Tem esta freguesia a sorte de apresentar reunidos quase
todos os elementos que até aqui nos indiciaram a passagem da via militar
romana; os que porventura lhe faltem, são amplamente supridos por achados arqueológicos de especial
valia. O onomástico local oferece, entre outras menos claras, as designações de
Rua Direita e de Crasto. Mais uma vez
se comprova documentalmente o acordo da toponímia e da
história.
Tendo visitado esta povoação em 1909, JOSÉ FORTES
escreveu a respeito do castro: «Povoação extinta duma
cronologia imprecisa, mas circunscrita aos tempos proto-históricos e lusitano-romanos, ainda hoje por ali afloram,
nos declives vertiginosos das encostas e nos sedimentos dos
patamares, bastos restos cerâmicas, pedras afeiçoadas e
envasamentos de paredes − a carcassa, enfim, deformada e
pulverizada dum antigo oppido, que, como os similares
difusamente semeados pelas cumeeiras das colinas e dos
/
52 /
montes do Norte, foi barreira diuturnamente embaraçosa
para a penetração das legiões romanas»(10).
Arruinou-se, pelo decurso dos séculos, todo o valor
militar desse castro, mas ainda no princípio da Monarquia se lhe
respeitava o local, propriedade da coroa. Em 1284,
el-rei D. Dinis mandou delimitar-lhe os termos, para ceder
o terreno por aforamento a quem o cultivasse. Transcrevemos a seguir os respectivos documentos:
Carta daueença antre Steuam Lourenço e Martim Esteuez
clerigo del Rey sobrelos termhos de Crasto de UI.
Conhoscam todos os que este strumento uirem que em presença
de mim Steuam Pirez tabelliom deI Rey em termho de terra de Sancta
Maria. Steuam Lourenço clerigo deI Rey e Martim Steues Abade de Sancta
Maria de UI aueeron sse soblos termhos do Crasto de UI em D.º Paez que foy juiz da Ffeyra e em
P.º Paez Cidacos que eles partissem os termhos do dicto Crasto per u eles entendessem que seeria guisado e o dicto Abade e Steuam Lurenço prometerom a boa fe a atender e
aa estar ao que eles dissessem. E eles derom por termho do Crasto toda a
carcaua ou grata de lo Ryo de Bitoàà hu sta huma aueleeira e
uem sse a huma morouça que esta em defeito dessa grata como sse uay
pela spiga dessa grata ou carcaua per a par da herdade da Eigreia e
uay ferir pela spiga e pelo dereito dessa carcaua e uay aá carreyra
que uem da Eigreia e da vila pera esse Crasto sempre pela spiga ata
o Ryo de UI e dereito dela dicta spiga... termho do dicto Crasto com
todas sas pertenças e o dicto Abade e Steuam Lourenço outorgaron
no e puge lhis com aquele partimento que os dictos omens fezeron e
outorgaron no outrossi Aquesto for dous dias de Julho da E.ª M.ª C C C.ª
XXIj.ª −. Testemunhas Martim Uiuas Martim Iohannis Scudeiro.
Martim Domingues de UI e outros muytos. Eu Tabelliom de ssuso dicto a
estas cousas presente foy e a rrogo de Steuam Lourenço este stromento com mha mão propria screui e meu sinal y pugi que
tal he. (Chancelaria de D. Dinis, liv. 1.º, fl. 103).
Carta de foro de .lIJ. casaaes que iazem en Crasto dul.
Dionisius dei gratia Rex Portugaliae et AIgarbij vniuerssis presentem cartam inspecturis notum facio quod ego concedo Martino
Dominici de UI quod ipse faciat tria casalia in crasto dul et ipse et
sui
successores habeant ipsa casalia pro ad senper et populent et laborent
et fructificent ea et debent mihi dare et omnibus meis successoribus
quintam partem de pane et de uino et de lino et de omnibus alijs frutibus que Deus ibi dederit et debent ibi facere vineam et postquam
vinea dederit lIJ modios uinj debet dare unam quintam pro direitura
et debent dare pro direitura de dictis tribus casalibus unum quartarium tritici et unum quintarium milij et unum quintarium de
messe et
quinque galinas et unum cabritum et decem et outo denarios pro caseo
et debent tenere dicta casalia bene populata per IIJ annos cum vacis
et cum ganatis et cum bobos et cum manutenencia de casa et cum
bonis tribus uigarijs et debet ibi facere domos et dare quindecim
solidos
de renda et cum morj contigerit aliquis de ditis jugarijs debent dare
/
53 /
pro luitosa pro quolibet uigaria quinquaginta solidos. Et ad omnia
predicta et singula faciendum et complendum ditus Martinus Dominici
obligauit corpus et honorem Et ipse nec sui sucessores non debent
vendere nec donare nec enprazare. nec cambiare nec aliquo modo alienare
dicta casalia ordini nec militi nec clerico nec domne nec scutifero nec
alii persone potenti. sed tali omini qui mihi et meis sucessoribus
predictos foros et direituras faciat annuatim. ln cujus rey
testimonium do inde sibi istam cartam Datam Ulixboñ. XVIIJº dias Julij
Rege mandante per Cancellarium D.º Guillelmj notuit E.ª M.ª CCC.ª XXlJª.
(Chancelaria de D. Dinis, liv. 1.º, fl. 106 v.).
Da época romana, apareceram em Ul várias inscrições
lapidares. A mais importante é a que se encontrou num cipo, exumado em
1790 dos alicerces da antiga igreja paroquial e conservado agora em
Oliveira de Azeméis. «Trata-se,
escreveu JOSÉ FORTES, nada menos do que de um miliário inédito,
seguramente da via militar romana de Aeminium (Coimbra) a Cale (Gaia»... «Ele constitui o primeiro documento autêntico, a primária prova
material de que a via militar descia de Cale para Aeminium cortando
pelo interior a servir os numerosos castros da região».
A leitura, segundo o ilustre epigrafista, é a seguinte:
TIB. CAESAR. DIVI. AVG.
FILIVS. AVGVSTVS
PONTIFEX. MAXVM
TRIB. POTESTAT. XXV
XII
«É, pois, o marco da milha XII da estrada: a, contar de Langobriga ou de
Talabriga? Infelizmente, o miliário,
como muitos, é mudo a este respeito. Conjecturamos, entanto, que media
a distância para a primeira daquelas estações, mencionadas no Itinerário
como intermediárias entre Coimbra e Gaia» (Anais cit., págs. 349-350).
OLIVEIRA DE AZEMÉIS
O actual concelho de Oliveira de Azeméis é região privilegiada de
castros. Apesar de nunca se terem feito explorações em forma, abundam os achados arqueológicos. E a toponímia não
engana. Limitamo-nos, todavia, a atentar nos povoados mais próximos da
velha estrada.
A nascente da vila, a capela de N. Senhora de La-Salette coroa agora o
outeiro que se chamava do Crasto. No lugar de Lações, há memória de
antigo edifício chamado o Castelo, e haveria em meados do século XVIII
outros vestígios de remoto povoado, que levaram o abade Dr. MANUEL DE
/
54 /
OLIVEIRA FERREIRA a escrever um trabalho, hoje desconhecido, intitulado:
«Verdadeira antiga Lancobriga no lugar de Laçoens da Freguesia de
Oliveira de Azemeis» (D. B. MACHADO, Biblioteca Lusitana, voI. III, 2.ª
ed., pág. 324).
Na vizinha freguesia de Madail, existe um monte do Castro, no sítio de
Vila-Cova. E, mais. para Ocidente, na freguesia de S. Martinho da Gandra,
temos os lugares do Crasto e do Troncal onde se recolheram tégulas e mós
da época romana, de que se guardam alguns exemplares no museu de
Cucujães.
Surge agora um problema de
solução difícil: o da situação do Castrum
Recaredi, tomado como ponto de referência em muitos documentos
medievais. Difícil, porque se obliterou o topónimo Recarei e porque os
documentos lhe referem povoações algo distantes, como Fermelã (Dipl.,
n.º 557),
Loureiro (n.ºs 167 e 845), Válega (n.º 187), Ovar (n.º 261). Parece,
contudo, que deverá procurar-se no monte que, segundo elucida o rev. P.e JOÃO DOMINGUES AREDE, começa
no lugar do Castro em S. Martinho da Gandra e vai acabar na Mamoa onde
foi construída em 1367 a ermida de Santo Estêvão, próximo de Adoufe na
Arrifana, atravessando todo o centro da freguesia de Cucujães e parte de
S. João da Madeira (J. D. AREDE, Cucujães e Mosteiro com seu Couto nos
Tempos Medievais e Modernos, pág. 2). São dominadas por este monte a
maior parte das povoações referidas ao Castrum Recaredi em numerosos
documentos não incluídos na colecção Dipl. et Ch. Citaremos, entre
outros, os seguintes: carta de couto, dada ao mosteiro de Cucujães a 7
de Julho de 1139, em que se diz que ele é situado «in loco qui vocatur
Cucugianes sob monte castro Recharei»; contrato de propriedades em
Souto, S. Vicente de Pereira e S. Martinho, situadas «sub montem qui
dicitur Castrum Recaredi» (Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 206); na
Agoncida (Mosteirô) «subtus monte castro recarei» (Baio Ferrado, fIs.
104 v., 105 e 105 v.); em Maçada (S. Martinho) «sub monte castro recarei»
(Ms. 736 da B. N. de Lisboa. Fundo geral, fls; 322, v. e 323; Tombo do
Mosteiro de Grijó, 6, fl. 312 v.); na Ínsua (S. Martinho) «subtus monte
castro recarei discurrente riuulo ualega» (Baio Ferrado, fl. 79 v.); em
Azevedo (S. Vicente) «subtus castro recarei» (Baio Ferrado, fl. 100).
Este mesmo lugar de Azevedo, em documento do ano de 1145, é referido à
estrada, embora lhe ficasse um pouco distante: «in uilla dicta azeuedo
subtus illam stratam mauriscam» (Baio Ferrado, n. 99 v.). Em face de toda a documentação,
parece-nos que não andam longe da verdade os que identificam o Castrum
Recaredi com o próprio Castro de S. Martinho da Gandra.
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55 /
COUTO DE CUCUJÃES
No monte a que acima nos referimos e que forma, por assim dizer, a
espinha dorsal da freguesia de Cucujães, o
rev. P.e Arede assinalou, só dentro desta freguesia, a existência de quatro mamoas. Na vizinha freguesia de
S. Tiago de Riba Ul, há também um lugar denominado do Crasto.
O mais importante, porém, é o encontrarem-se ali, próximo da povoação de
Bráfemes, vestígios da antiquíssima estrada.
Assim o afirma o mesmo ilustre investigador que nos dá,
para mais, o traçado conjectural até à Arrifana. Vinda de
S. Tiago, a estrada atravessava em Cucujães o lugar da Pica,
seguia ao de Faria de Cima, avançava por S. João da Madeira
e continuava em direcção à capela de Santo António da Arrifana, a nascente da actual igreja matriz desta freguesia
(Cucujães e Mosteiro cit., pág. 145). No lugar da Pica,
transpunha o rio Ul em ponte romana (?) que ainda existe e
cuja gravura pode ver-se em outro trabalho do mesmo autor
(Museu Arqueológico e Etnológico de Cucujães, pág. 2).
S. JOÃO DA MADEIRA
A propósito do lugar de Azevedo (S. Vicente de Pereira),
deparou-se-nos a primeira menção de «estrada mourisca» em
documento de Grijó. Como iremos agora encontrar frequentes alusões a essa estrada, convém precisar o sentido
de tal designação.
É bem conhecida a explicação dada por VITERBO: «Chamou-se
Estrada
Mourisca, porque os Mouros a romperam, deixando, talvez já por invadiável naquele tempo,
a Estrada Romana, ou Via Militar...» ...«Com o rodar
dos anos a costa se entupiu, e alteou por causa das areias,
e os rios estagnados não só esterilizaram os campos, mas
também fecharam a passagem dos caminhos. Daqui se fez
indispensável a presente Estrada Mourisca...»
Ninguém sabe onde o autor do
Elucidário colheu notícia de semelhante catástrofe, mas é fora de dúvida que ele
se equivocou distinguindo o traçado da via romana do da
estrada mourisca. Por um lado, não consta que os Mouros
se ocupassem em trabalhos deste género e, por outro, não
se compreende que se abalançassem a obra tão arrojada sem
terem ao norte o domínio de um núcleo importante de população sua, com o qual fosse indispensável manter ligações.
Ainda que pudesse relacionar-se com eles uma «porta mourisca»
/
56 /
em Coimbra (RUI DE AZEVEDO, Documentos falsos de Santa Cruz de
Coimbra, pág. 78), dificilmente se lhes poderia atribuir uma «carraria maurisca» que um documento de 953
nos dá para os lados de Vila do Conde, em território onde se não
exerceu por muito tempo a ocupação muçulmana (Dipl., n.º 67). Qualquer
que seja a explicação do nome, a estrada que nesta região se chamava mourisca era a própria
via romana.
Passava essa estrada junto à antiga igreja de S. João da Madeira,
pois um documento de 1088 fala num casal «quomodo conclude per illa strata
de iusta illa ecclesia de sancti ioanni a parte ur» (Dipl., n.º 704); dá-lhe a designação de
mourisca um documento de 1142 que situa uma herdade
na mesma freguesia desde «illa strada mourisca ata illo ueneiro» (T. do
T., Col. especial, c. 52, m. 5, n.º 79).
ARRIFANA
Aparece esta freguesia com o nome de
parochia de
Manoci nas inquirições de D. Afonso III. O topónimo sobrevive no lugar
de Manhouce, que sucedeu a uma antiga
vila maniozi mencionada com scapanes (Escapães) em documento de 1053 (Dipl.,
n.º 385). O lugar da Rua dá-nos a sugestão do agrupamento de casas à
margem de uma estrada. A tradição oral e escrita leva-nos para a via
romana. Deixaram memória da sua passagem pela Arrifana, a caminho de
Compostela, a rainha Santa Isabel e o rei D. Manuel I.
Lê-se no Dicionário Geográfico
do P.e LUÍS CARDOSO, art. Arrifana de
Santa Maria: «As cousas notaveis da terra são o passar por ella em
romaria a Santiago de Galliza a Rainha Santa Isabel; e estando em huma
casa, que servia de estalagem, dar vista a huma cega, e de huma laranja
azeda que comeo cahindo huma pevide no chão, de que nasceo huma
larangeira, e nas laranjas que dava, se divisava no mesmo pomo junto ao
pé a fórma das cinco quinas das Armas de Portugal, e conservaõ hoje em
hUma folha na mesma larangeira».
D. Manuel fez a romagem de Compostela em 1502.
À ida, esteve no
castelo da Feira, a 25 de Outubro (T. do T.,
Gaveta 10, m. 12, n.º 16); no regresso, deteve-se na Arrifana onde
assinou, a 5 de Dezembro, uma carta relativa à construção da igreja
matriz de Vila do Conde (extrato do doc.
em Vila do Conde e seu Alfós, por Monsenhor J. AUGUSTO FERREIRA).
A casa que, em tempo de Santa Isabel, «servia de estalagem», era
naturalmente uma albergaria. Nos séculos XVII
/
57 /
e XVIII ainda se fala em um hospital-albergue com sua capela, então
existentes na Rua. Tudo isso desapareceu, mas bem perto ergue-se hoje a
capela de N. Senhora do Ó, quase em frente da casa onde viveu a chamada
Santinha da Arrifana (Terras da Feira − Notícias e Memórias da Freguesia
da Arrifana de Santa Maria, por SAUL EDUARDO REBELO VALENTE, págs. 41
e segs.).
SOUTO REDONDO − S. JOÃO DE VER
Da Arrifana a estrada actual dirige-se para Souto Redondo,
sem tocar na Vila da Feira. Era este também o traçado do século XVIII,
como sabemos pelos roteiros. Devia, porém,
existir, desde velhos tempos, qualquer desvio para servir a cividade,
castro ou ópido, que antecedeu o castelo, e a feira já estabelecida em
princípios do século XII e que deu o nome à vila. Seria até essa via de
comunicação, em cruzamento
com outras, que determinaria a escolha dos subúrbios do castelo para o
encontro comercial dos povos de Santa Maria. Os topónimos Estrada Velha
e Rua postulam essas antigas artérias na Vila da Feira; por lhe passar
desviada a nascente a estrada principal, é que tão pouco se tem
desenvolvido a sede de tão importante concelho.
Souto Redondo é lugar pertencente às freguesias de S. Jorge de CaldeIas
e S. João de Ver. Em documentos
medievais, aparece um monte deste nome a servir de referência para
diversas propriedades: «:subtus mons sauto rodondo» ficavam, além de
outras, as vilas de S. J oão de Ver (Dipl., n.º I; Doc. Med. Port., pág.
359). Caldelas (Dipl., n.º 851) e Lourosa (Elucidário, v. Tempreiros).
Não se nos depara aqui alusão a castro ou estrada mourisca, mas convém
fixar desde já este local pelo motivo que adiante se dirá.
A estrada volta a aparecer-nos ainda em S
João de Ver.
Um documento datado de 23 de Junho de 1101 situa uma vila
chamada Casal de Taulfo «inter Gueifar et Casal de Patre et de alia
parte inter Lauandeira et illa strata maurisca sub illas mamolas de Uillela)
(Doc. Med. Port., pág. 25). Os organizadores da colecção em que se
encontra este documento identificaram Casal de Taulfo com Adoufe.
Todavia, Gueifar e Lavandeira são lugares de S. João de Ver, onde aliás
existe o de Gondufe (com o mesmo elemento ufe) e o de Albergfaria a
assinalar a estrada.
/
58 /
FIÃES − LOUROSA −MOZELOS
Prosseguindo viagem, tocamos em Fiães, freguesia possuidora de um
castro onde se têm feito achados arqueológicos de certa importância.
Informa o rev. P.e MANUEL F. DE SÁ, na sua monografia Santa Maria de
Fiães, que a estrada romana, de que restam alguns troços, passava pelos
actuais lugares de Ferradal e Vendas-Novas, chamado também este
vulgarmente Estrada-Velha.
O Dr. FÉLIX ALVES PEREIRA previu a localização de
Lancóbrigra em qualquer dos castros situados por esta zona, sem se decidir
positivamente pelo de Santa Maria de Fiães. O espólio até agora encontrado permite, no entanto, aos investigadores desta freguesia
alimentarem boas esperanças.
Os documentos são mudos a respeito da estrada, tanto aqui como na
vizinha Lourosa onde, por sua vez, se nos deparam os lugares de
Vendas Novas e Vendas de Baixo.
Mozelos é mais feliz. Já em documento de 1097 se fala numa herdade
situada «in uilla dicta moazelus... subtus monte saitella discurrente
strata ad portum asinarium riuulo maior» (Dipl., n.º 867). Em documento
de 1155, aparece-nos outra herdade compreendida «infra hos terminus»:
«ad horientem strata maurisca, ad occidentem moazelus et sagitella, ad
aquilonem luiuanes et clauiano, ad affricum laurusela... subtus monte
auturelo, discurrente riu maior, prope castellum sancte marie» (Baio
Ferrado, fl. 86 v.). Quem conhecer bem a topografia local, ainda hoje
poderá identificar a propriedade. Murado e Seitela são lugares de
Mozelos; Lourosela é de Lourosa. No monte Seitela ou no Murado, aparecem
também despojos castrenses.
ARGONCILHE
A última freguesia do concelho da Feira que nos interessa ao caso é S. Martinho de Argoncilhe. Muito ligada a Grijó, tem no cartório deste
mosteiro, hoje na Torre do
Tombo, importantíssimo espólio, à espera da devoção de algum
bairrista. Com referências à estrada, podem, apontar-se, entre outros,
os seguintes passos documentais:
Ano de 1091 − propriedades «in uilla draguncelli subtus monte de
pena discurrente riuulo feuerus territorio portugal
super illam stratam» (Dipl., n.º 756).
Ano de 1096 − «in uilla dicta eldiriz subtus
monturelo... in terra
ciuitatis sancte marie super stratam» (Dipl., n.º 842).
/
59 /
Ano de 1101 − «in Resmaa subtus monte Ordoni... et
est super illam stratam» (Doc. Med. Port., pág. 42).
Ano de 1102 − «in uilla Dragoncelli subtus monte Saxo.
Albo... super illam stratam» (Doc. Med. Port., pág. 66).
Ano de 1109 Doe. «in uilla Ramiri et Ordoni et in Petri et
in casal d Aluella subtus monte Ordoni... super illa strada» (Doc. Med. Port.,
pág. 303).
Ano de 1141 Doe. «in uilla ramir subtus monte rotundo discurrente riuulo feuerus super illam stratam et subtus eamdem
stratam mauriscam prope littus marinus sub castello sancte
marie» (Baio Ferrado, fl. 68 v.).
Temos aqui mencionados, ao lado de topónimos que se
obliteraram, os lugares de Aldriz, Ramil e Ordonhe, ainda
existentes; e não faltam agora os costumados indiciadores:
Vendas de Grijó e Vendas de Pereira.
CONCELHO DE GAlA
Ao entrarmos por Seixezelo no concelho de Vila Nova de Gaia, já devemos ter ultrapassado o limite da possível
localização de Lancóbriga. Daqui por diante, está o assunto
estudado modernamente pelo sr. Dr. ARMANDO DE MATOS,
em artigo publicado no voI. XXIV da Brotéria, com o título
de «As estradas romanas no concelho de Gaia». O recurso
aos documentos só confirma as conclusões daquele distinto
investigador, pois indica a existência de várias estradas antigas que os
notários, às vezes, distinguiam da estrada maior
ou mourisca, que temos seguido.
Referidas a Grijó, encontramos algumas menções interessantes. Um documento do ano de 995 fala numa herdade
«in uilla cereseto... quomo se leua de riu que discurrit de
eglesiola et figet se in strata ueredaria que discurrit de portugal et torna pro alia
carrale que discuret ad eglesiola»
(Dipl. n.º 174; cf. ibid., n.º 328).
É bem conhecido o documento de
1148, citado por VITERBO,
sobre uma herdade «in uilla buruntanes et in sancto felice subter
illam stratam mauriscam discurrente riuulo cerzedo»
(Baio Ferrado, fl. 18). Vários outros se lhe podem juntar;
por ex.: «subtus monte petroso castro discurrente riuulo
cerzedo qui descendit ad mare territorio portugalensi in terra
de sancta maria de ciuitate sub illa strata in uilla brito»
(ano 1112; Baio Ferrado, fl. 94); «in ecclesiola in loco qui
dicitur casal de arias subtus monte outurelo... territorio
portugalensi in terra sancte marie ciuitatis sub illa strata»
(ano 1117; Baio Ferrado, fl. 61 v.). A «uilla billanes...
discurrente riuulo cerzedo» ficava também «sub illa strata»
(Dipl., n.º 675).
/
60 /
Em Pedroso, aparece-nos para
exemplo uma propriedade
na vila Paradela, «et deuidit ipsa uilla qum sexo aluuo a parte mare strata maiore et alia parte inter
acisteria petroso» (ano 1078; Dipl., n.º 563). A doação feita em
1098 ao mosteiro por
Gonçalo Viegas e sua mulher Adosinda abrangia
herdades «siue super strada comodo subtus illa strada» (Dipl.,
n.º 870).
Enfim... Desde o rio Vouga até à vista do Douro, pudemos fazer
quase
todo o percurso da velha estrada, guiados por documentos. Bem merecem aqueles Romanos, que
a construíram, a justa homenagem de não os confundirmos
com os Mouros. Mas quantos outros caminhos não teriam
eles aberto ou aplanado entre essa estrada e o mar!
Porque interessa à história das vias de comunicação, terminemos esta jornada com mais um documento curioso.
Encontra-se no Livro Preto de Grijó, fl. 4 v., com a rubrica «Sobre o
caminho deffeso de Egrijoo pera o Porto», e reza
assim:
«Dom Fernando pela graça de Deus Rey de Portugal e
do Algarue A uos Jujzes de Gaya e a todalas outras nossas
Justiças que esta carta virdes saude sabede que o priol e
conuento do Moesteiro de Egrijoo nos enviarom dizer que aas
vezes aconteçe que chegam alguuns fidalgos e outros poderosos e outras
pessoas per o dicto seu Moesteiro per ahi auer de comer e que chegam a
tempos que no dicto moesteiro nom ha o que lhes compre pera o mantjmento que cada
huum ha dauer e que enuyam ao Porto por esso que lhe pera ello compre E que porque ha do dicto moesteiro pera
a dicta cidade do Porto huum caminho que vay sahir a ujlla noua dapar
desse logar. que he mais preto que o que uay per
esse logar de Gaya o qual caminho he deffeso. que enuiam
per o dicto caminho esses que aa dicta Cidade enuyam por
aquello que lhes assy compre. por hirem e vijrem por el mais
asjnha. E enuyam ao dicto logar de Gaya pagar a portagem
e outros defeitos dalgũas cousas se as aa dicta Cidade leuam
esses que assy enuyam a ella polo que lhes compre E esso
meesmo dessas cousas que da dicta Cidade tragem pera o
dicto Moesteiro. E que nom embargando que desso que
assy leuam e tragem pera o dicto moesteiro pagam ou mandom pagar ao dicto logar de Gaya os dereitos que sse dello
am de pagar que uos e os portageiros e alcaydes cooymades
esses que do dicto Moesteiro uaão e ueem pera el da dicta
Cidade pello dicto caminho defeso E lhes fazedes perder esso
que assy per elle leuam ou tragem e os prendem e leuam
deles cooymas E enujaron nos pedir sobrello merçee E nos
/
61 /
veendo o que nos sobrello pedir enuyarom e querendo lhe fazer graça e
merçee. Teemos por bem e mandamos que quallquer que do dicto Moesteiro
for enuyado aa dicta Cidade por cousa que pera o dicto Moesteiro e
mantijmento deI e dos que per el chegam for compridoyro que possa hir e vijnr per o dicto camjnho deffeso sem embargo de nenhũa deffesa que
sobrelo seja facta. com tanto que do que leuarou trouuer o que do dicto
Moesteiro for de que ouuer de pagar alguum dereito no dicto logo de Gaya
que o pague logo em esse logo ou mande pagar aaquel ou aaquelles que
esses dereitos ouuerem de ueer e rreçadar E em outra gujsa
mandamos que lhe nom seja facto nenhum desagujsado. Hunde aI nom façades
dante em Sintra xxij dias dagosto Ell rrey o mandou per aluaro gllz seu vassalo e corregedor em sua corte
Affonsso pirez a fez Era de Mill e quatrocentos e xbij anos» (22 Ag.
1379).
TALÁBRIGA E LANCÓBRIGA
A conclusão lógica deste breve estudo seria a fixação das estações de
Talábriga e Lancóbriga. Mas quem se atreverá a fazê-lo?
Tomando como base a contagem das milhas pelo Itinerário de Antonino, iríamos procurar Talábriga nas proximidades de
Albergaria a Nova, no extremo do planalto que
começa em Albergaria a Velha, onde se atinge a cota 154; e Lancóbriga
precisamente em Souto Redondo, onde hoje se cruza com a nacional a
estrada que vai da Vila da Feira para as Caldas de S. Jorge. Não vale a
pena desenvoIver os cálculos que levam a este resultado, tão falíveis
eles se nos afiguram. É preferível considerar o problema no estado em
que o deixou o autor da Situação Conjectural de Talabriga e aguardar o
veredicto dos arqueólogos.
Da história de ambas as povoações não se sabe absolutamente nada.
É
verdade que, ao descrever as campanhas de Décimo Júnio Bruto no Ocidente
peninsular, APlANO ALEXANDRINO refere um episódio ocorrido no ópido de Talábriga. Julgaram
bons autores, e entre eles, F. ALVES PEREIRA, que se tratava da
Talábriga do Vouga. Pareceu-nos, porém, que esse episódio devia deslocar-se
para um ópido de igual nome nas margens de Lima, onde aliás apareceu uma
ara romana
ofertada por uma «talabrigense» (Arquivo do Distrito de Aveiro, voI.
IV, pág. 117-120). Concordaram com este parecer os srs. Drs. ARlSTlDES
DE AMORIM GIRÃO E ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL.
Quanto a Lancóbriga, escreveu o Dr. AGUIAR
CARDOSO, que seria «de
fundação céltica, engrandecida pelos romanos...
/
62 / e depois arrasada pelos bárbaros do norte»,
e que lhe teria sucedido a «Civítas Sanctae Mariae de fundação gótica, depois assolada pelos
mouros, e mais tarde reconstituída
pelos neo-godos; por fim Vila da Feira» (Terra de Santa Maria
− Civitas
Sanctae Mariae, pág. 22, Coimbra, 1929).
Nada disto pertence ao domínio da história, porque não pode provar-se
documentalmente. De positivo, sabe-se apenas o nome da estação,
registado no Itinerário e na chamada Tabula Peutingeriana, agora reproduzida na
Historia de España dirigida
por R. MENENDEZ PIDAL (tomo lI, Madrid 1935).
Se nos apraz fantasiar um pouco, mais vale reconstituir os sucessos
que se terão desenrolado por essa estrada desde que ela veio substituir
um antigo caminho ibérico ladeado de santuários pagãos;
imaginar como ela serviu para a difusão do Evangelho, para a conquista
dos Suevos, para as incursões muçulmanas, para o avanço da Reconquista,
para as peregrinações a Santiago, para as invasões francesas...
Sem a estrada romana, seria decerto muito diferente o curso da história nesta faixa ocidental da Península em que se talhou o
território de Portugal.
*
Depois de escrito este trabalho, vemos nos jornais o sumário de uma
comunicação apresentada pelo Sr. Tenente-Coronel COSTA VEIGA, na
Associação dos Arqueólogos Portugueses, «sobre o problema da localização
de Langóbriga e Talábriga, estações da via romana de Emínio (Coimbra) a
Cale ou Cálem (Porto ou Gaia)». Importa arquivar aqui as conclusões a
que chegou esse ilustre investigador, justamente considerado um dos
nossos mais eruditos medievalistas. E apraz-nos verificar que não se
afastam muito do que expusemos.
«Começando por manifestar discordância com o método seguido em 1907
pelo falecido Dr. ALVES PEREIRA, aliás distintíssimo arqueólogo, na
determinação geográfica das referidas estações, salientou depois os seguintes pontos:
1.º − Que a extensão da
citada via romana nunca pode ter sido a de 71
milhas ou sejam 105 km., indicada no ltinerarium de Antonino, e isso pela
simples razão de que a própria distância em linha recta, e no plano
horizontal, entre os observatórios de Coimbra e da Serra do Pilar,
atinge 104,5 km.
2.º − Que sendo, por outro lado, de 115 km. a distância do Porto a Coimbra pela estrada 'nacional
n.º 10, o percurso pela via romana regularia, provavelmente, por 110 km., isto é, mais 3 milhas que as referidas no
Itinerarium.
/
63 /
3.º − Que o erro, por defeito,
de 8 milhas, que o ltinerarium certamente tem, se deve imputar a um lapso de
cópia − XIII milhas por XVI milhas − no troço de Cálem a Langóbriga,
lapso esse vulgar em apógrafos medievais, pela
facilidade da troca de II por V.
4.º − Que, correndo com o curvímetro pelo traçado provável da via romana
− Coimbra, Fornos, Sargento-Mor,
Mealhada, Aguim, Mogofores, Avelãs do Caminho, Aguada de Baixo, Sardão,
Águeda, Vouga, Albergaria a Velha,
Albergaria a Nova, Pinheiro, UI, Oliveira de Azeméis, Arrifana, Souto Redondo, Vendas de Grijó, Richosa, Serpente e Gaia
− se vê
que as estações de Talábriga (40 milhas ou
59 km. de Coimbra) e Langóbriga (18 milhas ou 27 km. de
Talábriga) se devem ter localizado, respectivamente, no sopé
do Monte da Senhora do Socorro, sobranceiro ao Calma, e 1 a 2 km. a S.
de Souto Redondo. Quanto à estação de Cale ou Cálem, a 16 milhas ou 24
km. de Langóbriga, parece impossível defini-la precisamente no Porto ou em Gaia; todavia, certa referência de EDRICI à alcaria
nova de Gaia reforça
a hipótese do sr. Professor MENDES CORREIA, de que a mesma
estação se localizaria na margem direita do Douro».
TERRA DE SANTA MARIA
Grande parte da região que
nós agora percorremos, foi
chamada desde antigos tempos Terra de Santa Maria. Ainda
constitui problema histórico o saber-se de onde lhe veio esta
designação. «Seria da invocação de um templo? Seria da
devoção de um conquistador? Seria da doação de terras a
algum instituto dedicado à Virgem? Estaria esse nome ligado
especialmente a algum povoado ?» (Cf. Arquivo do Distrito
de Aveiro, VII, 66-68).
Como lhe veio provavelmente pela velha estrada, justifica-se talvez este excurso. Demais, o problema não é tão
insignificante como parece. Quem sabe se não procedeu
daqui, por devota ampliação, a ideia de chamar a Portugal
inteiro «Terra de Santa Maria»? E também não é tão fácil
como pode afigurar-se a quem aceite sem reserva o que escreveram antigos cronistas, ou tome por aquisição definitiva
qualquer devaneio de fantasia.
Conhecendo regularmente a documentação medieval
publicada, e boa parte da inédita, sobre a Terra de Santa
Maria, nela temos procurado, sempre em vão, a solução
desse problema. Não é com a pretensão de a ter encontrado
agora, mas só com o intuito de atalhar alguma apressada
conclusão, que vamos sugerir nova hipótese, baseada na aproximação de factos, datas e nomes.
/
64 /
Segundo as Crónicas da Reconquista, os cristãos das Astúrias
reconheceram-se especialmente protegidos pela Virgem Maria, logo desde
Covadonga, Pelágio ter-se-ia refugiado na Cova de Santa Maria, no monte Auseva, é o lugar da primeira batalha ficaria assinalado com um
santuário em honra da Mãe de Deus. Essa devoção desenvolveu-se pelo
decurso do tempo, com a atribuição de novas vitórias ao favor da Virgem.
Firmada a posse das Astúrias, pensaram os monarcas em libertar de
sarracenos a Galiza. No ano de 753, Afonso I, ajudado por seu irmão
Fruela, percorreu em sentido inverso o itinerário seguido por Abdelaziz
em 716 e desceu até Viseu e Águeda (Chronicon Sebastiani, n.º 13). Não
pôde, todavia, consolidar a posse de tão largo território; a linha
fronteiriça ficou pelo rio Minho. Só no reinado de Afonso III, pelo ano
de 876, o domínio dos cristãos se estendeu para sul do Douro, sendo por
eles repovoadas as cidades de Braga, Porto, Coimbra, Viseu e Lamego (Chronicon Albeldense,
n.º 62). É
depois dessa data que aparecem documentos da nossa região, com
referências a mosteiros e igrejas.
Uma das principais empresas de Afonso
I foi a tomada e repovoamento da
cidade de Lugo, pelo ano de 745. Nela colaborou activamente o bispo
Odoário, que tomou a seu cargo a organização da vida civil e religiosa
do território libertado. O primeiro cuidado deste bispo foi restaurar a
catedral, sob a invocação de Santa Maria, mas logo providenciou ao
estabelecimento de núcleos cristãos em redor da cidade, distribuindo
terras pelos seus familiares.
Os testamentos de Odoário fazem-nos assistir ao nascimento de vários povoados. A um sobrinho chamado Marcos doou ele uma
vila que ficou com o nome de VilIamarci; Avezano deu nome à vilIa
Avezani, Guntino à vilIa Guntini, Provecendo à vilIa Provecendi,
Sendo à villa Sendoni, etc. O povoamento foi-se alargando, e em breve estavam
estabelecidas vilas com suas igrejas por um grande território em que se
incluíam, com nomes de particular interesse para nós, Riva Uliae e
ValIe
Uriae.
Nas doações de terras e na fundação de igrejas, costumava o bispo
reservar para a Catedral e para Santa Maria
os direitos que lhe pertencessem e, num dos documentos,
fazia esta consagração de pessoa e bens à Virgem Santíssima:
«O Gloriosa Virgo Dei Maria, in cujus [honore?] Sancta nitet Ecclesia,
intercede pro me ad Dominum Deum tuum... et hec munera jubeas tibi
acceptari digne, una cum quantum tentaverit ganare, et aplicare de undique partibus in omni
vitae meae» (España Sagrada, XL, págs. 364-367).
Atribui-se ao mesmo bispo Octoário uma tentativa semelhante
de restauração em Braga, mas os documentos são
/
65 /
[Vol. IX
- n.º 33 - 1943]
pouco seguros(11).
O certo é que, em 27 de Março de 832,
Afonso II veio a anexar à diocese de Lugo as cidades de
Braga e Orense, que estavam destruídas, e as províncias
delas dependentes, impondo-lhes um censo para a igreja de
Santa Maria de Lugo: «Has itaque Urbes seu sibi subditas
Provincias... concedo Virginis Mariae Lucense Sedis, ut
Pontificalem ab ipsa accipiant ordinem... et reddant debitum censum secundum Decreta Canonum eidem Ecclesiae, id
est, tertiam
partem» (E. S., ibid., págs. 369-373).
O pagamento do censo supõe, evidentemente, a existência
de cristãos no território das antigas dioceses, embora as
cidades continuassem destruídas. Quanto ao caso particular
de Braga, sabemos que foi administrada pelos bispos de
Lugo, mesmo depois da reconquista definitiva, até que se
restaurou a sua catedral em 1070.
A nossa região, depois da reconquista de Afonso
III,
ficou com certeza na dependência de Coimbra cuja sé, dedicada também a Santa Maria (Dipl.,
n.º 4), se manteve até à
invasão de Almançor. Só depois deste período (876-997) até à datada
restauração da catedral de Coimbra (1080) é
que poderia ter estado sujeita ao bispo lucense.
Os historiadores modernos põem em dúvida a autenticidade de muitos dos privilégios concedidos à sé de Lugo.
No entanto, o facto que principalmente nos interessa, parece bem
assente: catedral dedicada a Santa Maria, terras colocadas sob o patrocínio de Santa Maria, pagamento de censo a
Santa Maria.
No documento acima referido, Afonso
II não tem mais
que exaltar do que a basílica de Santa Maria, construída
«miro opere» na cidade de Lugo, e diz que ia lá com o exército invocar a protecção da Mãe de Deus contra os seus inimigos. Em 867, Sabarico, bispo de Dume, refugiado na
Galiza, promete visitar todos os anos a catedral de Lugo, no
dia da festa da Assunção de Maria, e levar-lhe com o seu
clero e fiéis o tributo de cem congros (E. S., XL, 121-122).
Em 988, Bermudo II oferece a Santa Maria, titular da igreja
de Lugo, um castelo que reconstruíra; em 991, doa-lhe três
quartas partes do território de Mera e faz uma devota oração à Virgem
Santíssima, implorando o seu auxílio na vida e na
morte (E. S., ibid., 149-150).
Enfim, reis, bispos, e fiéis
competem na devoção à Virgem Santa Maria «in cujus honore sancta nitet Ecclesia in
Civitate Lucensi territorio Galleciae», como reza uma escritura de 1089 (E. S., ibid., 185-186). Ainda em 1130 o
conde
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66 /
Guterre fazia uma doação à catedral de Lugo e prestava,
com sua mulher, reconhecida homenagem «omnipotenti Deo, ejusque gloriosae Almae Virgini Mariae, cujus Sacras Reliquias
manifestum est proculdubio in Lucensi Ecclesia a compluribus venerari,
adorari et coli» (E. S., XLI, 304).
Entre os muitos santuários
consagrados à Mãe de Deus
no território libertado, nenhum há mais célebre, desde o século VIII, do que a igreja catedral de Lugo. A sua fama
não chegou a ser inteiramente eclipsada nem pelo esplendor
de Santiago de Compostela.
Ora, cremos que foram homens da Galiza, assim devotos de Santa Maria,
quem veio repovoar o território que, entre nós, de Santa Maria tomou o
nome(12). E,
pelo tempo em que começa a aparecer esta designação, não consta da
existência de nenhum templo dedicado a Nossa Senhora entre Douro e
Vouga, que localmente pudesse exercer especial influência.
A história do repovoamento demanda, por si só, não pequeno esforço. Será
preciso estudar bem todos os nomes
pessoais que aparecem nos nossos documentos chamados
neo-góticos e confrontá-los com os da Galiza. Talvez se possam seguir
os passos de muitas famílias na sua migração para o sul e talvez se
conclua que algumas deram à terra em que se fixaram o nome daquela de
onde vinham. É isto simples sugestão para um trabalho que levará alguns
anos a fazer, mas que parece basilar até para o estudo da toponímia, não
vá acontecer procurarem-se explicações locais para nomes que nos vieram de muito longe.
Há, pelo menos, curiosas coincidências. Assinalámos acima
Riva Ulliae e
Valle Uriae. Já em alguns exemplares das supostas actas do concílio de
Lugo (569) aparece um condado chamado de Ulia, que começava no monte de
Spino e
ia até Paramio (E. S., XL, 344 e 348). Na doação feita por Afonso
III
a Santiago de Compostela em 899, é citada entre várias vilas uma que se
situa in ripa Ulliae (E. S., XIX, 340). Outros documentos mencionam
vilas in ripa Umiae (E. S., XX, 188). Temos, pois, na Galiza os rios
Ulia, Uria e Umia,
e na Terra de Santa Maria os rios Ul ou Ur e Uíma, dando-se para mais a coincidência do locativo
Riba Ul.
Naquela doação de Afonso III a Santiago, feita no dia da sagração da
igreja (6 Maio 899), vem também incluída «uillam Valliga, que est iuxta
sedem hiriensem cum terminis et adiacentiis suis (López Ferreiro,
Historia... de Santiago
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67 / de Compostella, lI, pág. 47 dos Apêndices) ou, segundo
a transcrição da E. S., «Villam Vallaga». Existe ainda na Galiza, na
margem esquerda do rio Ulla, o município de
Valga, que tem por cabeça Puente Valga, na paróquia de
S. Miguel de Valga. E temos nós, no concelho de Ovar, a
freguesia de Santa Maria de Válega. Outra simples coincidência.
Mais. Entre as doações feitas a Santiago e referidas
na Historia Compostellana, aparece em ano impreciso a
seguinte verba: «ln Salinensi vero confinio Oduarius Didacides(13) Villam
Ovar (E. S., XX, 71). Este território, dito Salinense na Idade Média, era o vale que actualmente se
chama de Salnés, formado pelo rio Umia na província de Pontevedra. Nas
tais actas do concílio de Lugo de 569, já se
atribuem à sé de Iria as terras Salinense e de Pestomarcos. Em 886, o rei Afonso III deu a Santiago «Salinas in Cõmisso
qui dicitur Saliniense», que tinham pertencido a Ermegildo e a sua mulher Hiberia e das quais os privou por crime de rebelião (E.
S., XIX, 340). Pois, muito bem. No ano de 922, o rei Ordonho II veio ao mosteiro de Crestuma (Castrumia)
visitar o bispo Gomado, resignatário de Coimbra, com os
condes Lucídio Guimarães e Rodrigo Luci, e o primeiro destes fez ao bispo larga doação em que se incluíam muitas
propriedades na Terra de Santa Maria, entre elas algumas
igrejas situadas in ripa de ul e uma in porto de Obal − Ovar (Dipl.,
n.º 25). E quem era este conde Lucídio Guimarães, mencionado aliás em outros documentos nossos e
tão rico em bens nesta região? Nada menos que o senhor
da Comenda ou Condado de Pistomarcos, na Galiza, pois no
ano de 934 Ramiro lI doou a Santiago de Compostela «Commissum Pistomarcos ab integro secundum illud obtinuit
Lucidus Vimarani, de Ulia in Tamare, entre os rios Ulla e
Tambre (E. S., XIX, 364). Temos, pois, Ovar na Galiza e Ovar na Terra de Santa Maria, e em ambas as regiões bens
pertencentes ao mesmo proprietário.
Percorrendo os preciosos volumes da
España Sagrada e outras colecções documentais, podem colher-se muitos
outros elementos para elucidação do tema que me limito a
indicar. Apontaremos apenas mais uma curiosidade.
Na referida doação do conde Lucídio Guimarães ao mosteiro de Crestuma, fala-se na «uilla mahamudi», a conhecida
Mafamude junto de Gaia. O topónimo é claramente árabe, o que é raro nesta região, e derivado de nome pessoal.
Mas quem seria o
sujeito? Será difícil identificá-lo. Todavia,
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Afonso lI, no já citado documento de 27 de Março de 832, conta um
episódio algo interessante. Apareceu-lhe um árabe chamado Mahamud, que
se dizia fugido de Mérida
ao rei Abderramen e vinha pedir acolhimento na Galiza. D. Afonso
recebeu-o muito bem, mas em breve o muçulmano o atraiçoava, reunindo
gente da sua seita para usurpar a Galiza ao rei cristão. Foi este à
catedral de Lugo implorar para as suas armas o patrocínio da Virgem
Maria e, no dia seguinte, atacou Mahamud, venceu-o e matou-o. Grato à
protecção da Virgem, fez-lhe generosa doação de bens naquele documento
em que lhe exalta a glória (E. S., XL, III e 369; Cf. Chronicon
Albeldense, n.º 58, Chron. Sebastiani, n.º 22. Silense,
n.º 30). Não sobreviverá em Mafamude o Mahamud?
Para uma conclusão segura sobre as
origens da designação de Santa
Maria, requere-se evidentemente maior soma
de elementos. Mas destas aproximações e coincidências resultará ao
menos uma hipótese. A origem dos nomes Cesar e Ovar, que alguém
relacionou etimologicamente com
o rio Ul, terá antes de buscar-se nos genitivos Cesarii e Odvarii,
lembrados por J. LEITE DE VASCONCELOS (Opúsculos, III, 319-320). A
identificação topográfica e a sucessão histórica de Lancobriga, Civitas
Sanctae Mariae e Vila da Feira, longe de se abonarem, são contraditadas
pelos documentos, como notámos num estudo sobre a vila de Ovar (Arquivo
do Distrito de Aveiro, VIII, 66-68).
P.e MIGUEL DE OLIVEIRA |