A. G. da Rocha Madahil, O rol das «cavalarias» do Vouga, Vol. VIII, pp. 153-159.

O ROL DAS "CAVALARIAS"

DO VOUGA

PROCURANDO documentar-se para definir, no livro VII da História de Portugal, o encargo exacto que caracterizava na Idade Média o tributo militar designado pelo vocábulo cavalaria, ALEXANDRE HERCULANO não encontrou texto mais expressivo do que − além destas duas passagens do Livro 3.º das Inquirições de D. Afonso III:

(fl. 54 v.º:)...est caballaria regis... dant regi caballum et arma in suo exercitu,

(fl. 145:)... debent ire in hostem et anuduvam cum caballo et armis et permanere in hostem sive in anuduvam per sex ebdomadas

um certo documento a que dá o título de Rol das Cavalarias do Vouga, cotado de gav. 11., M. 2, n.º 2, do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, que extrata da seguinte forma:

... Hoc est forum quod debent facere quando dominus rex fuerit in fossado vel in hoste vel in anuduva: debent ire cum suo corpore et debent levare unum poldrum et unum scutum et unam lanceam et debent stare cum suo corpore septem domas.

(História de Portugal, T. VI da 8.ª ed., págs. 221 e 222, nota 3).

Por este nome de cavalarias, que tinha várias acepções na organização militar e tributária medieval, como VITERBO deixou registado no Elucidário, eram designadas, ao Sul do rio Douro, segundo HERCULANO, as herdades sujeitas ao fossado, expedição militar a cavalo que anualmente se fazia ao território muçulmano, por via de regra na Primavera, com o fim de assaltar e saquear as searas do inimigo; enquanto a operação durava, os invasores entrincheiravam-se abrindo fossos, daí provindo o nome de fossado ao conjunto da expedição e ao tributo em que posteriormente ela se converteu, assim como o qualificativo de / 154 / fossadeira, ou afosseirada, que primitivamente se dava à herdade sobre a qual impendia a obrigação, e que se manteve apenas ao Norte do rio Douro; ao Sul, como ficou dito e aqui especialmente nos interessa, chamou-se-lhe cavalaria.

A herdade, e o vilão, eram constrangidos a fornecer cavalo, escudo e lança; isso, justamente, se encontra no Rol aduzido por HERCULANO.

Tal era, como nota o historiador, «a fórmula geral e simples do tributo de sangue, do serviço militar, imposto á classe mais elevada dos villãos».

No século XIII foi-se operando a conversão desse serviço pessoal numa contribuição predial em dinheiro ou em géneros; compreende-se e justifica-se que às regiões sucessivamente distanciadas do domínio muçulmano, cuja linha a reconquista ia fazendo descer para Sul, já não fosse exigida a prestação directa do serviço militar; para essas regiões, a contribuição monetária passaria a constituir uma fórmula muito mais prática de auxiliar a acção militar do monarca e o alargamento das fronteiras nacionais.

Prosseguindo o seu notável estudo, HERCULANO, pouco adiante, ao definir o tributo da anúduva, que era a obrigação de concorrer pessoalmente para a construção e reparação dos castelos e edifícios reais, devendo o cavaleiro vilão «apresentar-se a cavallo no logar aprasado e dirigir os trabalhadores peões, armado de uma vara», incorrendo em determinada multa se não comparecesse, utilizava ainda o Rol das Cavalarias do Vouga, extratando-o nestoutra passagem:

... et quando fuerint in anuduva non debent facere nisi mandare cum una vara in sua manu. Et si forte non fuerint cum illa (com a anúduva) debent pectare 7 bragales.

(ibid., pág. 228, nota I).


VlTERBO definira já uma das acepções do vocábulo Cavalaria como «Terra, casal, quinta, herdade, lugar, que antigamente se concedia com obrigação de fornecer certo numero de cavalos para determinada expedição militar. Nas inquirições d'EI Rei D. Diniz se acharam: «In Serém duo Casalia, et duas Cavalarias de Militibus, que dant Dño Regi Cabalas in fossado.» E na terra de Vouga havia muitas com esta pensão. Doc. de Grijó.»

Não será, portanto, impossível que VITERBO conhecesse também, a avaliar pelas últimas palavras do seu artigo, o Rol das Cavalarias do Vouga, talvez em cópia encontrada no mosteiro de Grijó.

Não vai, porém, mais além, e desconheço outro historiador anterior a HERCULANO que ao documento concretamente se refira e o extrate. / 155 /

Posteriormente a HERCULANO fala no Rol das Cavalarias do Vouga aquela prestimosa Dissertação historico-juridica em defesa dos povos do extincto almoxarifado d'Eixo nas causas de fóros e rações, que lhes move a Serenissima Casa de Bragança, do famoso jurisconsulto local José CORREIA DE MIRANDA, publicada em 1866, obra valiosíssima para a história desta região, e honra dos estudos históricos do distrito de Aveiro.

CORREIA DE MIRANDA, no entanto, não deve ter visto o documento, pois o cita apenas através de HERCULANO; e ambos o utilizam unicamente para explicar os tributos medievais de cavalaria e de anúduva.

Conhecendo razoavelmente a bibliografia do distrito, sou levado a crer que o Rol se encontra inédito no seu conjunto; e como a parte que não interessou HERCULANO é de grande importância para a toponímia local e para a história do povoamento ao Sul do Douro, pois nos apresenta nada menos que 37 topónimos, deliberámos trazer a público o precioso documento, esgotadas as repetidas diligências que desde há muito fizemos, infelizmente debalde, para que no Arquivo do Distrito de Aveiro ele fosse comentado pelo filólogo que à toponímia mais cabalmente se tem dedicado entre nós e que, aliás, possuía já cópia do documento em referência.

Para maior certeza de transcrição fizemo-lo fotografar no Arquivo Nacional, e pela prova obtida procedemos à leitura que a seguir oferecemos aos estudiosos destes assuntos.

O documento não se encontra datado. É constituído por dois pequenos pedaços de pergaminho cosidos um ao outro; no verso, em letra muito mais recente, foi assim sumariado:

Declaração dos foros que se aviam de pagar a El Rey dos lugares de Vouga, Avellanz, e outros lugares nomeados.

A isto se acrescentou a data de 1328, a tinta diferente, restando ainda averiguar se ela se deve entender como era de César ou como ano de Cristo: portanto, 1328 ou 1290; reinado de D. Afonso IV, ou de D. Dinis.

No livro 19 da reforma dos documentos das gavetas da Torre do Tombo, a fl. 18, v.º, foi o Rol transcrito, em leitura bastante defeituosa.

Desdobradas as abreviaturas do original, lemos da maneira seguinte(1):

Notum facimus de caballarijs. de uauga ĩ prima in arcus . una . in auelaas . duas. / Jn Oes una . et est de martino / 156 / laurẽcij . Mogofores . una. in alfelas . una. / boralia . duas. Açiquiss . duas. Reqardanes quĩque in spiel. septem . Jn paradela / duas in quasaio. duas Jn orone . duas. Jn Sagadães tres Jn bbrunido . duas. et fuit / una de . p . menendj Jn laeses . duas. et fuit una de martino petri et alia de paiam / in cristello . una. Jn ualle maiorj una . et fuit doruilido . Jn soutello . una. Jn / Jn arinus . una. Jn maciata. duas J (sic) lamas. una. et fuit de laurẽcio / et fontes. una. et fuit de petro budel . Jn caluanes . una. et fuit de irmigia / Jn lauri . una. et fuit de batalia . Jn ourol. una in agueta . Jn auca . una. / in illauo . duas. et fuit una de formã et villa de milio . una. et fuit / de michaele de sereẽs. Jn aueiro . tres . et fuit una de pelagio da / poza in sáá . una. in isgeira . tres . villario . una . Jn exxio . tres . / Jn Oes. dagada . una. . hoc est forũ quod / debet facere quando Dominus . Rex fuerit in fosado uel / / in oste uel in anudoua debẽt ire cum suo corpore et debẽt / leuare unum. poldrũ et unũ scutũ et unã lãceam et debent / stare cõ suo corpore . septem . domaas et debẽt cõtare post / quam exeãt de sua casa et quando fuerĩt inn (sic) anudoua nõ / debẽt facere nisi mãdare cõ una uara in sua manu / et si forte nõ fuerĩt cõ illa . debẽt pectare . septem . braga / es quas tãtum solebãt pejtare in tẽpore de uestro patre / et modo. posuerũt pro . decem .


Esta zona do Vouga, que interpretamos como sendo do primitivo julgado do mesmo nome, vastíssima, como se vê, era grandemente tributária: recolhem-se deste Rol 37 nomes de terras, todos identificáveis, sobrevivendo em vocábulo muito aproximado ao que o escrivão nos transmitiu, por ele latinizado para acompanhar a forma que tinha de dar ao inventário oficial que estava fazendo. Vai de Cristelo (ao Norte) até Arinhos (ao Sul).

Para melhor compreensão, traçámos o seguinte quadro de equivalências, dispondo alfabeticamente os topónimos latinos:

TOPÓNIMO REGISTADO NO ROL

SEU EQUIVALENTE ACTUAL

Açiquiss

Assequins, freguesia de Águeda

Agueta

Águeda, freg. do mesmo nome

Alfelas

Alféloas, freg. de Arcos

Arcus

Arcos, freg. do mesmo nome

Arinus

Arinhos, freg. de Ventosa do Bairro

Auca

Ouca, freg. de Soza

Aueiro

Aveiro, hoje distribuído por várias freguesias

Auelaas

Avelãs, (de Caminho? de Cima?); ambas são freguesia; se considerarmos que em 1354 D. Afonso IV dotou a Infanta D. Maria, sua neta, com as vilas de Ílhavo, Verdemilho, Préstimo, Arcos, Crastovães, Quintela, Carvalhais, Ferreiros, Casais de Espinhel, Seia, Casal de João Dulveira, Ponte de Almeara e Avelãs de Cima (Hist. Gen. − Provas) concluiremos que esta seria terra da coroa, pelo menos parcialmente, e por essa razão identificamos com ela o topónimo Auelaas, do Rol, que algumas dezenas de anos antes lá fixava o quantitativo do tributo a pagar à coroa por efeito de cavalaria

Boralia

Borralha, freg. de Águeda

Brrunido

Brunhido, freg. de Valongo

Caluanes

Calvães, freg. de Alquerubim

Cristello

Cristelo, freg. da Branca

Exxio

Eixo, freg. do mesmo nome

Fontes

Fontes, freg. de Alquerubim

Illauo

Ílhavo, freg. do mesmo nome e da invocação de S. Salvador

Isgeira

Esgueira, freg. do mesmo nome

Lamas

Lamas, freg. de Lamas do Vouga

Lauri

Loure, freg. de S. João de Loure

Laeses

Lanheses, freg. de Valongo

Maciata

Macinhata, freg. do mesmo nome

Mogofores

Mogofores, freg. do mesmo nome

Oes

Ois do Bairro, considerada a sua relação topográfica com os topónimos vizinhos. É freguesia

Oes dagada

Ois da Ribeira, freg. do mesmo nome

Orone

Oronhe, freg. de Espinhei

Ourol

Eirol, freg. do mesmo nome

Paradela

Paradela, freg. de Espinhei

Quasaio

Casainho, freg. de Espinhel

Reqardanes

Recardães, freg. do mesmo nome

Saa

Sá, lugar actualmente incorporado em Aveiro Segadães, freg. do mesmo nome

Sagadães

Segadães, freg. do mesmo nome

Sereẽs

Sorens, freg. de Vagos

Soutello

Soutelo, freg. da Branca

Spiel

Espinhel, freg. do mesmo nome

Ualle maiorj

Vale Maior, freg. do mesmo nome

Uauga

Vouga, freg. de Lamas do Vouga

ViIla de milio

Verdemilho, freg. de Arada

ViIlario

Vilarinho, freg. de Cacia, considerando a sua relação topográfica com os topónimos vizinhos; mas na região existem muitos outros Vilarinhos.

Que condições reuniriam as terras acima relacionadas, ocorre agora perguntar, para serem elas e não outras as chamadas à prestação do serviço militar individual e, mais tarde, a responder pelo pagamento da tributação das cavalarias do julgado do Vouga? Muitas outras havia, seguramente, de maior importância, ao lado de algumas destas.

E qual o critério que presidiu à distribuição do encargo? Por onde se avaliava a capacidade tributária? / 158 /

Espinhel, respondia por sete; Recardães, por cinco; Aveiro, por três; Águeda, por uma; Ílhavo, por duas. Etc.

A par dos subsídios de natureza toponímica fornecidos pelo Rol, alguns nomes o documento regista que são indubitavelmente antropónimos; assim por exemplo: em Aveiro, Pelagius da Poza; em Brunhido, P. MenendJ; em Fontes, Petrus Budel; em Lamas, Laurencius; em Lanheses, Martinus Petri e Paiam; em Ois do Bairro, Martinus Laurencij; em Sorens, Michael.

Com menor convicção, mas tanto quanto a construção gramatical do documento − instável, aliás − o consente, apontaremos ainda quatro: em Calvães, lrmigia; em Ílhavo, Formam; em Loure, Batalia; e em Vale Maior, Oruilido.

Tanto estes como os anteriores são nomes que, desacompanhados de história, nada só por si nos dizem; mas ficam registados; podem subsidiar outras passagens em que ocorram; e, em última análise, servem para a formação do onomástico distrital na Idade Média, empreendimento em que é absolutamente necessário começar a pensar, pelo alto significado científico e social de que se reveste.

Haverá de relacionar-se o Rol das cavalarias do Vouga com aquela provisão de 2 de Abril da era de 1303 (1265), que determinava, entre outras incumbências, o apuramento «das herdades, possuídas de Cavalaria por Cavaleiros ou Ordens, desde o tempo d'EI Rey, seu Avô, e Pay, e sobre as obrigações dos mesmos possuidores de contribuirem como os Vilaons, não privilegiados, com os Direitos devid.os»(2)?

Nas Memórias, abaixo citadas, algumas inquirições do termo do Vouga se apresentam, mas verificámos a falta de concordância de todas elas com o âmbito e o objecto do Rol das Cavalarias. A de ano incerto, relacionada a págs. 29 e segs. como de D. Afonso II, titulada de lnquisitiones de Juribus, quod Rex habet in terram de Agueda, et de Vauga, in Colimbriensi Civitate et Episcopatu, et in aliis locis in Registro contentis, abrange, no distrito de Aveiro, as localidades de «Cambria, Palmaz, Figueiredo, Avranca, Antoana, Fermelãa, Louri, Alcarouvî, ValI e Maior, Vouga, Vallongo, Covelos, Sagadaes, Requeixo, Oes, Espinel, Recardaes, Agada, Agada de Sussan, Carvallaes, Macinata, Agada de Sussan, Sancto Galios, S. Lourenço, Arcos, Erada».

Uma outra, não datada, sobre os reguengos e foros del Rei que se achavam sonegados, principia em Alquerubim e termina em Recardães (págs. II9-120); e há também um fragmento de / 159 / inquirição do antigo distrito da Beira Baixa em que se inclui «Vouga, Valongo, Loure, Forosos, Soozo, Pinheiro, Figueireôo, Arouca, e VaI Maior ».

Abrangendo área mais extensa que todas estas, outra sabemos existir, inédita ainda. Enquanto esse magnífico material se não tornar acessível, é impossível construir seja o que for, definitivo, com pretensões a história local. Mas a Torre do Tombo, infelizmente, fica longe.

À cavalaria, à anúduva e à hoste, isto é, ao serviço militar medieval e ao glorioso movimento da reconquista cristã que criou Portugal, se referem os dois pedacitos de pergaminho cuja leitura na integra pela primeira vez se apresenta ao público. Trinta e sete nomes de terras do nosso distrito, e doze de pessoas, a par das muitas centenas deles que doutros documentos constarão, ficam indelevelmente ligados ao período heróico da Nacionalidade; tanto basta, cremos nós, para que nos seja grata a memória do anónimo escrivão que permitiu, com seus sucintos apontamentos, integrar as nossas humildes terras na grandiosidade desses momentos da história de Portugal.

ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL

_________________________________________

(1) O traço oblíquo / indica o final de linha; os dois traços // a emenda do pergaminho. As letras em itálico, desdobramento de abreviatura. Mantivemos o til nas letras em que se encontrava, em virtude da sua importância linguística.

(2) Memórias para a História das Inquirições dos 1.os reinados de Portugal coligidas pelos discípulos da aula de Diplomática; Lisboa, Impressão Régia, 1815.. 

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