Acácio Rosa, Em ronda pelo passado, Vol. VIII, pp. 81-92.

N.º 30 − Junho, 1942

ARQVIVO

DO DISTRITO DE AVEIRO

Directores e proprietários:

ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL

FRANCISCO FERREIRA NEVES

JOSÉ PEREIRA TAVARES

Editor:

FRANCISCO FERREIRA NEVES

Administração:

Estrada de Esgueira − AVEIRO


Composto e impresso na Tipografia da Gráfica de Coimbra − Largo da Feira, 38 − COIMBRA


EM RONDA PELO PASSADO

I

PROMETI, há pouco, ao meu prezado amigo dr. FRANCISCO FERREIRA NEVES, uma pequena colaboração no Arquivo do Distrito de Aveiro. Eu sei que não deveria aceder a esse gentil convite, não pela pessoa que tão benévola se mostrou comigo naquela visita cativante, mas pela insuficiência dos meus merecimentos literários, e − porque o não hei-de dizer? − também pela minha velhice, que já vai sendo bem pesada e veloz na ladeira do esquecimento final.

Tenham paciência, por isso, os meus leitores, se agora, nesta idade, eu venho trazer-lhes numa nota, até certo ponto discordante, a recordação de algumas memórias da minha vida, escabrosa e longa, é certo, através de um jornalismo findo, também longo e apagado, mas a culpa não é minha. Essa responsabilidade pertence àquele director desta interessante e valiosa publicação regional.

Divagando, pois, sobre algumas páginas da minha vida passada, recordo hoje, nesta entrada humilde no salão de pedras preciosas do Arquivo, as festas que se realizaram em Aveiro, há catorze anos, sobre o centenário do movimento liberal de 1828. É certo que, a princípio, também me quis recusar a tomar parte nelas − e o dr. ALBERTO SOUTO sabe bem o que se passou nesse sentido − mas,

Isto de ser delicado...
Tem suas inconveniências,


como diria JOÃO SARAIVA na espirituosíssima blague sobre umas recepções diplomáticas no palácio de Belém, quando era chefe de estado o sr. conselheiro Bernardino Machado − e lá me agarraram como um pardal numa gaiola, ficando assim subjugado à minha imprevidência.
/ 82 /

Nessas festas, havia uma parte dedicada a Verdemilho, que não é um lugar tanto obscuro e insignificante, como se diz na Sentença da Alçada, de 25 de Novembro de 1829, e, por isso,
lá fui ler o discurso pedido, que pouco antes escrevi. Dele só foi publicado um pequeno excerto no "Diário de Notícias", por instigações do sr. Armando Boaventura. Publicando-o hoje na íntegra, sem a mais pequena modificação, embora a pudesse fazer, apenas lhe acrescentarei algumas notas, que julgo necessárias e oportunas.


Meus Senhores

Eu entro sempre neste recinto com uma profunda comoção. Por aqui vive, na terra que pisamos, na relva dos túmulos ou nas floritas que se erguem para o sol, curvadas com o peso dos orvalhos da manhã, restos daquele sangue que me deu vida, restos de minha família que se apagaram no silêncio da morte. É uma amargura, bem o sei e bem a sinto, mas é forçoso reagir contra isso na hora solene que é devida a quem foi um dos maiores paladinos da nossa terra e da nossa liberdade.

Pela liberdade e pela pátria o Dr. Joaquim José de Queirós padeceu os maiores martírios. Deputado da nação portuguesa, desembargador da Baía e depois da Relação do Porto, ministro com o Marechal Saldanha, ocupando os mais altos cargos da vida constitucional, se não teve pendurada a sua cabeça num poste colocado em frente da casa onde viveu, por ter fugido à tirania miguelista, e digo ter fugido porque seria um suicídio não fugir e até uma cobardia abandonar os seus companheiros que marcharam para a Galiza, para a Ilha Terceira, para o Mindelo e para o cerco do Porto, ele sofreu as maiores agruras. Se os velhos pinheiros do Bonsucesso e da Quinta do Picado pudessem falar, se a mina que existia entre um silvado da Fonte da Arregaça pudesse dizer alguma coisa, se os barqueiros que o conduziram a Ovar pudessem levantar-se do seu túmulo e dizer o que se passou naquela noite da sua viagem tormentosa através da ria, se toda essa epopeia de esperanças e martírios pudesse mostrar-se numa página nítida de verdade, poderíamos reconstituir o que foi esse período agitado que há 100 anos fez tremer os alicerces da nossa nacionalidade. Sem isso, sem esses elementos, fica tudo num claro-escuro que Rembrandt, se aqui vivesse, e vivesse no nosso tempo, poderia reproduzir num quadro interessante da nossa história.

Eu sei, e todos nós sabemos, que nas lutas entre constitucionais e absolutistas houve valores autênticos de boa / 83 / vontade, de inteligência e heroicidade. Se eu pudesse, e quisesse, desenvolver uma página mais completa do que foi o movimento revolucionário de 1828, teria de recordar elementos antagónicos que descansam na paz perpétua deste recinto fúnebre. Todos, é bom dizer-se, pugnaram valentemente pelo seu ideal, com mais ou menos tirania, como é próprio das fraquezas humanas, com mais ou menos ferocidade, mas com os olhos, eu o creio, fitos na liberdade e na independência da sua pátria.

Ambos os partidos que se degladiavam eram como duas águias que voassem no espaço. Era águia aquela que voava sobre a crista pedregosa e gelada das montanhas, mas era águia também a que voava sobre a copa verde glauca das florestas.

As paixões políticas, como todas as paixões, têm excessos que chegam a ser criminosos. Eu, e todos os que estão a sofrer a maçada de me ouvir, não podemos concordar com a pena de morte. Manuel José Mendes Leite, que foi um alto espírito de liberdade e colaborador da obra liberal de Joaquim José de Queirós, teve razão, e por isso deve estar tranquilo no seu túmulo, quando propôs no parlamento, para os crimes políticos, a abolição dessa pena. A morte, quando não é natural, admite-se no fragor dos combates, mas eu não concordo com ela em sentenças de juízes, que muitas vezes podem ser mais criminosos do que os próprios réus.

Convidado para falar neste lugar, o que é, certamente, uma honra que não mereço, eu não posso deixar de verberar todos esses crimes que se cometeram sob o regime do legitimismo, como verbero também crimes idênticos que se cometeram à sombra da liberdade. Este mesmo amor à justiça e à liberdade predominou no coração e no génio audaz do grande tribuno José Estêvão Coelho de Magalhães, quando foi defender o jornal legitimista "Portugal Velho".

Eu não quero, portanto, afrontar a memória de alguns partidários de D. Miguel que jazem neste mesmo cemitério. Se Joaquim José de Queirós pudesse quebrar aquela pedra de granito e levantar a sua cabeça do caixão em que está encerrado, teria talvez um sorriso de fraternidade e amor para tornar a dormir sossegado junto dos seus companheiros de jazigo, porque é no túmulo que todas as paixões se apagam. A Igreja tem razão, quando recorda aos homens que são pó e em pó se hão-de tornar.

São estas, também, as palavras com que torno pública a minha consciência, talvez na antecâmara do meu sepulcro, junto aos ossos de meus pais, restos de uma vida com que quero amar a vida dos meus filhos. Disse CALDERON DE LA BARCA − «La vida es sueño», e é; a vida é um sonho. / 84 /

Nas cordilheiras dos Andes, houve, há dois ou três anos, um duelo singular entre uma águia e uma serpente. Uma ou outra fez o ataque. A águia, enroscada pela serpente, voou para as alturas, soltando gritos de desespero. A serpente, por seu lado, assobiava, numa ferocidade diabólica, espicaçada pela águia, até que, extinto o esforço da luta, caíram ambas extenuadas e mortas sobre a terra ou pedras da montanha. Estes fenómenos que se passam nas serras ou nos arvoredos, passam-se também na vida dos homens e das nações.

Foi grande a luta entre legitimistas e constitucionais, mas é de justiça constatar que, de parte a parte, como na luta da águia com a serpente, houve esforços de verdadeiro heroísmo, e que esses esforços não eram produzidos, muitas vezes, por mesquinhos interesses pessoais. Embora por caminhos diversos, todos amavam a sua pátria com o mesmo culto com que amavam a sua religião.

E, a propósito de convicções religiosas, eu devo acentuar que Joaquim José de Queirós, apesar de se dizer o contrário, não foi um descrente. Trazendo do Brasil o seu cozinheiro Mateus e um outro serviçal de nome Pedro, ambos de cor preta, e a velha Laureana, de cor mulata, que eu conheci e que muitas vezes preparou jantares em minha casa, fê-los baptizar nesta freguesia, pondo-os em conta corrente com os preceitos da Igreja Católica.

Eu sei que é tempo de terminar estas minhas palavras desataviadas e monótonas. Parece que ouço, meus senhores, no vosso cansaço, repetir-se a objurgatória terrível de Cícero a Catilina − até quando abusarás da nossa paciência?

Mas eu vou terminar.

Não o farei, porém, sem fazer umas considerações finais que se impõem nesta ocasião e, sobretudo, nesta terra.

São dois minutos apenas em que continuo a abusar da vossa bondade.

O culto da liberdade, que foi uma das características de Joaquim José de Queirós, reflectiu-se na orientação romântica e realista de seu neto JOSÉ MARIA DE EÇA DE QUEIRÓS, vulto eminente da literatura portuguesa, que só por acaso nasceu na Póvoa de Varzim, mas que foi aqui, não direi gerado, mas criado na casa de seus pais. Isto mesmo se depreende do que ele próprio diz numa carta dirigida a OLIVEIRA MARTINS, quando este o convidava a ir à Costa Nova a qualquer festa da família de Luís de Magalhães, o grande filho de José Estêvão, que eu tenho a honra de ver presente neste mesmo recinto. Dizia EÇA DE QUEIRÓS nessa carta, escrita em 1884: − «Filho de Aveiro, educado na Costa Nova, quase peixe da ria, eu não preciso que mandem ao meu encontro caleches e barcaças. Eu sei ir pelo / 85 / meu próprio pé ao velho e conhecido palheiro de José Estêvão.»

Parece-me que este facto, conjugado com a sua residência em casa de seu pai, que só por afazeres da sua profissão saía desta terra, pode habilitar-me a dizer, além doutros argumentos, que EÇA DE QUEIRÓS era de Verdemilho. Tenho, por isso, orgulho de nascer e viver na terra onde viveu Joaquim José de Queirós e onde passou a infância o seu neto glorioso, companheiro querido de RAMALHO ORTIGÃO, do Conde de ARNOSO, do Conde de SABUGOSA, de ANTÓNIO CÂNDIDO, de PINHEIRO CHAGAS, de CARLOS LOBO DE ÁVILA, de ANTERO DE QUENTAL e de muitos outros que continuaram uma outra geração constituída de políticos como Mouzinho da Silveira, Marechal Saldanha, Duque de Palmela, etc., e de intelectuais como ALEXANDRE HERCULANO, REBELO DA SILVA, GARRETT, CASTILHO, ANDRADE CORVO, BULHÃO PATO, Conde do CASAL RIBEIRO e muitos outros, que, se não eram heróis, como José Estêvão, Mendes Leite e Joaquim José de Queirós, tisnados pelo calor das batalhas, como os mártires dessa época revolta da nossa história, como os mártires da Tessália, como os mártires de Marrocos, como os mártires de todos os tempos e de todos os povos, foram, todavia, uma geração que nos assombrou com a luz brilhante do seu talento e do seu grande amor à liberdade.

Assim falei nessa luminosa tarde de 16 de Maio de 1928.

Se melhor não disse, é porque me não foi possível falar melhor:

Pilriteiro, que dás pilritos,
Porque não dás coisa boa?
Cada um dá o que tem
Conforme a sua pessoa...

Alguém se referiu, então, às intolerâncias políticas e religiosas desse tempo. Não as deveria haver, porque são sempre um erro. A liberdade, quando compreendida na sua expressão sem mácula, sem excessos ou paixões desabridas, deve ser como o sal na cozinha, − nem tanto aquém nem tanto além. Já um prelado ilustre assim a compreendia, e eu sempre o aplaudi.

Madame Roland, mulher de extraordinária coragem e celebrada pelo seu amor à república e pela sua influência no partido dos girondinos, no caminho do cadafalso, em 1793, ao passar pela estátua da liberdade, não se pôde conter e bradou: «Oh Liberté, que de crimes on commet en ton nom!» − E, na verdade, assim foi sempre e assim será, infelizmente. A liberdade que é para uns, deve ser para todos. O contrário é individualismo egoísta e nada mais. / 86 /

De resto, os sentimentos em crenças de Joaquim José de Queirós foram bem conhecidos e manifestados à luz de toda a gente, embora a calúnia caísse muitas vezes sobre ele e sobre
os seus companheiros, quando explodiam violentas as refregas revolucionárias. Nem ele nem muitos dos seus companheiros seriam capazes de sancionar o morticínio infamíssimo dos Craveiros, no trágico palheiro de Quintãs. O próprio bispo de Aveiro, D. Manuel Pacheco de Resende, acompanhou os liberais em muitas das suas decisões para o triunfo do constitucionalismo.

Não há, não houve nem deve haver, portanto, antagonismo algum entre religião e liberdade. Se alguém assim não pensou, esse alguém cultivava uma inteligência selvagem, excepcionalmente individualista e sem razão de existir.

Os liberais não tiveram motivos de queixa contra os legitimistas da terra, porque bem sabiam que não haveria aqui uma única pessoa capaz de fazer uma denúncia que os levasse à pena de morte. Joaquim José de Queirós conseguiu andar bastante tempo, sem que os seus conterrâneos descobrissem o seu paradeiro, por entre as casas e valados de Verdemilho e do Bonsucesso. Durante algum tempo, pôde estar escondido na mina da fonte da Arregaça e em outros subterrâneos do Crasto(1), onde os serviçais lhe levavam mantimentos escondidos em um cântaro de água. Pôde ir pela ria para Ovar numa bateira carregada de bajunça, escapando então a uma busca que os esbirros lhe fizeram, sem saberem que o estavam calcando, nas alturas de Cacia. Tudo isto e muitos outros episódios que ainda há poucos anos eram contados pelas pessoas mais velhas destes sítios nos seus trabalhos agrícolas ou nos seus serões à lareira. E não o acusaram, porque bem sabiam que a denúncia é a pior nota que pode ferir o coração humano e porque sabiam também respeitar as qualidades que tanto enobreciam o seu carácter altivo e nobre, generoso e digno, em tudo, da sociedade em que vivia.

Eu ainda conheci, embora quase em ruína, a casa de Verdemilho que pertenceu a Joaquim José de Queirós. Destoava, por completo, das outras construções, e mesmo de toda esta região.

Numa fachada de mais de 20 metros, pintada de amarelo, cor que predominava também em compartimentos interiores, havia um portal de granito com certa elegância, para o qual dava acesso uma escadaria da mesma pedra, em cinco ou seis degraus. / 87 /

De cada lado havia três janelas e, em cima, numa cortina ou platibanda de alvenaria em todo o comprimento, erguia-se um brasão de armas que, ultimamente arreado, foi por mim oferecido ao «Museu Regional de Aveiro» por especial amabilidade do seu possuidor de então. Nas extremidades da referida cortina ou platibanda, ostentavam-se duas graciosas colunas de tamanho proporcional àquele símbolo de nobreza. Nas traseiras, levantava-se outra casa mais elevada, de construção diversa e mais recente. Em frente do edifício havia também um pequeno jardim em todo o comprimento, com três ou quatro metros de largura, resguardado por um gradeamento de ferro chumbado a postes de granito.

Foi nessa casa, onde Joaquim José de Queirós viveu e planeou muitas das suas ofensivas contra o regime absoluto, que viveu também, e ali passou a sua mais tenra mocidade, JOSÉ MARIA DE EÇA DE QUEIRÓS.

VIANNA MOOG, escritor brasileiro de boa e justa reputação, publicou recentemente um livro, por todos os motivos notável, a que pôs o título Eça de Queirós e o século XIX. Nele se faz um lúcido relato do nascimento e vida intelectual do grande autor de tantas obras primas.

Brasão de José Maria de Almeida Teixeira de Queirós que da Casa de Verdemilho foi retirado para o Museu de Aveiro.

Por ali se vê que EÇA DE QUEIRÓS teve a sua origem bastante nebulosa, o que, aliás, em nada o diminui na plena majestade do seu carácter e do seu talento privilegiado.

O pai, José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, que tanto foi flagelado por desventuras seguidas(2), que foi um magistrado / 88 / consciencioso, sem a viveza impetuosa de Joaquim José de Queirós, é certo, mas ponderado e digno, poeta também, cujos versos, no dizer de CAMILO CASTELO BRANCO, citado por aquele ilustre publicista brasileiro, eram irisados e subjectivamente petrarquizados, dos melhores que então se melodiavam no alaúde trovadoresco, exercia, em 1845, o lugar de delegado em Ponte de Lima e contava então 26 anos de idade. A mãe, D. Carolina Augusta Pereira de Eça, que pertencia a uma família de militares distintos, «filha do coronel José António Pereira d'Eça, que morreu por ferimentos recebidos nas linhas do Porto em 1833, e irmã do general do mesmo nome», residia em Viana do Castelo.

Era natural que, tratando-se de famílias ilustradas e de boa educação, que naquelas terras do alto Minho se relacionassem, promovendo visitas, passeios, jogos, sorrisos, tudo isso que pode produzir amor e paixões, sobretudo na idade em que a luz dos olhos tem certa influência no coração humano... Surgiram, por isso, entre ambos, amizades íntimas. Amaram-se, e, desse amor se gerou aquele fruto precioso que se chamou JOSÉ MARIA DE EÇA DE QUEIRÓS e que foi um dos maiores vultos literários da raça latina.

D. Carolina, para manter incógnita a sua gravidez, permita-se esta expressão que em nada encerra sentido irreverente, retirou-se de Viana do Castelo para a Póvoa de Varzim, onde, na verdade, parece que a criança nasceu, conforme o testemunho de seus pais, e remetida, seis dias depois, para Vila do / 89 / Conde, onde foi baptizada, e de onde seguiu, como afirma VIANNA MOOG, «para a companhia de seus avós paternos, na casa de Verdemilho. Ali passa EÇA a sua infância, ora nos joelhos do avô, de quem ouve as narrativas das guerras civis, ora nos joelhos do preto trazido do Brasil, que lhe conta histórias fantásticas, A lenda de Carlos Magno e a dos Doze Pares de Inglaterra», etc.

Só depois de perfazer dez anos, acrescenta o distinto escritor brasileiro, «foi EÇA viver na cidade do Porto, em companhia dos pais que, já então fazia seis anos, tinham contraído matrimónio, e legitimado a sua filiação.»

Como se vê, nesse livro, e em muito mais, fez-se muita luz sobre o caso, mas as névoas não desapareceram de todo. A retirada brusca, por exemplo, de Viana para a Póvoa e da Póvoa para Vila do Conde, etc., deixa-nos uma certa dúvida sobre o verdadeiro lugar do nascimento e, sobretudo, da terra em que foi gerado. Além disso, as rivalidades das povoações que disputam a honra de ser o seu berço e de certos biógrafos, que todos eram amigos de EÇA, aumentam essas dúvidas.

Nada disto, portanto, destrói as afirmativas do meu pobre discurso no cemitério de Verdemilho. Disse eu que só por acaso é que EÇA DE QUEIRÓS nascera na Póvoa de Varzim, mas que era de Verdemilho. Se o não era, de onde era então?

Se nascesse em viagem no mar alto, poderíamos dizer que era filho de tantos graus de latitude tal? Donde lhe veio essa infiltração de sangue que lhe deu vida? Onde foi educado? Que céu e que luz formou a sua mocidade? Formou-se em Coimbra, esteve em Leiria, foi para Cuba, para Newcastle, para Bristol e para a capital da França, onde faleceu no castelo de Neuilly... A sua certidão de idade poderá dizer que nasceu em outra parte, mas... mas é ele próprio que se diz filho de Aveiro.

Eu peço licença, sem animosidade alguma pela linda terra do Minho, por essa boa terra de pescadores do norte, em que o Cego do Maio se fez herói na sua luta com as convulsões do Oceano..., eu peço licença a essa terra de tão grandes tradições e de tão variadas paisagens, para repetir que EÇA DE QUEIRÓS é filho de Aveiro, onde seu avô foi um dos maiores paladinos da liberdade, educado na Costa Nova, onde ouviu bramir o mar, ao longe, mesmo em frente da casa de seus pais, quase peixe da ria, com a malhada do Ourô a poucas dezenas de metros, em que passou os melhores dias da sua infância(3). / 90 /

O grande morto faleceu em 17 de Agosto de 1900. A impressão da sua morte foi tremenda, não só em Portugal como em todo o mundo civilizado. O seu ataúde não ficaria mal, como o de VICTOR HUGO em noite de estrelas e luar, a ser velado pelos poetas da França, ou como o de D. ANTÓNIO CANOVAS DEL CASTILLO no balneário de Santa Águeda, com EMÍLIO CASTELAR a seu lado, como que a rezar grandes conceitos de DONOSO CORTES, naquele silêncio de sepulcro, sem querer pensar, apenas sentindo a dor imensa do seu coração amargurado...

...A pena já estava a arrastar-me para um caminho que não é bem aquele a que me impus quando prometi, ao dr. FRANCISCO FERREIRA NEVES, escrever qualquer coisa para o Arquivo do Distrito de Aveiro. Como recordação, eu deveria referir-me àquela célebre carta que RAMALHO ORTIGÃO dirigiu de Veneza ao Dr. Eduardo Burnay, mas... paremos aqui, porque, se me dão corda, não sei onde irei parar. É que EÇA DE QUEIRÓS caiu como uma estrela que no solo explodisse, espalhando muitas outras estrelas.

Morrendo na sua residência perto do Havre, pediram ao governo que fosse mandado ali um dos nossos navios de guerra que deveria conduzir o cadáver para Portugal. E para onde?

Naturalmente para Lisboa e dali para Verdemilho, em cujo cemitério se ergue o mausoléu de seu avô e doutras pessoas de família.

Falou-se então em Aveiro sobre a melhor forma de se receberem os preciosos restos mortais de JOSÉ MARIA DE EÇA DE QUEIRÓS e lá estive eu em foco, como representante da terra, por indicação e carinho do velho amigo Joaquim de Melo Freitas. / 91 /

Esboçaram-se diversos alvitres e lembro-me, até, que um deles seria receber o cadáver em todo o percurso da rua de Verdemilho sob muitos arcos de loureiros e carvalhos.

Por qualquer motivo, o corpo de EÇA DE QUEIRÓS não saiu de Lisboa. Lá ficou no jazigo do Conde de Resende, irmão de D. Emília Eça de Queirós, à espera que melhor oportunidade se oferecesse para a sua condução para Verdemilho. Sempre o nome de Verdemilho a impor-se como última terra em que o romancista desejaria ficar em paz, na terra que foi a alma mater do seu espírito e das primeiras auroras da sua infância.

Mas há mais. Em tempo, recebi a seguinte carta:

Costa Nova − Ílhavo

1932 − Novembro − 1

             Meu caro e bom amigo

Escrevo-lhe à pressa, na véspera de deixar a Costa Nova. Amanhã sigo para Coimbra, donde, no sábado próximo, regressarei directamente a Moreira. Lá ficarei ao seu dispor.

O fim desta carta é pedir-lhe uma informação sobre o jazigo da família Queirós no cemitério de Verdemilho. Vi-o há 4 anos, por ocasião do centenário do 16 de Maio. Tenho ideia de que é uma campa muito simples, resguardada por uma grade de ferro. Precisava de saber como ela é interiormente e a sua capacidade. É que a Sr.ª D. Emília Eça de Queirós, viúva do grande romancista, pensou em depositar ali os restos do seu ilustre marido, se ela estivesse em condições de receber esse precioso despojo e, de futuro, outras pessoas de família. Por isso lhe rogo a grande fineza de me dar informes precisos e minuciosos sobre esse mausoléu para os transmitir àquela senhora. Eu creio, pelas minhas recordações, que ela não satisfaz os requisitos desejados.

Queira responder-me depois de sábado, para evitar confusões de correio, visto a minha ausência. O meu endereço: Quinta do Mosteiro − Moreira da Maia.

Com muitos votos pela sua saúde e bem estar, asseguro-o da muita e velha estima e consideração que lhe consagra

o seu amigo mt.º dedicado e obg.º

Luís de Magalhães

Em 1900, quando se falou em vir para Verdemilho o cadáver de Eça de Queirós, descobriu-se o jazigo e lá vimos, numa catacumba, diversos caixões, uns em cima dos outros. Para dar, todavia, melhor cumprimento à carta de Luís de Magalhães, abriu-se de novo, estando presentes o Dr. Alberto Souto e outros indivíduos, e as impressões recebidas não me habilitaram a dar uma resposta satisfatória. / 92 /

Luís de Magalhães voltou a escrever-me, eliminando eu alguns períodos que julgo de carácter reservado:

Moreira

1932 − Dez.º, 22

             Meu caro e prezado amigo

Tive o gosto de receber as suas cartas de 15 e 20, que muito lhe agradeço.

................................................................................................................................

O caso da construção do mausoléu precisa de ser muito pensado e conversado. Por isso convidei os nossos amigos Querubim e Alberto Souto a darem-me o gosto duma visita a Moreira, indo todos, depois, falar com a Sr.ª D. Emília Eça de Queirós, sobre o assunto.

Ela aceita, com o maior reconhecimento, a homenagem que, com isso, se quer prestar ao seu ilustre marido. Só põe uma condição: é que nesse túmulo se lhe reserve lugar para ela e para os seus filhos, um dos quais já falecido. Compreendo que esta condição tem de influir no plano da construção projectada.

Maior seria o meu prazer, se, por ocasião da vinda aqui daqueles nossos dois amigos, o meu caro Acácio Rosa os quisesse acompanhar.

Fazendo os mais sinceros votos que este Natal passe, em sua casa, entre as maiores alegrias e o Novo Ano lhe seja, e a toda a sua família, pródigo de venturas e prosperidades, peço-lhe que me creia sempre, com velha e muita estima

am.º ded.º e gr.º
Luiz de Magalhães


A entrevista aludida não se chegou a realizar por diversos motivos. Não sei, por isso, o que de futuro se possa resolver.

O que desde já se pode afirmar é que os restos mortais de Eça de Queirós jazem provisoriamente num jazigo de Lisboa e que sempre se tem falado em serem removidos para o cemitério de Verdemilho. Não me consta que outra terra os pretenda receber com direitos reconhecidos.

Não teria eu, por isso, razão para afirmar que EÇA DE QUEIRÓS era de Verdemilho e que só por acaso veio à luz em outra parte?

Verdemilho, Maio de 1942.

ACÁCIO ROSA

____________________________________

(1) − Crasto é um planalto situado ao norte de Verdemilho dominando a ria e diversas povoações dos concelhos de Aveiro e de Ílhavo. Não parece que houvesse ali qualquer castelo ou povoações extintas de origem acastelada. Lá se cultiva o trigo, o milho, etc., e nas encostas ainda hoje se observam diversas cavidades ou subterrâneos que servem de esconderijos a texugos e raposas. Por ali se ocultaram também alguns foragidos das lutas liberais.

(2) Do "Jornal do Commercio", de 31 de Janeiro de 1901 se transcreve o seguinte:

«O pai de Eça de Queirós − O conselheiro José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, meretíssimo Juiz do Supremo Tribunal de Justiça, exalou ontem o derradeiro sopro de uma vida preciosa.

Foram oitenta e dois anos embalados num trabalho constante e honesto, conduzido pela bússola do bem através dum mar tenebroso e vasto que, tanta vez, lhe foi cruel e lhe despedaçou a alma!

De olhos postos na verdade e na justiça que ele tanto imaculadamente cumpriu na terra, sucedeu-lhe ver cair, a um e um, os filhos queridos do grande amor que teve no mundo, e nunca blasfemou, nem estremeceu de leve a crença que o tinha alumiado.

Somente acurvava a fronte na derrocada e, por entre lágrimas, abraçava-se à esposa amantíssima e aos filhos sobreviventes, como que tentando prende-los mais à vida e estimulá-los á luta contra a fatal desgraça...

Mas, tudo era em vão! O mal, o terrível mal da tuberculose, aninhado na intimidade daquela desventurada família, florescia cada ano com o mesmo vigor, abrindo em cada flor mais uma sepultura. E, de morte em morte, o pobre pai, torturado e perdido, foi envelhecendo e agonizando aos poucos.

Por fim, restava-lhe no mundo a maior glória da sua vida, a maior afeição da sua alma, o maior orgulho de pai. Era aquele filho amado dos portugueses, génio do romance nacional, imortalizado em milhares de páginas duma prosa nova, saltante, ironista e viva, que fizera renascer a literatura pátria dum montão de escombros de romantismo. Era o seu querido José Maria, o nosso genial Eça de Queirós...

E esse mesmo, um dia, cerrou os olhos para sempre, levado na mesma asa negra da doença maldita que vitimara os irmãos!

Foi o derradeiro golpe atirado ao coração daquele pobre velho: desde esse dia que ele morreu...

Foi morte de alma que levou alguns meses a derrubar aquele corpo forte de lutador. Ontem aquedou enfim, − e no ultimo adeus, tinha os olhos cheios de saudade pelos que deixava na terra e brilhava neles ao mesmo tempo, a luz de quem espera avistar os outros no céu...

E assim partiu da terra! Paz à sua linda alma.» 

(3) Transcreve-se na íntegra a carta que EÇA DE QUEIROZ dirigiu a OLIVEIRA MARTINS em 1884 e vem publicada na sua Correspondência a páginas 74 e 75:

«A Oliveira Martins − 1884− Querido Joaquim Pedro - Apezar de ter retardado hontem o meu jantar até ás nove da noite, não pude desbastar à minha montanha de prosa. Levar as provas para os areaes da Costa Nova, não é pratico − ó homem pratico! Ha la de certo a brisa, a vaga, a duna, o infinito e a sardinha − causas essenciaes para a inspiração − mas falta-me essa outra condição suprema: um quarto isolado com uma mesa de pinho.

Vocês, com tipoia na estação, barco no rio, foguetes á espera, e talvez literatos locaes − não podeis faltar hoje. Eu é que, com todas estas folhas de provas, inumeraveis como as dos bosques, não sei mesmo se poderei ir ámanhã, quinta-feira, a tempo. Não o anuncieis pois positivamente ao nosso querido Luiz Bandarra (era o Conselheiro Luís Cipriano Coelho de Magalhães). Eu para lá me dirijo por toda esta semana. Filho de Aveiro, educado na Costa Nova, quasi peixe da ria, eu não preciso que mandem ao meo encontro caleches e barcaças. Eu sei ir por meo proprio pé ao velho e conhecido palheiro de José Estevão. Um telegrama, um mensageiro, avisará o autor de D. Sebastião.

Ámanhã, em todo o caso, querendo Deus, saio á noite d'este infecto Porto. Talvez sexta-feira fique na Granja, a respirar o ar puro da verdade social que ali constantemente circula, emanado dos espiritos de Mariano, Henrique de Macedo, e outros reformillhas. Já vês a incertidão dos meus planos. Dá todo este longo recado a Luiz.

Se eu pudesse ter amanhã as minhas coisas promptas, antes do comboio das duas e meia − unico possivel para chegar á Costa ainda de dia − então, realisava a minha visita. D'outro modo, só sabado ou domingo.

Abraço a S.to Anthero (era Antero de Quental), sabedor de causas de filosofia e sonetista. E abraço para ti. − Queiroz.»

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