Vaz Ferreira, Marnel, Serém e Estêvão Gonsalves, Vol. VIII, pp. 102-105.

MARNEL, SERÉM

E ESTÊVÃO GONSALVES

SERÉM e MarneI, dois encantadores rincões da nossa paisagem, contrastam frente a frente, aos lados da ponte da estrada nacional sobre o Vouga. Um espraia-se amplo, risonho, com as claras águas do rio serpeando alegres. O outro concentra-se meditativo e mesto na serenidade verdejante da água quêda e espelhante.

E ambos estão agora na ordem do dia.

Em Serém acaba de inaugurar-se a primeira pousada construída pelo Secretariado da Propaganda Nacional no distrito de Aveiro, em sequência do intuito de mostrar as belezas do nosso país aos portugueses, que as ignoram, e aos estrangeiros que as querem ver.

E porque não será a segunda junto ao Castelo da Feira, onde tantos elementos apreciáveis já existem para tal realização?

Puseram em evidência o MarneI as escavações no Cabeço do Vouga patrocinadas pelo benemérito Sousa Baptista, a visita da Junta Nacional de Educação a essa estação luso-romana e o proficiente relatório publicado no anterior volume deste Arquivo, págs. 227 e 313, e em separata(1), que amável e lisongeiramente cita a minha modesta referência à linda paisagem.

A estas duas jóias da natureza engastadas no nosso distrito e a uma terceira que enflora a arte portuguesa me vou referir.

Existe na biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa uma preciosidade de iluminura. É o Pontificales missæ, feito por Estêvão Gonsalves Neto que assinou o frontispício como abbas Sereiiensis. Alguém leu abade sereiense, outros viram serenense, e localizou-se em Serém a feitura desse primor de paciente e artística beleza. / 103 /

Quando, no começo de 1925, completei o meu romance Os Senhores do Marnel, referi-me a essa jóia da arte seiscentista em dois trechos. Transcrevo-os porque nem só de pão vive o homem, e a amenidade literária quadra por vezes aos espíritos preocupados de ciência e erudição dos leitores deste Arquivo.

Com respeito ao recanto encantador do MarneI esbocei o quadro:

«Toda a paisagem é límpida e serena, digna de inspirar a grande alma dum artista mimoso como Estêvão Gonsalves Neto e de esmaltar, viçosa e calma, as lindíssimas iluminuras do portentoso missal que este abade seiscentista coloriu ali nos arroubamentos de Serém, depois ofereceu ao bispo D. João Manuel e onde celebrou na tenuidade das delicadas cores a beleza deliciosa e suave daquela região».

Mais adiante, de novo fiz referência ao missal do pároco artista e às margens do Vouga:

«Quando ao dar a volta para a estrada real se lhes deparou um muro alto que excediam algumas copas de árvores, o João Fernandes explicou que ali fora o convento de Serém, onde um artístico abade começara a pintar um belo missal «iluminado e iluminurado» − dizia o doutor  com cercaduras lindíssimas e páginas admiráveis que constituem perfeitos quadros. Da história do convento pouco podia dizer-lhes. Fundara-o Diogo Soares em 1635, concluindo-o seu filho Miguel Soares e era de capuchos de Santo António. De notável só tinha o ser ali que Estêvão Gonsalves começou e em parte fez a sua linda obra. A Dulce conhecia o célebre missal da Academia das Ciências, tendo-o apreciado muito quando o fora ver, tanto mais que também ela se entretinha pintando alguma coisa e apreciava a arte especial da iluminura. Penalizava-a não poder folhear de novo essa maravilha. Podia facilmente. Estava às suas ordens na livraria do Monte Reguengo uma bela cópia editada anos antes com todo o primor. Visto ser apreciadora e manejar pincéis, recomendava-lhe que revisse a obra do inspirado abade, onde era perfeitamente caracterizada, para quem a soubesse examinar, a diferença entre a parte feita ali, em longos anos de serena contemplação das luminosas e quietas margens do Vouga, e a outra trabalhada em Viseu, quando Estêvão Gonsalves já estava cónego. Diverso era o ambiente e dissemelhante a inspiração. Nem se precisava atender às diferentes maneiras como ele assinava». / 104 /

A esse tempo ainda me não tinha embrenhado em estudos históricos e bebia nas fontes fáceis a resenha de factos indispensável para singrar na vida sem fama de ignorante.

Há na história portuguesa muitos episódios levianamente fixados, provindos da crendice dos frades ou da fantasia dos cronistas e incluídos nos compêndios e livros de divulgação de conhecimentos, por mera inadvertência dos autores ou pela velocidade adquirida na tolice que é uma das mais respeitáveis forças sociais. Deitando-se a público e a par um acerto e uma tolice, é quase inevitável que esta chegue mais cedo à meta da vulgarização e aquele emperre e se imobilize em qualquer fútil reparo de pechoso ou zoilo.

Vai-nos ficando quanto avidamente apreendemos e se, pela vida fora, nos dizem coisa diversa ou deparamos opinião em contrário, sem reflectirmos nem atendermos, a nossa sensibilidade arrepia-se da inovação, do estranho, como de uma heresia.

Foi assim que ninguém reparou no anacronismo de se executar esse paciente primor tendo a data de 1610, num mosteiro começado em 1635, nem viu os dois ii do sereiiense desenhado pelo Estêvão Gonsalves no frontispício do seu missal.

Um dia o meu amigo CARDOSO Gonsalves, velho companheiro na direcção da Academia de Estudos Livres e admirador do primoroso iluminista, publicando um livro sobre este, deixou escapar na revisão o sereiense com um único i e isto deu cuidados ao erudito e meticuloso arqueólogo dr. MAXIMIANO DE ARAGÃO.

Porque pusera dois ii no adjectivo da sua abadia o bom do Estêvão Gonsalves? Não. Ali havia erro interpretativo. Sereiiense não podia provir de Serém. Serenense não era o que lá estava. E, de rebusca em rebusca, veio a apurar-se a verdade.

Em sessão de 9 de Maio de 1929 − três anos e meio depois de publicado o meu romance − o dr. ANTÓNIO BAlÃO comunicou à Academia das Ciências de Lisboa as investigações do dr. MAXIMIANO DE ARAGÃO.

Estêvão Gonsalves Neto foi abade de Santa Maria Madalena de Sereijo, perto de Pinhel, desde 3 de Maio de 1613 a 3 de Junho de 1618. Nunca foi abade de Serém, de cujo convento a primeira pedra foi lançada a 16 de Abril de 1635, oito anos depois dele ter morrido a 29 de Julho de 1627. E não podem restar dúvidas. No arquivo de S. Vicente de Fora está o livro de assentos paroquiais de Sereijo, no qual o próprio Estêvão Gonsalves lançou o seu termo de posse e foi lavrando registos até ao último baptismo na data referida.

O ano de 1610 posto no frontispício marca talvez o início da monumental obra, começada portanto antes da ida do artista para a sua paróquia, onde posteriormente faria essa página de / 105 / rosto. Em que lugar começou o futuro abade o seu meticuloso trabalho? Virá um dia a descobrir-se?

Uma certeza adquiriu o dr. MAXIMIANO DE ARAGÃO: não foram a calma e linda paisagem do MarneI nem as risonhas margens do Vouga que inspiraram as belíssimas iluminuras do missal. Mas mereciam ter sido.

No entanto, devo esta rectificação; e, visto que ela interessa ao nosso distrito e não conto reeditar o meu romance, aqui a deixo no Arquivo; porque, como ARISTÓTELES, apesar de muito amigo do MarneI, sou mais amigo da verdade.

Feira, 17 de Junho de 1942.

VAZ FERREIRA

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(1) ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL, Estação luso-romana do Cabeço do Vouga − I − Terraço subjacente à Ermida do Espírito Santo ou da Vitória; Coimbra, 1941.

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