SERÉM e MarneI, dois
encantadores rincões da nossa paisagem, contrastam frente a frente, aos lados da ponte da estrada nacional
sobre o Vouga. Um espraia-se amplo,
risonho, com as claras águas do rio serpeando alegres.
O outro concentra-se meditativo e mesto na serenidade verdejante da água quêda e espelhante.
E ambos estão agora na ordem do dia.
Em Serém acaba de inaugurar-se a primeira pousada construída pelo Secretariado da Propaganda Nacional no distrito de
Aveiro, em sequência do intuito de mostrar as belezas do nosso
país aos portugueses, que as ignoram, e aos estrangeiros que
as querem ver.
E porque não será a segunda junto ao
Castelo da Feira,
onde tantos elementos apreciáveis já existem para tal realização?
Puseram em evidência o MarneI as escavações no Cabeço
do Vouga patrocinadas pelo benemérito Sousa Baptista, a visita
da Junta Nacional de Educação a essa estação luso-romana e
o proficiente relatório publicado no anterior volume deste
Arquivo, págs. 227 e 313, e em separata(1), que amável e lisongeiramente cita a minha modesta referência à linda paisagem.
A estas duas jóias da natureza engastadas no nosso distrito
e a uma terceira que enflora a arte portuguesa me vou referir.
Existe na biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa
uma preciosidade de iluminura. É o Pontificales missæ, feito
por Estêvão Gonsalves Neto que assinou o frontispício como abbas Sereiiensis. Alguém leu
abade sereiense, outros viram
serenense, e localizou-se em Serém a feitura desse primor de
paciente e artística beleza.
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Quando, no começo de 1925, completei o meu romance
Os Senhores do Marnel,
referi-me a essa jóia da arte seiscentista em dois trechos.
Transcrevo-os porque nem só de pão vive o
homem, e a amenidade literária quadra por vezes aos espíritos
preocupados de ciência e erudição dos leitores deste Arquivo.
Com respeito ao recanto encantador do MarneI esbocei o
quadro:
«Toda a paisagem é límpida e serena, digna de inspirar
a grande alma dum artista mimoso como Estêvão Gonsalves
Neto e de esmaltar, viçosa e calma, as lindíssimas iluminuras do portentoso missal que
este abade seiscentista
coloriu ali nos arroubamentos de Serém, depois ofereceu ao
bispo D. João Manuel e onde celebrou na tenuidade das
delicadas cores a beleza deliciosa e suave daquela região».
Mais adiante, de novo fiz referência ao missal do pároco
artista e às margens do Vouga:
«Quando ao dar a volta para a estrada real se lhes
deparou um muro alto que excediam algumas copas de
árvores, o João Fernandes explicou que ali fora o convento de Serém, onde
um artístico abade começara a pintar um
belo missal «iluminado e iluminurado» − dizia o doutor com
cercaduras lindíssimas e páginas admiráveis que constituem perfeitos
quadros. Da história do convento pouco podia dizer-lhes. Fundara-o Diogo
Soares em 1635, concluindo-o seu filho Miguel Soares e era de capuchos
de Santo António. De notável só tinha o ser ali que Estêvão Gonsalves começou e em parte fez
a sua linda obra. A Dulce conhecia o célebre missal da Academia das
Ciências, tendo-o
apreciado muito quando o fora ver, tanto mais que também
ela se entretinha pintando alguma coisa e apreciava a arte
especial da iluminura. Penalizava-a não poder folhear de
novo essa maravilha. Podia facilmente. Estava às suas ordens na livraria
do Monte Reguengo uma bela cópia editada anos antes com todo o primor.
Visto ser apreciadora e manejar pincéis, recomendava-lhe que revisse a obra do inspirado
abade, onde era perfeitamente caracterizada, para quem a soubesse
examinar, a diferença entre
a parte feita ali, em longos anos de serena contemplação
das luminosas e quietas margens do Vouga, e a outra trabalhada em Viseu,
quando Estêvão Gonsalves já estava
cónego. Diverso era o ambiente e dissemelhante a inspiração. Nem se precisava atender às diferentes maneiras
como ele assinava».
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A esse tempo ainda me não tinha embrenhado em estudos
históricos e bebia nas fontes fáceis a resenha de factos indispensável para singrar na vida sem fama de ignorante.
Há na história portuguesa muitos episódios levianamente
fixados, provindos da crendice dos frades ou da fantasia dos
cronistas e incluídos nos compêndios e livros de divulgação de
conhecimentos, por mera inadvertência dos autores ou pela
velocidade adquirida na tolice que é uma das mais respeitáveis
forças sociais. Deitando-se a público e a par um acerto e uma
tolice, é quase inevitável que esta chegue mais cedo à meta da
vulgarização e aquele emperre e se imobilize em qualquer fútil
reparo de pechoso ou zoilo.
Vai-nos ficando quanto
avidamente apreendemos e se, pela
vida fora, nos dizem coisa diversa ou deparamos opinião em
contrário, sem reflectirmos nem atendermos, a nossa sensibilidade arrepia-se da inovação, do estranho, como de uma heresia.
Foi assim que ninguém reparou no anacronismo de se executar
esse paciente primor tendo a data de 1610, num mosteiro
começado em 1635, nem viu os dois ii do sereiiense desenhado
pelo Estêvão Gonsalves no frontispício do seu missal.
Um dia o meu amigo CARDOSO
Gonsalves, velho companheiro na direcção da
Academia de Estudos Livres e admirador
do primoroso iluminista, publicando um livro sobre este, deixou
escapar na revisão o sereiense com um único i e isto deu cuidados ao erudito e meticuloso arqueólogo dr. MAXIMIANO
DE
ARAGÃO.
Porque pusera dois ii no adjectivo da sua abadia o bom
do Estêvão Gonsalves? Não. Ali havia erro interpretativo. Sereiiense não podia provir de Serém. Serenense não era o
que lá estava. E, de rebusca em rebusca, veio a apurar-se a verdade.
Em sessão de 9 de Maio de 1929
− três anos e meio
depois de publicado o meu romance − o dr. ANTÓNIO BAlÃO
comunicou à Academia das Ciências de Lisboa as investigações
do dr. MAXIMIANO DE ARAGÃO.
Estêvão Gonsalves Neto foi abade de Santa Maria Madalena
de Sereijo, perto de Pinhel, desde 3 de Maio de 1613 a 3 de Junho de
1618. Nunca foi abade de Serém, de cujo convento
a primeira pedra foi lançada a 16 de Abril de 1635, oito anos
depois dele ter morrido a 29 de Julho de 1627. E não podem
restar dúvidas. No arquivo de S. Vicente de Fora está o livro
de assentos paroquiais de Sereijo, no qual o próprio Estêvão
Gonsalves lançou o seu termo de posse e foi lavrando registos
até ao último baptismo na data referida.
O ano de 1610 posto no frontispício marca talvez o início
da monumental obra, começada portanto antes da ida do artista
para a sua paróquia, onde posteriormente faria essa página de
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rosto. Em que lugar começou o futuro abade o seu meticuloso trabalho?
Virá um dia a descobrir-se?
Uma certeza adquiriu o dr. MAXIMIANO DE ARAGÃO: não foram a calma e
linda paisagem do MarneI nem as risonhas margens do Vouga que inspiraram
as belíssimas iluminuras do missal. Mas mereciam ter sido.
No entanto, devo esta rectificação; e, visto que ela interessa ao nosso
distrito e não conto reeditar o meu romance, aqui a deixo no Arquivo;
porque, como ARISTÓTELES, apesar de muito amigo do MarneI, sou mais
amigo da verdade.
Feira, 17 de Junho de 1942.
VAZ FERREIRA |