PROMETI, há pouco, ao meu
prezado amigo dr. FRANCISCO FERREIRA NEVES, uma pequena colaboração no
Arquivo do Distrito de Aveiro. Eu sei que não deveria aceder a
esse
gentil convite, não pela pessoa que tão benévola
se mostrou comigo naquela visita cativante, mas pela insuficiência dos
meus merecimentos literários, e − porque o não hei-de dizer? − também
pela minha velhice, que já vai sendo bem
pesada e veloz na ladeira do esquecimento final.
Tenham paciência, por isso, os meus leitores, se agora, nesta idade, eu
venho trazer-lhes numa nota, até certo ponto discordante, a recordação
de algumas memórias da minha vida, escabrosa e longa, é certo, através
de um jornalismo findo, também longo e apagado, mas a culpa não é minha.
Essa responsabilidade pertence àquele director desta interessante e
valiosa publicação regional.
Divagando, pois, sobre algumas páginas da minha vida passada, recordo
hoje, nesta entrada humilde no salão de pedras preciosas do Arquivo, as
festas que se realizaram em Aveiro, há catorze anos, sobre o
centenário
do movimento liberal de 1828.
É certo que, a princípio, também me quis
recusar a tomar parte nelas − e o dr. ALBERTO SOUTO sabe bem o que se
passou nesse sentido − mas,
Isto de ser delicado...
Tem suas inconveniências,
como diria JOÃO SARAIVA na espirituosíssima blague sobre umas recepções
diplomáticas no palácio de Belém, quando era chefe de estado o sr.
conselheiro Bernardino Machado − e lá me agarraram como um pardal numa
gaiola, ficando assim subjugado à minha imprevidência.
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82 /
Nessas festas, havia uma parte dedicada a Verdemilho, que
não é um lugar tanto obscuro e insignificante, como se diz na Sentença da Alçada, de 25 de Novembro de 1829, e, por isso,
lá fui ler o discurso pedido, que pouco antes escrevi. Dele só
foi publicado um pequeno excerto no "Diário de Notícias", por instigações
do sr. Armando Boaventura. Publicando-o hoje na
íntegra, sem a mais pequena modificação, embora a pudesse
fazer, apenas lhe acrescentarei algumas notas, que julgo necessárias e oportunas.
Meus Senhores
Eu entro sempre neste recinto com uma profunda
comoção. Por aqui vive, na terra que pisamos, na relva
dos túmulos ou nas floritas que se erguem para o sol,
curvadas com o peso dos orvalhos da manhã, restos
daquele sangue que me deu vida, restos de minha família
que se apagaram no silêncio da morte. É uma amargura,
bem o sei e bem a sinto, mas é forçoso reagir contra isso
na hora solene que é devida a quem foi um dos maiores paladinos da nossa
terra e da nossa liberdade.
Pela liberdade e pela pátria o
Dr. Joaquim José de
Queirós padeceu os maiores martírios. Deputado da nação
portuguesa, desembargador da Baía e depois da Relação
do Porto, ministro com o Marechal Saldanha, ocupando os
mais altos cargos da vida constitucional, se não teve pendurada a sua cabeça num poste colocado em frente da casa
onde viveu, por ter fugido à tirania miguelista, e digo
ter fugido porque seria um suicídio não fugir e até uma cobardia abandonar os seus companheiros que marcharam
para a Galiza, para a Ilha Terceira, para o Mindelo e para
o cerco do Porto, ele sofreu as maiores agruras. Se os
velhos pinheiros do Bonsucesso e da Quinta do Picado
pudessem falar, se a mina que existia entre um silvado da
Fonte da Arregaça pudesse dizer alguma coisa, se os barqueiros que o conduziram a Ovar pudessem levantar-se do
seu túmulo e dizer o que se passou naquela noite da sua
viagem tormentosa através da ria, se toda essa epopeia de
esperanças e martírios pudesse mostrar-se numa página
nítida de verdade, poderíamos reconstituir o que foi esse
período agitado que há 100 anos fez tremer os alicerces da
nossa nacionalidade. Sem isso, sem esses elementos, fica
tudo num claro-escuro que Rembrandt, se aqui vivesse, e
vivesse no nosso tempo, poderia reproduzir num quadro
interessante da nossa história.
Eu sei, e todos nós sabemos, que nas lutas entre constitucionais e absolutistas houve valores autênticos de boa
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vontade, de inteligência e heroicidade. Se eu pudesse, e quisesse,
desenvolver uma página mais completa do que foi o movimento
revolucionário de 1828, teria de recordar elementos antagónicos que
descansam na paz perpétua deste recinto fúnebre. Todos, é bom dizer-se,
pugnaram valentemente pelo seu ideal, com mais ou menos tirania, como
é próprio das fraquezas humanas, com mais ou menos ferocidade, mas com os
olhos, eu o creio, fitos na liberdade e na independência da sua pátria.
Ambos os partidos que se degladiavam eram como duas águias que voassem
no espaço. Era águia aquela que voava sobre a crista pedregosa e gelada
das montanhas, mas era águia também a que voava sobre a copa verde
glauca das florestas.
As paixões políticas, como
todas as paixões, têm
excessos que chegam a ser criminosos. Eu, e todos os que estão a sofrer
a maçada de me ouvir, não podemos concordar com a pena de morte. Manuel
José Mendes Leite, que foi um alto espírito de liberdade e colaborador
da obra liberal de Joaquim José de Queirós, teve razão, e por isso deve
estar tranquilo no seu túmulo, quando propôs no parlamento, para os
crimes políticos, a abolição dessa pena. A morte, quando não é natural,
admite-se no fragor dos combates, mas eu não concordo com ela em
sentenças de juízes, que muitas vezes podem ser mais criminosos do que
os próprios réus.
Convidado para falar neste lugar, o que é, certamente, uma honra que não
mereço, eu não posso deixar de verberar todos esses crimes que se
cometeram sob o regime do legitimismo, como verbero também crimes
idênticos que
se cometeram à sombra da liberdade. Este mesmo amor à
justiça e à liberdade predominou no coração e no génio
audaz do grande tribuno José Estêvão Coelho de Magalhães, quando foi
defender o jornal legitimista "Portugal Velho".
Eu não quero, portanto, afrontar a memória de alguns partidários de D.
Miguel que jazem neste mesmo cemitério. Se Joaquim José de Queirós
pudesse quebrar aquela pedra
de granito e levantar a sua cabeça do caixão em que está encerrado,
teria talvez um sorriso de fraternidade e amor
para tornar a dormir sossegado junto dos seus companheiros de jazigo, porque é no túmulo que
todas as paixões se apagam. A
Igreja tem razão, quando recorda aos homens que são pó e em pó se hão-de
tornar.
São estas, também, as palavras com que torno pública a minha
consciência, talvez na antecâmara do meu sepulcro, junto aos ossos de
meus pais, restos de uma vida com que
quero amar a vida dos meus filhos. Disse CALDERON DE LA
BARCA − «La vida es sueño», e é; a vida é um sonho.
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Nas cordilheiras dos Andes, houve, há dois ou três anos,
um duelo singular entre uma águia e uma serpente. Uma
ou outra fez o ataque. A águia, enroscada pela serpente,
voou para as alturas, soltando gritos de desespero. A serpente, por seu lado, assobiava, numa ferocidade diabólica,
espicaçada pela águia, até que, extinto o esforço da luta,
caíram ambas extenuadas e mortas sobre a terra ou pedras da montanha.
Estes fenómenos que se passam nas serras
ou nos arvoredos, passam-se também na vida dos homens e das nações.
Foi grande a luta entre legitimistas e constitucionais,
mas é de justiça constatar que, de parte a parte, como na luta da águia
com a serpente, houve esforços de verdadeiro
heroísmo, e que esses esforços não eram produzidos, muitas
vezes, por mesquinhos interesses pessoais. Embora por caminhos diversos,
todos amavam a sua pátria com o
mesmo culto com que amavam a sua religião.
E, a propósito de convicções religiosas, eu devo acentuar que Joaquim José de Queirós, apesar de se dizer o
contrário, não foi um descrente. Trazendo do Brasil o seu
cozinheiro Mateus e um outro serviçal de nome Pedro, ambos de cor preta,
e a velha Laureana, de cor mulata,
que eu conheci e que muitas vezes preparou jantares em
minha casa, fê-los baptizar nesta freguesia, pondo-os em
conta corrente com os preceitos da Igreja Católica.
Eu sei que é tempo de terminar estas minhas palavras
desataviadas e monótonas. Parece que ouço, meus senhores, no vosso cansaço, repetir-se a objurgatória terrível de
Cícero a Catilina − até quando abusarás da nossa paciência?
Mas eu vou terminar.
Não o farei, porém, sem fazer umas considerações finais que se impõem
nesta ocasião e, sobretudo, nesta terra.
São dois minutos apenas em que continuo a abusar da
vossa bondade.
O culto da liberdade, que foi uma das características
de Joaquim José de Queirós, reflectiu-se na orientação romântica e
realista de seu neto JOSÉ MARIA DE EÇA DE
QUEIRÓS, vulto eminente da literatura portuguesa, que só
por acaso nasceu na Póvoa de Varzim, mas que foi aqui, não
direi gerado, mas criado na casa de seus pais. Isto mesmo
se depreende do que ele próprio diz numa carta dirigida a OLIVEIRA
MARTINS, quando este o convidava a ir à Costa
Nova a qualquer festa da família de Luís de Magalhães, o
grande filho de José Estêvão, que eu tenho a honra de ver presente neste
mesmo recinto. Dizia EÇA DE QUEIRÓS nessa carta, escrita em 1884: − «Filho de Aveiro, educado na
Costa Nova, quase peixe da ria, eu não preciso que mandem ao meu encontro caleches e barcaças. Eu sei ir pelo
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meu próprio pé ao velho e conhecido palheiro de José Estêvão.»
Parece-me que este facto,
conjugado com a sua residência em casa de seu pai, que só por afazeres
da sua
profissão saía desta terra, pode habilitar-me a dizer, além doutros
argumentos, que EÇA DE QUEIRÓS era de Verdemilho. Tenho, por isso,
orgulho de nascer e viver na terra onde
viveu Joaquim José de Queirós e onde passou a infância o seu neto
glorioso, companheiro querido de RAMALHO ORTIGÃO, do Conde de ARNOSO, do
Conde de SABUGOSA, de ANTÓNIO CÂNDIDO, de PINHEIRO CHAGAS, de CARLOS
LOBO DE ÁVILA, de ANTERO DE QUENTAL e de muitos outros que continuaram
uma outra geração constituída de políticos como Mouzinho da Silveira,
Marechal Saldanha, Duque de Palmela, etc., e de intelectuais como
ALEXANDRE HERCULANO, REBELO DA SILVA, GARRETT, CASTILHO, ANDRADE CORVO,
BULHÃO PATO, Conde do CASAL RIBEIRO e muitos outros, que, se não eram
heróis, como José Estêvão, Mendes Leite e Joaquim
José de Queirós, tisnados pelo calor das batalhas, como os mártires
dessa época revolta da nossa história, como os mártires da Tessália,
como os mártires de Marrocos, como os mártires de todos os tempos e de
todos os povos, foram, todavia, uma geração que nos assombrou com a luz
brilhante do seu talento e do seu grande amor à liberdade.
Assim falei nessa luminosa tarde de 16 de Maio de 1928.
Se melhor não disse, é porque me não foi possível falar melhor:
Pilriteiro, que dás pilritos,
Porque não dás coisa boa?
Cada um dá o que tem
Conforme a sua pessoa...
Alguém se referiu, então, às intolerâncias políticas e religiosas
desse
tempo. Não as deveria haver, porque são sempre um erro. A liberdade,
quando compreendida na sua expressão sem mácula, sem excessos ou paixões
desabridas, deve ser como o sal na cozinha, − nem tanto aquém nem tanto
além. Já um prelado ilustre assim a compreendia, e eu sempre o aplaudi.
Madame Roland, mulher de extraordinária coragem e celebrada pelo seu
amor à república e pela sua influência no partido dos girondinos, no
caminho do cadafalso, em 1793, ao passar pela estátua da liberdade, não
se pôde conter e bradou: «Oh Liberté, que de crimes on commet en ton
nom!» − E, na verdade, assim foi sempre e assim será, infelizmente. A
liberdade que é para uns, deve ser para todos. O contrário é
individualismo egoísta e nada mais.
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De resto, os sentimentos em crenças de Joaquim José de
Queirós foram bem conhecidos e manifestados à luz de toda a
gente, embora a calúnia caísse muitas vezes sobre ele e sobre
os seus companheiros, quando explodiam violentas as refregas
revolucionárias. Nem ele nem muitos dos seus companheiros
seriam capazes de sancionar o morticínio infamíssimo dos
Craveiros, no trágico palheiro de Quintãs. O próprio bispo de
Aveiro, D. Manuel Pacheco de Resende, acompanhou os liberais
em muitas das suas decisões para o triunfo do constitucionalismo.
Não há, não houve nem deve haver, portanto, antagonismo algum
entre religião e liberdade. Se alguém assim não pensou, esse
alguém cultivava uma inteligência selvagem, excepcionalmente
individualista e sem razão de existir.
Os liberais não tiveram motivos de queixa contra os legitimistas da terra, porque bem sabiam que não haveria aqui uma
única pessoa capaz de fazer uma denúncia que os levasse à pena
de morte. Joaquim José de Queirós conseguiu andar bastante tempo, sem
que os seus conterrâneos descobrissem o seu paradeiro, por entre as casas e valados de Verdemilho e do Bonsucesso.
Durante algum tempo, pôde estar escondido na mina da fonte
da Arregaça e em outros subterrâneos do Crasto(1), onde os
serviçais lhe levavam mantimentos escondidos em um cântaro
de água. Pôde ir pela ria para Ovar numa bateira carregada
de bajunça, escapando então a uma busca que os esbirros lhe
fizeram, sem saberem que o estavam calcando, nas alturas de
Cacia. Tudo isto e muitos outros episódios que ainda há poucos
anos eram contados pelas pessoas mais velhas destes sítios nos
seus trabalhos agrícolas ou nos seus serões à lareira. E não o
acusaram, porque bem sabiam que a denúncia é a pior nota que pode ferir
o coração humano e porque sabiam também
respeitar as qualidades que tanto enobreciam o seu carácter
altivo e nobre, generoso e digno, em tudo, da sociedade em
que vivia.
Eu ainda conheci, embora
quase em ruína, a casa de Verdemilho que pertenceu a Joaquim José de Queirós. Destoava, por
completo, das outras construções, e mesmo de toda esta região.
Numa fachada de mais de 20 metros, pintada de amarelo, cor
que predominava também em compartimentos interiores, havia
um portal de granito com certa elegância, para o qual dava
acesso uma escadaria da mesma pedra, em cinco ou seis degraus.
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De cada lado havia três janelas e, em cima, numa cortina
ou platibanda de alvenaria em todo o comprimento, erguia-se
um brasão de armas que, ultimamente arreado, foi por mim
oferecido ao «Museu Regional de Aveiro» por especial amabilidade do seu possuidor de então. Nas extremidades da referida cortina
ou platibanda, ostentavam-se duas graciosas colunas de tamanho
proporcional àquele símbolo de nobreza. Nas traseiras,
levantava-se outra casa mais elevada, de construção diversa e mais
recente. Em frente do
edifício havia também um
pequeno jardim em todo o
comprimento, com três ou
quatro metros de largura, resguardado por um gradeamento de ferro chumbado
a
postes de granito.
Foi nessa casa, onde Joaquim José de Queirós viveu
e planeou muitas das suas ofensivas contra o regime absoluto, que viveu
também,
e ali passou a sua mais tenra mocidade, JOSÉ MARIA DE EÇA DE QUEIRÓS.
VIANNA MOOG, escritor brasileiro de boa e justa reputação, publicou
recentemente
um livro, por todos os motivos notável, a que pôs o título Eça de
Queirós e o século XIX.
Nele se faz um lúcido relato do nascimento e vida intelectual do
grande autor de tantas obras primas.
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Brasão de José Maria de Almeida Teixeira de Queirós que da
Casa de Verdemilho foi retirado para o Museu de Aveiro. |
Por ali se vê que EÇA DE QUEIRÓS teve a sua origem bastante nebulosa, o
que, aliás, em nada o diminui na plena
majestade do seu carácter e do seu talento privilegiado.
O pai, José Maria de Almeida Teixeira de Queirós,
que tanto
foi flagelado por desventuras seguidas(2), que foi um magistrado
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consciencioso, sem a viveza impetuosa de Joaquim José de
Queirós, é certo, mas ponderado e digno, poeta também, cujos
versos, no dizer de CAMILO CASTELO BRANCO, citado por aquele
ilustre publicista brasileiro, eram irisados e subjectivamente petrarquizados, dos melhores que então se melodiavam no alaúde trovadoresco, exercia, em 1845, o lugar de delegado em Ponte de
Lima e contava então 26 anos de idade. A mãe, D. Carolina
Augusta Pereira de Eça, que pertencia a uma família de militares distintos, «filha do coronel José António Pereira d'Eça,
que morreu por ferimentos recebidos nas linhas do Porto
em 1833, e irmã do general do mesmo nome», residia em
Viana do Castelo.
Era natural que, tratando-se de famílias ilustradas e de boa
educação, que naquelas terras do alto Minho se relacionassem,
promovendo visitas, passeios, jogos, sorrisos, tudo isso que
pode produzir amor e paixões, sobretudo na idade em que a luz
dos olhos tem certa influência no coração humano... Surgiram,
por isso, entre ambos, amizades íntimas. Amaram-se, e, desse
amor se gerou aquele fruto precioso que se chamou JOSÉ
MARIA DE EÇA DE QUEIRÓS e que foi um dos maiores vultos literários da raça latina.
D. Carolina, para manter incógnita a sua gravidez, permita-se esta expressão que em nada encerra sentido irreverente,
retirou-se de Viana do Castelo para a Póvoa de Varzim, onde,
na verdade, parece que a criança nasceu, conforme o testemunho de seus pais, e remetida, seis dias depois, para Vila do
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Conde, onde foi baptizada, e de onde seguiu, como afirma
VIANNA MOOG, «para a companhia de seus avós paternos, na casa de
Verdemilho. Ali passa EÇA a sua infância, ora nos joelhos do avô, de quem ouve as narrativas das guerras civis, ora
nos joelhos do preto trazido do Brasil, que lhe conta histórias
fantásticas, A lenda de Carlos Magno e a dos Doze Pares de
Inglaterra», etc.
Só depois de perfazer dez anos, acrescenta o distinto escritor brasileiro, «foi EÇA viver na cidade do
Porto, em companhia
dos pais que, já então fazia seis anos, tinham contraído matrimónio, e legitimado a sua filiação.»
Como se vê, nesse livro, e em muito mais,
fez-se muita luz sobre o caso, mas as névoas não desapareceram de todo. A retirada brusca, por exemplo, de Viana para a Póvoa e da Póvoa
para Vila do Conde, etc., deixa-nos uma certa dúvida sobre o
verdadeiro lugar do nascimento e, sobretudo, da terra em que
foi gerado. Além disso, as rivalidades das povoações que disputam a honra de ser o seu berço e de certos biógrafos, que
todos eram amigos de EÇA, aumentam essas dúvidas.
Nada disto, portanto, destrói as afirmativas do meu pobre
discurso no cemitério de Verdemilho. Disse eu que só por
acaso é que EÇA DE QUEIRÓS nascera na Póvoa de Varzim, mas
que era de Verdemilho. Se o não era, de onde era então?
Se nascesse em viagem no mar alto, poderíamos dizer que era filho de
tantos graus de latitude tal? Donde lhe veio essa
infiltração de sangue que lhe deu vida? Onde foi educado?
Que céu e que luz formou a sua mocidade? Formou-se em
Coimbra, esteve em Leiria, foi para Cuba, para Newcastle, para
Bristol e para a capital da França, onde faleceu no castelo de
Neuilly... A sua certidão de idade poderá dizer que nasceu em
outra parte, mas... mas é ele próprio que se diz filho de Aveiro.
Eu peço licença, sem animosidade alguma pela linda terra
do Minho, por essa boa terra de pescadores do norte, em que
o Cego do Maio se fez herói na sua luta com as convulsões do Oceano..., eu peço licença a essa terra de tão grandes tradições
e de tão variadas paisagens, para repetir que EÇA DE QUEIRÓS é
filho de Aveiro, onde seu avô foi um dos maiores paladinos
da liberdade, educado na Costa Nova, onde ouviu bramir o mar,
ao longe, mesmo em frente da casa de seus pais, quase peixe da
ria, com a malhada do Ourô a poucas dezenas de metros, em que passou os
melhores dias da sua infância(3).
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O grande morto faleceu em 17 de Agosto de 1900. A impressão da sua morte foi tremenda, não só em Portugal como em todo o mundo
civilizado. O seu ataúde não ficaria mal, como o de
VICTOR HUGO em noite de estrelas e luar, a ser velado pelos poetas da
França, ou como o de D. ANTÓNIO CANOVAS DEL CASTILLO
no balneário de Santa Águeda, com EMÍLIO CASTELAR a seu lado,
como que a rezar grandes conceitos de DONOSO CORTES, naquele
silêncio de sepulcro, sem querer pensar, apenas sentindo a dor
imensa do seu coração amargurado...
...A pena já estava a arrastar-me para um caminho que não
é bem aquele a que me impus quando prometi, ao dr. FRANCISCO
FERREIRA NEVES, escrever qualquer coisa para o Arquivo do
Distrito de Aveiro. Como recordação, eu deveria referir-me
àquela célebre carta que RAMALHO ORTIGÃO dirigiu de Veneza ao
Dr. Eduardo Burnay, mas... paremos aqui, porque, se me dão corda, não
sei onde irei parar. É que EÇA DE QUEIRÓS caiu como
uma estrela que no solo explodisse, espalhando muitas outras
estrelas.
Morrendo na sua residência perto do Havre, pediram ao
governo que fosse mandado ali um dos nossos navios de guerra que deveria
conduzir o cadáver para Portugal. E para onde?
Naturalmente para Lisboa e dali para Verdemilho, em cujo
cemitério se ergue o mausoléu de seu avô e doutras pessoas
de família.
Falou-se então em Aveiro
sobre a melhor forma de se receberem os preciosos restos mortais de JOSÉ MARIA DE EÇA DE QUEIRÓS e lá
estive eu em foco, como representante da terra,
por indicação e carinho do velho amigo Joaquim de Melo Freitas.
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Esboçaram-se diversos alvitres e lembro-me, até, que um deles
seria receber o cadáver em todo o percurso da rua de Verdemilho sob
muitos arcos de loureiros e carvalhos.
Por qualquer motivo, o corpo de EÇA DE QUEIRÓS não saiu
de Lisboa. Lá ficou no jazigo do Conde de Resende, irmão de D. Emília
Eça de Queirós, à espera que melhor oportunidade se oferecesse para a
sua condução para Verdemilho. Sempre
o nome de Verdemilho a impor-se como última terra em que o romancista
desejaria ficar em paz, na terra que foi a alma mater do seu espírito e
das primeiras auroras da sua infância.
Mas há mais. Em tempo, recebi a seguinte carta:
Costa Nova − Ílhavo
1932 − Novembro − 1
Meu caro e bom amigo
Escrevo-lhe à pressa, na véspera de deixar a Costa Nova. Amanhã sigo
para Coimbra, donde, no sábado próximo, regressarei directamente a
Moreira. Lá ficarei ao seu dispor.
O fim desta carta é pedir-lhe uma informação
sobre o jazigo
da família Queirós no cemitério de Verdemilho. Vi-o há 4 anos,
por ocasião do centenário do 16 de Maio. Tenho ideia de que é
uma campa muito simples, resguardada por uma grade de ferro. Precisava de saber como ela é interiormente e a sua capacidade.
É que a Sr.ª D. Emília Eça de Queirós, viúva do grande romancista, pensou em depositar ali os restos do seu ilustre marido, se
ela estivesse em condições de receber esse precioso despojo e, de
futuro, outras pessoas de família. Por isso lhe rogo a grande
fineza de me dar informes precisos e minuciosos sobre esse mausoléu para os transmitir àquela senhora. Eu creio, pelas minhas
recordações, que ela não satisfaz os requisitos desejados.
Queira responder-me depois de sábado, para evitar confusões de
correio,
visto a minha ausência. O meu endereço: Quinta do Mosteiro − Moreira
da Maia.
Com muitos votos pela sua saúde e bem estar, asseguro-o da
muita e velha estima e consideração que lhe consagra
o
seu amigo mt.º dedicado e obg.º
Luís de Magalhães
Em 1900, quando se falou em vir para Verdemilho o cadáver de Eça de
Queirós, descobriu-se o jazigo e lá vimos, numa catacumba, diversos
caixões, uns em cima dos outros. Para dar, todavia, melhor cumprimento
à carta de Luís de Magalhães, abriu-se de novo, estando presentes o Dr.
Alberto Souto e outros indivíduos, e as impressões recebidas não me
habilitaram a dar uma resposta satisfatória.
/
92 /
Luís de Magalhães voltou a escrever-me, eliminando eu
alguns períodos que julgo de carácter reservado:
Moreira
1932 − Dez.º, 22
Meu caro e prezado amigo
Tive o gosto de receber as suas
cartas de 15 e 20, que muito
lhe agradeço.
................................................................................................................................
O caso da construção do mausoléu precisa de ser muito pensado e conversado. Por isso convidei os nossos amigos Querubim
e Alberto Souto a darem-me o gosto duma visita a Moreira, indo todos,
depois, falar com a Sr.ª D. Emília Eça de Queirós, sobre o assunto.
Ela aceita, com o maior reconhecimento, a homenagem que,
com isso, se quer prestar ao seu ilustre marido. Só põe uma
condição: é que nesse túmulo se lhe reserve lugar para ela e para os
seus filhos, um dos quais já falecido. Compreendo que esta
condição tem de influir no plano da construção projectada.
Maior seria o meu prazer, se, por ocasião da vinda aqui
daqueles nossos dois amigos, o meu caro Acácio Rosa os quisesse
acompanhar.
Fazendo os mais sinceros votos que este Natal passe, em sua
casa, entre as maiores alegrias e o Novo Ano lhe seja, e a toda a
sua família, pródigo de venturas e prosperidades, peço-lhe que me
creia sempre, com velha e muita estima
am.º ded.º e gr.º
Luiz de Magalhães
A entrevista aludida não se chegou a realizar por diversos motivos. Não
sei, por isso, o que de futuro se possa resolver.
O que desde já se pode afirmar é que os restos mortais de Eça
de Queirós jazem provisoriamente num jazigo de Lisboa e que
sempre se tem falado em serem removidos para o cemitério de
Verdemilho. Não me consta que outra terra os pretenda receber
com direitos reconhecidos.
Não teria eu, por isso, razão para afirmar que EÇA DE
QUEIRÓS era de Verdemilho e que só por acaso veio à luz em outra parte?
Verdemilho, Maio de 1942.
ACÁCIO ROSA |