PROCURANDO documentar-se
para definir, no livro VII
da História de Portugal, o encargo exacto que caracterizava na Idade Média o tributo militar designado pelo vocábulo
cavalaria,
ALEXANDRE HERCULANO não encontrou
texto mais expressivo do que − além destas duas passagens do Livro 3.º
das Inquirições de D. Afonso III:
(fl. 54 v.º:)...est caballaria regis... dant regi caballum et arma in
suo exercitu,
(fl. 145:)... debent ire
in hostem et anuduvam cum caballo et armis et
permanere in hostem sive in anuduvam per sex
ebdomadas −
um certo documento a que dá o título de
Rol das Cavalarias do Vouga,
cotado de gav. 11., M. 2, n.º 2, do Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
que extrata da seguinte forma:
... Hoc est forum quod debent facere
quando dominus rex fuerit in
fossado vel in hoste vel in anuduva: debent ire cum suo corpore et
debent levare unum poldrum et unum scutum et unam lanceam et debent
stare cum suo corpore septem domas.
(História de Portugal, T. VI da 8.ª ed., págs. 221 e 222, nota 3).
Por este nome de cavalarias, que tinha várias acepções na organização
militar e tributária medieval, como VITERBO deixou registado no Elucidário, eram designadas, ao Sul do rio Douro, segundo HERCULANO, as
herdades sujeitas ao fossado, expedição militar a cavalo que anualmente
se fazia ao território muçulmano, por via de regra na Primavera, com o
fim de assaltar e saquear as searas do inimigo; enquanto a operação
durava, os invasores entrincheiravam-se abrindo fossos, daí provindo o
nome de fossado ao conjunto da expedição e ao tributo em que
posteriormente ela se converteu, assim como o qualificativo de
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fossadeira, ou afosseirada, que primitivamente se dava à herdade
sobre a qual impendia a obrigação, e que se manteve apenas
ao Norte do rio Douro; ao Sul, como ficou dito e aqui especialmente nos interessa, chamou-se-lhe
cavalaria.
A herdade, e o vilão, eram constrangidos a fornecer cavalo,
escudo e lança; isso, justamente, se encontra no Rol aduzido por
HERCULANO.
Tal era, como nota o historiador, «a fórmula geral e simples do tributo de sangue, do serviço militar, imposto á classe
mais elevada dos villãos».
No século XIII foi-se operando a conversão desse serviço pessoal numa
contribuição predial em dinheiro ou em géneros;
compreende-se e justifica-se que às regiões sucessivamente distanciadas do domínio muçulmano, cuja linha a reconquista ia fazendo
descer para Sul, já não fosse exigida a prestação
directa do serviço militar; para essas regiões, a contribuição monetária
passaria a constituir uma fórmula muito mais prática
de auxiliar a acção militar do monarca e o alargamento das
fronteiras nacionais.
Prosseguindo o seu notável estudo, HERCULANO, pouco adiante,
ao definir o tributo da anúduva, que era a obrigação de concorrer pessoalmente para a construção e reparação dos castelos
e edifícios reais, devendo o cavaleiro vilão «apresentar-se a
cavallo no logar aprasado e dirigir os trabalhadores peões,
armado de uma vara», incorrendo em determinada multa se não
comparecesse, utilizava ainda o Rol das Cavalarias do Vouga, extratando-o nestoutra passagem:
... et quando fuerint in anuduva non debent facere nisi mandare cum una
vara in sua manu. Et si forte non fuerint cum
illa (com a anúduva) debent pectare 7 bragales.
(ibid., pág. 228, nota I).
VlTERBO definira já uma das acepções do vocábulo Cavalaria
como «Terra, casal, quinta, herdade, lugar, que antigamente se
concedia com obrigação de fornecer certo numero de cavalos
para determinada expedição militar. Nas inquirições d'EI Rei
D. Diniz se acharam: «In Serém duo Casalia, et duas Cavalarias de Militibus, que dant Dño Regi Cabalas in fossado.» E na
terra de Vouga havia muitas com esta pensão. Doc. de Grijó.»
Não será, portanto, impossível que VITERBO conhecesse também, a avaliar pelas últimas palavras do seu artigo, o
Rol das
Cavalarias do Vouga, talvez em cópia encontrada no mosteiro de Grijó.
Não vai, porém, mais além, e desconheço outro historiador
anterior a HERCULANO que ao documento concretamente se refira e o
extrate.
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155 /
Posteriormente a HERCULANO fala no
Rol das Cavalarias do
Vouga aquela prestimosa Dissertação historico-juridica em defesa dos
povos do extincto almoxarifado d'Eixo nas causas de fóros
e rações, que lhes move a Serenissima Casa de Bragança, do famoso
jurisconsulto local José CORREIA DE MIRANDA, publicada
em 1866, obra valiosíssima para a história desta região, e honra dos
estudos históricos do distrito de Aveiro.
CORREIA DE MIRANDA, no entanto, não deve ter visto o documento, pois o
cita apenas através de HERCULANO; e ambos o utilizam unicamente para
explicar os tributos medievais de cavalaria e de anúduva.
Conhecendo razoavelmente a bibliografia do distrito, sou levado a crer
que o Rol se encontra inédito no seu conjunto; e como a parte que não
interessou HERCULANO é de grande importância para a toponímia local e
para a história do povoamento ao Sul do Douro, pois nos apresenta nada
menos que 37 topónimos, deliberámos trazer a público o precioso
documento,
esgotadas as repetidas diligências que desde há muito fizemos,
infelizmente debalde, para que no Arquivo do Distrito de Aveiro
ele
fosse comentado pelo filólogo que à toponímia mais cabalmente se tem
dedicado entre nós e que, aliás, possuía já cópia do documento em
referência.
Para maior certeza de transcrição fizemo-lo fotografar no
Arquivo Nacional, e pela prova obtida procedemos à leitura
que a seguir oferecemos aos estudiosos destes assuntos.
O documento não se encontra datado.
É constituído por dois pequenos
pedaços de pergaminho cosidos um ao outro; no verso, em letra muito mais
recente, foi assim sumariado:
Declaração dos foros que se aviam de pagar a El Rey dos
lugares de Vouga, Avellanz, e outros lugares nomeados.
A isto se acrescentou a data de 1328, a tinta diferente, restando ainda
averiguar se ela se deve entender como era de César ou como ano de
Cristo: portanto, 1328 ou 1290; reinado de D. Afonso IV, ou de D. Dinis.
No livro 19 da reforma dos documentos das gavetas da Torre do Tombo, a
fl. 18, v.º, foi o Rol transcrito, em leitura bastante defeituosa.
Desdobradas as abreviaturas do original, lemos da maneira
seguinte(1):
Notum facimus de caballarijs. de uauga
ĩ prima in arcus
. una . in auelaas . duas. / Jn Oes una . et
est de martino
/ 156 / laurẽcij . Mogofores .
una. in alfelas . una. / boralia . duas.
Açiquiss . duas. Reqardanes quĩque in spiel. septem . Jn paradela
/ duas in quasaio. duas Jn orone . duas. Jn Sagadães
tres Jn bbrunido . duas. et fuit / una de . p . menendj Jn laeses .
duas. et fuit una de martino petri et alia de
paiam / in cristello .
una. Jn ualle maiorj una . et fuit doruilido . Jn soutello . una. Jn
/ Jn
arinus . una. Jn maciata. duas J (sic) lamas. una. et fuit de laurẽcio
/ et fontes. una. et fuit de petro budel . Jn caluanes .
una. et fuit de
irmigia / Jn lauri . una. et fuit de batalia . Jn ourol. una in agueta .
Jn auca . una. / in illauo . duas. et fuit una de formã et villa de
milio . una. et
fuit / de michaele de sereẽs. Jn aueiro . tres . et fuit una de
pelagio da / poza in sáá . una. in isgeira . tres . villario . una . Jn
exxio . tres . / Jn Oes. dagada . una. . hoc est forũ
quod / debet facere quando Dominus . Rex fuerit in
fosado uel / / in
oste uel in anudoua debẽt ire cum suo corpore et debẽt / leuare unum.
poldrũ et unũ scutũ et unã lãceam et debent / stare cõ suo corpore .
septem . domaas et debẽt cõtare post / quam exeãt de sua casa et quando
fuerĩt inn (sic) anudoua nõ / debẽt facere nisi mãdare cõ una uara in
sua manu / et si forte nõ fuerĩt cõ illa . debẽt pectare . septem .
braga / es quas tãtum solebãt pejtare in tẽpore de uestro patre /
et
modo. posuerũt pro . decem .
Esta zona do Vouga, que interpretamos como sendo do primitivo julgado do mesmo nome, vastíssima, como se vê, era grandemente tributária: recolhem-se deste Rol 37 nomes de terras,
todos identificáveis, sobrevivendo em vocábulo muito aproximado ao que o escrivão nos transmitiu, por
ele latinizado para
acompanhar a forma que tinha de dar ao inventário oficial que estava fazendo. Vai de Cristelo (ao Norte) até Arinhos (ao Sul).
Para melhor compreensão, traçámos o seguinte quadro de
equivalências, dispondo alfabeticamente os topónimos latinos:
TOPÓNIMO REGISTADO NO ROL |
SEU EQUIVALENTE ACTUAL |
Açiquiss |
Assequins, freguesia de Águeda |
Agueta |
Águeda, freg. do mesmo nome |
Alfelas |
Alféloas, freg. de Arcos |
Arcus |
Arcos, freg. do mesmo nome |
Arinus |
Arinhos, freg. de Ventosa do Bairro |
Auca |
Ouca, freg. de Soza |
Aueiro |
Aveiro, hoje distribuído por várias freguesias |
Auelaas |
Avelãs, (de Caminho? de Cima?); ambas são freguesia; se considerarmos que em 1354 D. Afonso IV dotou a Infanta D. Maria,
sua neta, com as vilas de Ílhavo, Verdemilho, Préstimo, Arcos, Crastovães, Quintela, Carvalhais, Ferreiros, Casais de Espinhel, Seia,
Casal de João Dulveira, Ponte de Almeara e Avelãs de Cima (Hist. Gen.
− Provas) concluiremos que esta seria terra da coroa, pelo menos
parcialmente, e por essa razão identificamos com ela o topónimo Auelaas,
do Rol, que algumas dezenas de anos antes lá fixava o quantitativo do
tributo a pagar à coroa por efeito de cavalaria |
Boralia |
Borralha, freg. de Águeda |
Brrunido |
Brunhido, freg. de Valongo |
Caluanes |
Calvães, freg. de Alquerubim |
Cristello |
Cristelo, freg. da Branca |
Exxio |
Eixo, freg. do mesmo nome |
Fontes |
Fontes, freg. de Alquerubim |
Illauo |
Ílhavo, freg. do mesmo nome e da invocação de
S. Salvador |
Isgeira |
Esgueira, freg. do mesmo nome |
Lamas |
Lamas, freg. de Lamas do Vouga |
Lauri |
Loure, freg. de S. João de Loure |
Laeses |
Lanheses, freg. de Valongo |
Maciata |
Macinhata, freg. do mesmo nome |
Mogofores |
Mogofores, freg. do mesmo nome |
Oes |
Ois do Bairro, considerada a
sua relação topográfica
com os topónimos vizinhos. É freguesia |
Oes dagada |
Ois da Ribeira, freg. do mesmo nome |
Orone |
Oronhe, freg. de Espinhei |
Ourol |
Eirol, freg. do mesmo nome |
Paradela |
Paradela, freg. de Espinhei |
Quasaio |
Casainho, freg. de Espinhel |
Reqardanes |
Recardães, freg. do mesmo nome |
Saa |
Sá, lugar actualmente
incorporado em Aveiro Segadães, freg. do mesmo
nome |
Sagadães |
Segadães, freg. do mesmo
nome |
Sereẽs |
Sorens, freg. de Vagos |
Soutello |
Soutelo, freg. da Branca |
Spiel |
Espinhel, freg. do mesmo nome |
Ualle maiorj |
Vale Maior, freg. do mesmo nome |
Uauga |
Vouga, freg. de Lamas do Vouga |
ViIla de milio |
Verdemilho, freg. de Arada |
ViIlario |
Vilarinho, freg. de Cacia, considerando a sua relação
topográfica com os topónimos vizinhos; mas na região existem muitos
outros Vilarinhos. |
Que condições reuniriam as terras acima relacionadas, ocorre agora
perguntar, para serem elas e não outras as chamadas à
prestação do serviço militar individual e, mais tarde, a responder pelo
pagamento da tributação das cavalarias do julgado do Vouga? Muitas outras
havia, seguramente, de maior importância, ao lado de algumas destas.
E qual o critério que presidiu à distribuição do encargo? Por onde se
avaliava a capacidade tributária?
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158 /
Espinhel, respondia por sete; Recardães, por cinco; Aveiro, por três;
Águeda, por uma; Ílhavo, por duas. Etc.
A par dos subsídios de natureza toponímica fornecidos pelo Rol, alguns
nomes o documento regista que são indubitavelmente antropónimos; assim
por exemplo: em Aveiro, Pelagius da Poza; em Brunhido, P. MenendJ; em
Fontes, Petrus Budel; em Lamas, Laurencius; em Lanheses,
Martinus
Petri e Paiam; em Ois do Bairro, Martinus Laurencij; em Sorens,
Michael.
Com menor convicção, mas tanto quanto a construção gramatical do
documento − instável, aliás − o consente, apontaremos ainda quatro: em
Calvães, lrmigia; em Ílhavo, Formam; em Loure, Batalia; e em Vale
Maior, Oruilido.
Tanto estes como os anteriores são nomes que, desacompanhados de
história, nada só por si nos dizem; mas ficam registados; podem
subsidiar outras passagens em que ocorram; e, em última análise, servem
para a formação do onomástico distrital na Idade Média, empreendimento
em que é absolutamente necessário começar a pensar, pelo alto
significado científico e social de que se reveste.
Haverá de relacionar-se o Rol das cavalarias do Vouga com aquela
provisão de 2 de Abril da era de 1303 (1265), que determinava, entre
outras incumbências, o apuramento «das herdades, possuídas de
Cavalaria por Cavaleiros ou Ordens, desde o tempo d'EI Rey, seu Avô, e
Pay, e sobre as obrigações dos mesmos possuidores de contribuirem como
os Vilaons, não privilegiados, com os Direitos devid.os»(2)?
Nas Memórias, abaixo citadas, algumas inquirições do termo do Vouga se
apresentam, mas verificámos a falta de concordância de todas elas com o
âmbito e o objecto do Rol das Cavalarias. A de ano incerto, relacionada
a págs. 29 e segs. como de D. Afonso II, titulada de lnquisitiones de
Juribus,
quod Rex habet in terram de Agueda, et de Vauga, in Colimbriensi
Civitate et Episcopatu, et in aliis locis in Registro contentis,
abrange, no distrito de Aveiro, as localidades de «Cambria, Palmaz,
Figueiredo, Avranca, Antoana, Fermelãa, Louri, Alcarouvî, ValI e Maior,
Vouga, Vallongo, Covelos, Sagadaes, Requeixo, Oes, Espinel, Recardaes,
Agada, Agada de Sussan, Carvallaes, Macinata, Agada de Sussan, Sancto
Galios, S. Lourenço, Arcos, Erada».
Uma outra, não datada, sobre os reguengos e foros
del Rei que se achavam
sonegados, principia em Alquerubim e termina em Recardães (págs.
II9-120); e há também um fragmento de
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inquirição do antigo distrito da Beira Baixa em que se inclui «Vouga,
Valongo, Loure, Forosos, Soozo, Pinheiro, Figueireôo, Arouca, e VaI
Maior ».
Abrangendo área mais extensa que todas estas, outra sabemos existir,
inédita ainda. Enquanto esse magnífico material se não tornar acessível,
é impossível construir seja o que for, definitivo, com pretensões a
história local. Mas a Torre do Tombo, infelizmente, fica longe.
À cavalaria, à anúduva e à
hoste, isto é, ao serviço militar medieval e
ao glorioso movimento da reconquista cristã que criou Portugal, se
referem os dois pedacitos de pergaminho cuja leitura na integra pela
primeira vez se apresenta ao público. Trinta e sete nomes de terras do
nosso distrito, e doze de pessoas, a par das muitas centenas deles que
doutros documentos constarão, ficam indelevelmente ligados ao período
heróico da Nacionalidade; tanto basta, cremos nós, para que nos seja
grata a memória do anónimo escrivão que permitiu, com seus sucintos
apontamentos, integrar as nossas humildes terras na grandiosidade desses
momentos da história de Portugal.
ANTÓNIO GOMES DA ROCHA
MADAHIL |