J. S. de Sousa Batista, Recordações do Marnel, Vol. IX, pp. 24-33

RECORDAÇÕES DO MARNEL

AMPLAS referências mereceu o rio Vouga aos geógrafos antigos, parece que por ser daqueles que contavam directa saída para o mar. Saída que se faria, em modo de prolongamento do mesmo rio, por esteiro que subiria de enseada relativamente larga, e em o qual viriam desaguar também o Águeda e Cértoma, possibilidade lembrada, pelo Sr. Dr. AMORIM GIRÃO em Bacia do Vouga. E se dos mesmos geógrafos não houveram estes dois cursos menção, tal facto terá seu fundamento no menor volume das respectivas águas, a honra do estendimento do nome ao Vouga vindo a caber, como de direito. Assim, o itinerário de Antonino da via romana litoral, no trecho de Aeminium a Cale, seja entre Coimbra e Gaia, apenas se refere ao Vouga; e, também PLÍNIO, nas suas informações geográficas sobre a Lusitânia, os não cita na passagem − «A Durio Lusitania incipit. Turduli veter. Pesuri. Flumen Vacca. Oppidum Talabriga. Oppidum et Flumen Aeminium. Oppida Conimbriga, Colippo, etc.».

Consideração de relevo mereceu, pois, o rio Vouga, seja pelo volume de suas águas ou pela vida que ao tempo nas terras da parte inferior da sua bacia se desenrolou. Onde, todavia, haverá demorado a famosa Talábriga é no que precisamente os mais pertinazes pesquisadores do passado luso-romano por unanimidade ainda não assentaram. Esperemos, assim, que algum fortuito achado nos venha trazer a chave da concórdia.

Deixemos o finado Oppidum e deitemos um golpe de vista à voltado Cabeço de Vouga, cujo terraço é excelente miradouro para os amantes dos grandes quadros da Natureza. Olhando para o norte, depara-se-nos o campo do Ouvedo, formado que foi por feracíssimas aluviões carreadas pelas enchentes do Vouga e cuja fertilidade era cada ano conservada, se não aumentada, pelos lodos constituídos por cinzas das queimadas e excrementos do gado de pastoreio nas altas vertentes que no seu curso serrano o ladeiam. Era, porque as suas águas hoje mais se comprazem em arruinar o lindo / 25 / agro pelas areias que nele espraiam, em virtude do levantamento de seu álveo e de minguarem agora os úberes nateiros, que vai o baldio sendo sistematicamente florestado, e cada dia mais reduzidos se vêem os gados pelo monte; mas sempre formoso na moldura suave das suas colinas, na resplandecência da fita de prata que a meio o sulca em toda a extensão do seu comprimento. Para além, o anfiteatro de Macinhata com seu branco casario espreguiçado ao longo da bem lançada 'encosta rematada pela edificação ampla onde inúmeras crianças vêm ao ensino das primeiras letras. A poente da planície ergue-se o tabuleiro da Mesa, localidade que este nome obteria em consequência de algum dolmen ali existente, e ora desaparecido, ou pela conformação do montículo em que demora, que a do móvel com igual chamadoiro faz recordar. Montículo prolongado em sucessiva maior altura pela colina de Serém, onde ainda podem observar-se restos do antigo convento e alguns poucos dos vetustos vegetais que pertenceram ao povoamento da que foi a grande e pitoresca mata do referido recolhimento; edifício e povoamento hoje substituídos por moderna construção e jardinagem floral e pomareira, limitadas a poente pela estrada n.º 10, que em diagonal rasga a vertente, a meio do dorso ou alto desta mostrando-se elegante estância de repouso de onde se desfruta uma das mais belas perspectivas entre as sem conta que Portugal oferece ao turista.

Para sul, declive menos áspero se desenrola, em cujas largas depressões abundante material tosco e trabalhado com inúmeros objectos de uso caseiro tem sido recolhido, remanescente atestado das fidalgas moradias dos Senhores do MarneI, e desde o seu sopé atoalham as águas hectométrica planície que o separa da outra banda, onde se ergue o monte do Toural em cuja base perduram ainda minguados restos da velha igreja de Santa Maria do MarneI.

São as águas do rio MarneI. Melhor: do rio do MarneI.

Quer dizer: rio que se espraia ou desagua em um marneI, pois rio MarneI não seria cousa de compreender.

De facto, parece não oferecer dúvida que ao tempo ainda do domínio árabe, as águas do mar, por extenso braço, chegariam até Vouga, localidade a poente da qual viriam reunir-se-lhes as marnelinas através de apertado lamaçal ocasionado pelo estorvo que ao escoamento destas últimas opunha o levantamento do fundo do braço, em consequência do assoreamento neste processado pelo caudal do Vouga; levantamento que, embora atenuado pelo afundimento provocado pela subida da costa marítima, que deu lugar ao aparecimento, mais tarde, da pateira da Boca, no MarneI, e da de Fermentelos, no Cértoma, uma e outra em crescente estendimento, continua em nossos dias, obrigando o MarneI a prolongar / 26 / seu leito junto à aba da colina de Pedaçães até alcançar altura ou nível em que àquele caudal possa confluir, o que actualmente só consegue a meio caminho da Fontinha, seja a uns dois quilómetros a jusante da primitiva foz.

A pateira da Boca, ou alagado antes e depois da velha ponte do MarneI, é de formação muito recente, pois reza a tradição, rememorada em PINHO LEAL, ter sido o chão a norte da igreja local de um mercado, e em documento de destrinça dos bens foreiros à Casa de Lafões, sitos na freguesia de Valongo do Vouga, efectuada em 1812, a seguinte passagem se encontra: «E este he o modo como Se achão declaradas e feitas as mediçoens no dito Tombo velho cujas propriedades hoje por cauza das agoas e por confundidas e mistas Se não poderão medir por iço Se conjuntarão debaixo de huma So medição». Os tombos anteriores haviam sido efectuados, respectivamente, em 1530 e 1751, depreendendo-se que à data deste último ainda se não tinha deslocado a pateira para onde hoje se encontra, pois eram medíveis e agricultáveis as terras ora alagadas. O antigo paul situar-se-ia mais a poente, como dissemos.

Conforme memória e comunicação, apresentadas, respectivamente, pelos Srs. A. DE MORAIS e prior MANUEL GOMES DE ANDRADE, ao Instituto Etnológico da Beira, em 1922, é também bastante recente a pateira de Fermentelos.

A velha vala do MarneI corria junto à falda do Cabeço de Vouga, assim o comprova o seguinte trecho do citado documento: «...vira a medição para o Sul atraveçanda huma vala Larga por onde corre a maior parte da agoa da Rio cuja vala hera antiguamente a estrada e Serventia de Carro que hia do Carvalhal da Porteia pela porta de Maria Adelaide da Boca para o Campo e Ponte do MarneI...» Calçada que a gente de Lamas afirma encontrar-se ainda no fundo da referida vala velha, e representará o restante do primeiro trecho da passada via romana para a Beira, como tivemos oportunidade de enunciar.

*

Falam antigos documentos da desaparecida igreja de Santa Maria do MarneI, outras vezes da mesma igreja mas como de Lamas, e ambas as referências estarão certas. Marnel e Lamas não foram, todavia, uma só vila, porque representam ainda hoje locais diferentes, embora muito aproximados do assento do extinto templo − duzentos e quinhentos metros, respectivamente, mais ou menos. A Civitas Marnelae terá demorado na encosta sul do Cabeço de Vouga, que de MarneI conserva o nome; ali se ergueriam os solares / 27 / dos nobres senhores, circundados pelo casaria das gentes a seu serviço ou em relativa dependência; conjunto em vulto bastante para merecer a denominação de Civitas.

Lamas, porque vem quase sempre antecedida nos velhos escritos do designativo Vila, tudo leva a crer que agasalharia também alguma família nobre, cujas circunjacentes moradias haverão recebido, possivelmente, os remanescentes da vetusta Civitas, desde seu declínio ao total desaparecimento, por menos apropriada a sua topografia às exigências impostas pela evolução dos costumes e das necessidades da vida. Da grandeza do que terá sido a Civitas Marnelae fazem testemunho a amplitude das pedreiras exploradas e a muita cantaria, vária com lavor, que do local foi desviada, de par com a pouca que ainda por lá se encontra.

Desaparecida a Civitas Marnelae, e envelhecida e arruinada a igreja comum, novo templo, no decorrer do último quartel do século XVIII, mandou Lamas edificar, em donairosa eminência levemente sobranceira à povoação, onde brilha hoje na brancura de fina cal, vivo atestado do carinho com que é conservada.

Há informações de que era a velha igreja do MarneI relativamente ampla e majestosa, o que nos é difícil aceitar, porquanto o relevo do terreno em que assentou não poderia comportar edificação de grandes dimensões. E o resto de uma parede lateral que ainda ali subsiste esta verdade confirma. Assim, para o comprimento, verificámos que teria cinco metros a capela-mor e catorze o corpo principal, perfazendo o total de dezanove, extensão de capela de mediana grandeza na actualidade.

Do recinto do templo restava inaproveitado para a cultura rural apenas o pequeno espaço do que foi a ábside e uma estreita faixa na largura da nave. Ora, nos últimos dias, sofreu tal remanescente a acção da picareta, que todo o revolveu até à profundidade do que era terra, seja até à conjunção desta com o duro arenito que a lastreia, neste havendo sido encontrado um túmulo aberto em feitio do corpo humano, semelhante a outros descobertos em terreno adjacente da parte da elevação do solo; túmulos de que só damos notícia pelo relato que nos foi feito. Mas, além destes sepulcros, segundo informe do rendeiro que operou o arroteamento, pode concluir-se que seria mais extensa a ábside, pois um alicerce transverso foi encontrado a pouco mais de um metro abaixo da linha considerada como da parede do arco, a não ser que pertencesse este alicerce à construção substituída pelo templo sagrado em 1170. O que é possível.

Como espólio colhido na arroteia, um cesto de ossos, vários azulejos de relevo, hispano-árabes, do século XVI, a pouca cantaria com lavor, representando pertença de cornija / 28 / simples. E mais uma lápide tumular já com poucas letras reconhecíveis.

Igreja monacal também se escreveu que foi, o que nos parece de igual modo sem cabimento, porquanto a configuração do solo templo de maiores dimensões não permitiria, como ficou dito, e, ainda menos, agregado de aposentos para grande comunidade.

Dissemos da coexistência dos núcleos povoados − Marnel e Lamas − e acrescentamos agora que não nos repugna admitir que fosse a Civitas Marnelae a filha apenas da nevoenta Talábriga abrigada pelo castro que encimou o Cabeço de Vouga, a este havendo pertencido os vestígios ultimamente ali vindos à luz, e bem assim os encontrados no Cabeço da Mina em modo de singular fortificação que daquele castro seria avançado anteparo.

No ano de 981, o conde D. Gonçalo Mendes, filho da condessa Mumadona, fez donativo da sua vila de Lamas aos monges de Lorvão, e no documento respectivo se diz que partia a dita vila com as de Palaciolo, Padasanes, Belli e Cristovalães, segundo informes publicados. Ora, Padasanes continua a sua vida com o nome hoje de Pedaçães, Cristovalães com o de Crastovães, Belli com o de Vila-Verde, substituindo os naturais o Belli por Verde, por lhes despertar aquele o de cousa velha, ao que reza a tradição, sendo conservado Belli apenas para designar o local de uma pedreira e encosta a montante, situadas a uns 50 metros a leste da povoação. E Palaciolo onde seria?

Houve quem identificasse a extinta vila com o lugar do Paço da freguesia de Valongo do Vouga, distante de Lamas. uns quatro quilómetros; localidade onde viveu durante algum pouco tempo o conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis. Terá, porém, fundamento semelhante atribuição? Nenhuma, cmo vai ver-se.

Diz a Memória Paroquial de Valongo, do ano de 1758, existente no Arquivo da Torre do Tombo:

«Paço. Tem vinte, e tres vizinhos com setenta e sette Pessoas, e quatro Azenhas e se chama o Paço por ser este o sitio em que estiveram os Paços de Dom Pedro Affonço Conde de Barcelos filho ilegítimo do Rey Dom Deniz, em que rezidia no ano de mil, e trezentos, e quarenta, e oito, em cujo tempo passava com o nome de quinta do Bronhido, como se refere na Historia Genealogica da Caza Real Portugueza, Tomo primo, livro segundo, paginas cincoenta, e cinco, e duzentas sessenta, e seis» (segundo cópia que mandámos extrair). Quer dizer: a Quinta do Bronhido somente tomou a modalidade de povoação e o nome de Paço depois da residência aqui do conde de Barcelos, onde assistia pelo ano de 1348, tendo sido pouco duradoura a sua permanência / 29 / na Quinta. Ora, a doação da vila de Lamas pelo conde D. Gonçalo Mendes, onde se faz referência a Palaciolo, é de 981, como acima se refere, seja de três séculos e meio antes que o lugar do Paço começasse sua existência com tal denominação.

BAIXO VOUGA NO ANO 1000

LEGENDA (Designações actuais): 1 − Asilhó. 2 − Ribeira de Asilhó. 3 − Mamoas, a poente da Estrada N.º 10. 4 − Frias de Baixo, e de Cima. 5 − Cabeço de Serém. 6 − Pinhais de Monquim, onde, reza a tradição, eram assaltados os transeuntes. 7 − Vouga. 8 − Albergaria a Velha. 9 − Mala-posta. 10 − Monte da Cernada. 11 − Sobreiro de Albergaria. 12 − Mesa (na margem direita). Clicar na imagem para a ampliar em alta resolução.

/ 30 / A vila Palaciolo demorou onde hoje chamam as Ramas do Raro, no sopé e a noroeste da colina de Pedaçães. Efectivamente, muitos pedaços de cerâmica antiga ali têm aparecido, e ainda há pouco um proprietário, ao abrir mina em terreno seu, junto à vala do Marnel, deu com duas fortes paredes, que teve de perfurar, remanescentes, certamente, da extinta vila Palaciolo. O mais interessante dos achados foi, todavia, certa lápide com larga inscrição, da qual ninguém conhece o paradeiro, e onde se diz, não sabemos se com verdade, que está escrita a palavra Palaciolo.

Consta do documento de 981 que confinava Lamas com as referidas Vilas de Padasanes, Palaciolo, Beni e Cristovalães. Ora, as três primeiras, quase equidistantes de Lamas, formavam e marcam um arco de sul a noroeste dessa povoação, encontrando-se Cristovalães entre Padasanes e Palaciolo, um pouco afastada da linha do mesmo arco na direcção sudoeste. A distância em recta das três primeiras a Lamas será de uns 800 metros; e a de Cristovalães à mesma, de 1500 metros.

*

Já não é pouca a tinta que tem jorrado, pelas penas de vários e excelentes escritores a dizerem das coisas e passado da Civitas Marnelae. Tratando-se, porém, das localidades referidas em velhos documentos, em que aquela representa o capital centro urbano, de maior importância e evidência, a situação que lhes tem sido apontada, a cada qual, sobretudo às notáveis por alguma ocorrência de que reze a história, não nos parece de aceitar sem maior reparo. Pelas transcrições que passamos a fazer e pelo esboço que por elas e com o recurso das linhas da carta do Estado Maior traçámos, tendo em consideração o que acreditamos identificado, quem acaso nos ler poderá rematar seu juízo, tudo confrontando com as hipóteses aventadas, que levam algumas dessas localidades para distâncias, em razão da semelhança de nomeação, que não podem ser admitidas. É o caso de Ossella, Auranca, Romariz, evidentemente topónimos, cada qual, de mais de um lugar dentro de uma mesma região.

PINHO LEAL, voI. XII, transcrito de Dissertações Chronológicas:

«Noverint universis ad quos presens scriptura pervenerit...  −

Em vulgar:

«Saibam todos os que virem esta escritura, que, tentando nós D. Egas, bispo de Coimbra, reformar a velha albergaria de Mesão Frio D. Mourão da vila de Vouga (de burgo de Vouga) nos mostrou certa carta sem rasuras nem defeito algum, e não cancelada nem abolida..., cujo teor é o seguinte:

«In nomine Sancte, et Individue Trinitatis... − Em nome da Santíssima Trindade, Padre, Filho e Espírito Santo, amen. Esta é a / 31 / carta de couto que eu a infanta D. Tereza rainha de Portugal, mandei dar a ti Gonçalo Eiriz. para a tua vila de Ossella:

«Primeiramente dou à mencionada vila os termos seguintes: partirá com as terras de Santa Maria (Vila da Feira) por um lado, ƒ. − pela direita à Pedra d'Águia e daí pelo meio da Mata talada; depois vai à Mata da Ussa, que antigamente se denominou Mata da Brava; dai à Mamoa negra, que também já se denominou Mamoa árida; dali a Romariz, depois vai pelas outras partes, ao termo de Vouga; passa o rio OsseIa; vai à Jarneca; depois dá volta pelos vales de Ossela e vai direito à Fonte Fria, outrora denominada Fontainha de Mesãofrio (Foctamini de Meigonfrio); depois segue pela estrada até à Pedra d'Aguia, onde principiou a demarcação.
 

«E vos faço este couto na vila de OsseIa (Osselola) pelas divisões supra, ƒ. − da mesma vila até o marco do couto, que mandei pôr ao norte, junto da estrada do Porto, e outro tanto para o poente e sul na direcção dos vales de Ossela, para além do rio deste nome, dando volta até à Fonte Fria e ao sobreiro marcado (Suverario asignato); depois atravessa a estrada pública para o nascente e vai direito pelo termo de Val Maior ao VaI pequeno, onde costumam roubar e matar os viandantes; e dali, da primeira fonte que está a jusante da estrada pública, vai direito ao norte até à sede do couto.
 

«...   ...   ...»
 

«O 1.º albergueiro será Gonçalo de Cristo e por morte dele vós nomeareis outros e lhes dareis para seu sustento e da albergaria uma parte da mesma herdade, ƒ. − desde a primeira lagoa dos Sovereiros pela estrada que vai para Ossella em direcção ao rio deste nome até o mesmo rio; dali pela lagoa ate á primeira Mamoa, que está junto da estrada, até à Fonte Fria; depois pela outra parte do termo de Val Maior eu e tu e nossos sucessores lhes damos o terreno compreendido na linha que vai para o nascente por cima da Petra Cava em direcção à primeira fonte a jusante da estrada e dali à Fonte Fria, mencionada supra.
 

«D. Hugo, bispo do Porto, confirma:
 

«Foi feita esta carta de couto na terra (vila) de Santa Maria, denominada Feira, no mês de Novembro, era MCLV (ano 1117). Eu a infanta D. Teresa, Rainha de Portugal...
 

«Regina Dona Tarasia Regina»

Do mesmo PINHO LEAL, voI. V:

«Alguns varões ilustres nasceram na vila do Marnel e seu têrmo.
 

«Os principais de que ha notícia são:
 

«Aires Manuel, eremita. Nasceu na vila do Marnel (então intitulada cidade) pelos anos de 1070, sendo rei de Portugal e Galiza o infeliz D. Garcia...
 

«Casou com Argira, de quem teve o beato Martinho, do qual abaixo tratarei.
 

«Morrendo sua mulher, que muito amava, se retirou a um sítio áspero e inabitável, próximo do Marnel, chamado monte Aurunche, e ai terminou seus dias no retiro e com as maiores austeridades.»


A. G. DA ROCHA MADAHIL, in Estação Luso-Romana do Cabeço do Vouga, transcreve do Agiológio Lusitano, de JORGE CARDOSO:

«Em Auranca, villa banhada do rio Vouga, no territorio da antiga cidade do MarneI, a jornada da terra para o ceo do Eremita / 32 / Ayres Manoel, varão mui pio, & devoto, pai que foi d'aquelles dous celebres Príores de Soure, S. Martinho, & Mendo Ayres, em tempo do Conde D. Henrique».

E do Elucidário, de SANTA ROSA DE VITERBO:

... «No (ano) de 1170 Pelágio Peariz, e sua mulher Adosinda Dias, doarão a Lorvão a terça parte de huma vinha, no limite de Cerradello, Termo de Esgueira; e declarão que esta herdade está in Civitas, quae dicitur Serém.» ... «E alli mesmo se acha como o Famulo de Deos Zoleima Gonçalves fez Doação de certas propriedades à Igreja, e Mosteiro de Santo Isidoro de Eixo; pro tolerantia fratrum, & Monachorum, qui ibidem habitantes fuerint, & Vita Sancta perseveraverint. Declarando, que esta Igreja d'Eixo ficava subtus Civitatis Marnellæ, discurrente rivulo Vouga, territorio Colimbriae. Foi isto no de 1095; porem no de 1121 fizerão Doação aos Monges e Clerigos de Lorvão Pedro Paes e Jelvira Nunes de sua Villa de Pinheiro, que elles tinham no territorio de Coimbra: Et in confinitate Castelli Marnelis, inter fluvium Vougam, & montem qui dicitur Meiçom frio. lb.» ... (Tomo 1.º, pag. 277).»

Pelas transcrições feitas é fácil concluir que todos os locais apontados se encontram à margem do rio Vouga, ou muito próximos, e a curta distância da extinta cidade do MarneI; devendo levar-se o erro cometido por escritores muito conscienciosos à conta da vulgar repetição de topónimos na geografia portuguesa do passado.

*

Escritas as linhas supra, chegou-nos às mãos, por gentileza do seu ilustre autor, o Sr. Dr. ALBERTO SOUTO, o opúsculo Romanização no Baixo Vouga. Ora, participando na primorosa exposição que representa o pequeno trabalho, a seguinte passagem se encontra a páginas 27 é 28: «A meu ver, ao tempo da invasão romana, já na frente do desaguadouro inferior do Vouga havia formações deltáicas, umas em progresso, outras já velhas e consolidadas e o mar estaria muito afastado.»

Aceitando o auxílio fluvial para a solidificação do estuário, atribuímos nós, entretanto, principalmente, o desaparecimento gradual deste a processo tectónico que veio e vai determinando o levantamento lento de toda a área do recôncavo limitado pelo cordão marinho descendente do extremo norte daquele, ocasionando a emersão de tratos de terra, ou ilhotas, mais ou menos amplos. Tratos ou ilhotas que a vasa potâmica areno-coloidal, por seu turno, uniu e continua a ligar, completando a extensa superfície que constitui a região do Baixo-Vouga. / 33 / [Vol. IX - N.º 33 - 1943]

O motivo que nos leva a crer na subida vagarosa do leito do estuário é o aparecimento das pateiras de Fermentelos e MarneI, aquela com início, como dissemos, haverá uns quinhentos anos; a segunda, na sua actual localização, não contando mais de duzentos, tendendo sempre as águas de uma e outra a estender-se para Oriente. E isto significa que o referido levantamento motiva na linha da dobra ou charneira, como muito bem a denominou o mesmo ilustre Sr. Dr. ALBERTO SOUTO, em conversa no Cabeço de Vouga, ao expormos-lhe o nosso modo de ver, crescente profundidade, que a vasa deposta pelas águas em espessura não anula integralmente. Daí, a maior altura destas com o decorrer do tempo e em cada dia a sua mais lata amplitude superficial.

Em 1884, quando em habilitação para o exame de instrução primária em Aveiro, grande prazer era o nosso com tomar o caminho das Pirâmides a observar a planura das salinas que se nos revestia de infinita beleza. E lembra-nos de ter visto a meio do trecho do esteiro denominado do Cais, seja entre as referidas pirâmides e a ponte, um veleiro de alto mar, que nos informaram ser um patacho. Quer dizer: havia no canal altura de água suficiente para a subida e estacionamento de um barco de relativo grande calado. Ora no mencionado canal, em determinado ponto, não passa de ano talvez, observámos que o lodo aflorava, fosse embora por maré vazante; e depois que regressámos à Terra Natal, após prolongada ausência, jamais ali divisámos navio de tal grandeza nem a quem quer que seja ou vimos dizer que ali chegasse. E apenas 59 anos são decorridos!

Em 300 anos, que restará da ria?

JOAQUIM SOARES DE SOUSA BATISTA

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