Ao Prof. Doutor Rocha
Brito
HÁ três coisas,
entre muitas outras, que paradoxalmente são mais difíceis de afirmar por um médico do que por um leigo; essas coisas são a existência duma gravidez no seu início, a causa duma dada morte e a realidade
de certas mortes.
Ao leigo não se pedem certezas. Mas em determinadas circunstâncias as
probabilidades de acertar são tantas que o
risco de errar é mínimo. De resto, um leigo nada perderia
com isso.
Ao médico exige-se uma certeza absoluta e ninguém lhe
desculpa erros, nem mesmo colegas, por vezes esquecidos
de que, a Medicina Científica só é possível em circunstâncias
excepcionais.
Em caso de suspeita de gravidez, afirmada por um leigo, por sinais
falíveis, de ordem moral, por exemplo, o médico
responsável, não podendo confirmar a sua existência, é depois
julgado inconscientemente «em cheque» pelos ignorantes, quando o leigo
calha acertar.
Os sinais de morte para o médico têm de ser mais objectivos e seguros do que para os estranhos à Medicina.
Por esse motivo e devido a mil exemplos fáceis de colher,
se forma a glória vã dos charlatães. E por isso teve razão o médico
inglês Easen quando afirmou que «o público avalia em
geral o médico diplomado pelos seus erros e o charlatão pelos
seus êxitos de acaso».
Ora se é difícil em tantas circunstâncias um médico consciencioso fazer
o diagnóstico duma gravidez em início ou afirmar
a realidade de certa morte, apesar de ter presente a suposta
grávida ou o presumido cadáver, mais difícil, se não impossível,
se lhe torna diagnosticar determinadas causas de morte quando não foi
médico assistente do doente, mormente quando nem sequer viu o cadáver.
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Se a morte se verificou há dezenas ou há centenas de anos e em volta dela se formaram lendas, ou formularam acusações mais ou
menos fantasistas, nesse caso parece loucura tentar
sequer um diagnóstico. E entretanto há circunstâncias em que
é possível, não só arriscar hipóteses e afastar outras, como afirmar
categoricamente qual ou quais as doenças que ocasionaram
certa morte.
*
* *
Como se faz hoje em dia o diagnóstico da causa da morte
da maioria das pessoas, tanto em Portugal como na maior parte
dos países?
Pelo que a tal respeito dizem os médicos assistentes ou os
que «verificaram os óbitos».
Uma estatística recente mostra-nos que em Portugal
cerca de 40 % das
pessoas morreram de causa ignorada, quer por
falta de assistência médica, quer por as famílias morarem
longe e mau caminho e não procurarem os médicos assistentes para estes
preencherem as certidões de óbitos.
Os diagnósticos em casos tais são depois calculados,
para
efeitos estatísticos, pelos delegados de saúde, conforme dados colhidos,
mais ou menos hipoteticamente, pelos regedores.
Outro tanto sucede quando qualquer médico é chamado,
não como assistente, mas apenas para verificar o óbito.
Na melhor das hipóteses, porém, quando houve médico assistente, este
muitas vezes apenas foi chamado tarde, vendo o doente uma ou duas vezes,
não tendo chegado a formular diagnóstico de certeza.
Talvez não seja exagerado dizer que em 30 % dos casos lhe ficaram
dúvidas sobre a justeza do diagnóstico.
Admitindo porém que o fez, esse diagnóstico é em geral
apenas clínico, uma ou outra vez laboratorial ou radiológico e só
excepcionalmente, em grandes hospitais, anátomo-patológico e,
menos vezes ainda, histo-patológico.
Não nos parece por isso arriscado afirmar que se 40 % dos
óbitos são de causa ignorada, em 20% o diagnóstico é duvidoso,
em 30 % se julga certo, pela clínica apenas, em 8 % ele é fundado em exames laboratoriais ou radiológicos ou em autópsias
e apenas em 1 % em exames histológicos, se tanto.
Em qualquer dos casos os diagnósticos científicos não devem abranger 20
%.
*
* *
Vem tudo isto a propósito da dificuldade de afirmar com segurança a
causa da morte duma pessoa que deixou este
mundo há 451 anos e da facilidade com que poderá ser posta
em dúvida a legitimidade do diagnóstico.
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285 /
Honrou-me o Arquivo do Distrito de Aveiro
com o pedido
de lhe preencher a certidão de óbito da Infanta Santa Joana.
Melhor vontade em lhe ser agradável não podia encontrar,
já pelo interesse que o assunto e a época me merecem, já pela
grande consideração que tenho pelos seus directores.
Para fazer porém um diagnóstico não basta a boa vontade.
A primeira condição para acertar, como aconselhava o
velho Doutor JOÃO JACINTO, um dos mais argutos clínicos de que ficou
fama em Coimbra, «é deixar falar o doente».
Essa condição não pode realizar-se a quatro séculos e meio
de distância...
− Pode falar pela doente uma das suas dedicadas enfermeiras.
É certo. Mas essa enfermeira, enlevada (ia dizer obcecada) pelas
preocupações místicas, perde-se por vezes em pormenores sem interesse
médico, esquecendo outros que por certo muito esclareceriam.
Nada admira, visto não ser com o fim de obter uma certidão de óbito que
nos deixou elementos. Para mais, morreu também já há quatro séculos.
Examinar a doente, falar com médicos que a observassem, ou ler escritos
deles; fazer a autópsia do cadáver ou ler o relatório dela; tudo isso,
que permitiria fazer um juízo seguro, nos falta.
Sabemos que muitos estudos têm sido feitos sobre diagnósticos
retrospectivos de figuras históricas e não ignoramos as discussões mais
ou menos estéreis a que tais diagnósticos têm dado lugar.
Os boatos de envenenamento,
quase inseparáveis das mortes das pessoas
reais que não sucumbem a feridas bem testemunhadas em campos de batalha;
a existência de doenças crónicas sem crónica anterior e agravando
doenças agudas banais e habitualmente inofensivas; a coexistência de
duas ou
mais doenças graves, afastando o diagnóstico esquemático exigido pelas
estatísticas e pelos historiógrafos; tudo isso complica o problema.
Que pena não poderem juntar-se para
este exame pericial mestres
consagrados da Medicina histórica, sábios médicos e eruditos de cultura
geral, como AIRES DE GOUVEIA OSÓRIO, VIEIRA DE MEIRELES, JOSÉ CARLOS
LOPES, FILIPE SIMÕES, MANUEL BENTO DE
SOUSA, BETTENCOURT RAPOSO, JOÃO MEIRA, MAXIMIANO DE LEMOS,
RICARDO JORGE!...
Já não falamos nalguns estrangeiros que intervieram em exames
históricos, como LITTHÉ, LEGENDRE, BROUARDEL, POZZI, GUlLLON, MASSON,
CORLIEU, LACOUR-GAYET, CABANÈS, LAIGNEL-LAVASTINE, etc., etc.
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Em face do problema que me era posto e da falta de dados fornecidos, a
atitude lógica seria a de declinar o honroso convite.
Estariam indicadas para depor autoridades na Medicina e
na História como D. ANTÓNIO DE LENCASTRE, REINALDO DOS SANTOS, ROCHA
BRITO, AZEVEDO NEVES, HENRIQUE DE VILHENA, MAXIMINO CORREIA, HERNÂNI
MONTEIRO, LUÍS DE PINA, ALBERTO PESSOA, SILVA
CARVALHO, JÚLIO DANTAS, tantos!
Sabendo como num caso tão recente, como o da morte de D. Pedro V, em que
houve assistência clínica competente e autópsia rigorosa, nem assim se
conseguiram tapar as bocas ao mundo; recordando-me de polémicas de
repercussão internacional, como as dos processos Joana Pereira e Urbino
de Freitas; lembrando-me das precipitações com que se manifestaram em
casos como o da morte de D. João II alguns médicos com
responsabilidades; vendo e pesando tudo isto, lógico seria desistir,
quanto mais não fosse para evitar a perda de tempo, que não me sobra.
Em risco porém de parecer covarde, comodista ou incorrecto, resolvi
aceitar, não com a pretensão de esgotar o assunto, para o que não tenho
competência, nem vagar para ler tudo o que se tem escrito a respeito de
Santa Joana e possa acaso fornecer qualquer elemento que favoreça o
diagnóstico, mas limitando-me
a acreditar no depoimento da autora da Crónica da fundação do Mosteiro
de Jesus e memorial da Infanta Santa Joana, essa boa SOROR MARGARIDA
PINHEIRO que, se não conseguiu o sucesso de livraria da pobre Mariana
Alcoforado, não merece menos do que ela a gratidão dos amadores da boa
prosa de antanho, e, em compensação, nos refere uma vida que, se foi
tocada pelo pecado, soube remir em penitências essa fraqueza dos
dezoito anos, com uma existência de martírio e santificação que
a levou aos altares, depois de canonizada há muito pelo espírito
popular.
*
* *
Tal como mandam as regras da mais comezinha deontologia, na falta de
médico assistente vai usar da palavra o mais novo e desautorizado dos
conferentes − o mais novo e desautorizado na arte da medicina histórica,
bem entendido.
Com os elementos fornecidos por
SOROR MARGARIDA PINHEIRO
(1),
apresentamos uma história clínica, tão clara, sóbria e completa quanto
possível.
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287 /
A seguir, visto este trabalho ser destinado a leitores não médicos,
explicaremos certos termos e factos, interpretando outros, no mínimo
possível de palavras, fugindo a divagações e principalmente a: hipóteses
fantasistas.
Por fim, mostraremos as lacunas existentes na história clínica, com
esperança de que algum erudito, conhecedor de outros
documentos em que sejam dados mais pormenores sobre a doença e vida da
Infanta, permita esclarecer as dúvidas que restam.
Nem retórica, nem literatura; simples exposição fria de médico que a
seguir dará a palavra a conferentes mais autorizados.
HISTÓRIA CLÍNICA
Nome − Infanta D. Joana, de idade de trinta e oito anos, natural de
Lisboa, estado de solteira, residente em Aveiro como
freira não professa do Convento de dominicanas, de Jesus, filha de
EI-Rei D. Afonso V e de sua mulher a Rainha D. Isabel.
Antecedentes hereditários
− O pai morreu em 1481, aos quarenta e nove anos, com «febres fortes»(2). A
mãe morreu nova, em 1455, «com fluxo de
sangue, com suspeita de lhe terem dado peçonha, porque, a juízo de
médicos, parecia mais
doença dada que adquirida por má disposição». Dera à luz o filho
(futuro D. João lI) sete meses antes(3).
Antecedentes colaterais
− O seu único irmão (D. João lI) «andava sempre
doente e muito mal disposto» até aos treze anos. Aos quinze «era
pequeno de corpo e muito doentio mal disposto em toda a sua meninice;
que cada um ano o tinham por morto e
os físicos de sua vida e saúde
desesperados»(4).
Valente, inteligente, corajoso, activo, piedoso, cruel. Exaltado desde
criança,(5) de vontade indomável, ambicioso, vingativo, generoso.
«Comia muito e muito bem, com muito vagar e cerimónia,
porém não mais de duas vezes por dia»(6). Até aos trinta e
cinco anos bebeu vinho e depois disso apenas o bebeu por indicação
médica, como remédio, «muito temperadamente»(7).
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288 /
As suas palavras «eram vagarosas e entoadas pelos narizes»(8) (vegetações adenoides?).
«Em tudo era mui alvo e no rosto corado em boa maneira,
a barba tinha preta e bem posta e o cabelo castanho e corredio e em
idade de 37 anos tinha já na barba e cabeça muitas cãs»
(9).
Houve suspeita de ter sido envenenado mais duma vez, o que não está
provado.
«E faleceu de doença mui comprida, em idade de 40 anos e 6 mezes... e
reinou 14 anos e. 2 mezes com tantas doenças, nojos, trabalhos,
cuidados, e com tão pouco descanso...»(10)
− em 25 de Outubro de 1495.
Diagnóstico da causa da morte: Nefrite crónica(11).
Antecedentes pessoais
− Nasceu em 1452, perdendo sua mãe
em 1455. Foi muito amimada pelo pai(12). Nasceu de termo, sendo
robusta
e perfeita(13). Crescimento normal, sendo sempre saudável e inteligente(14). Aos nove anos já se mostrava piedosa. Estudiosa, aprendeu, com gosto e facilidade, letras, gramática e latim. Interessava-a a leitura
dos Evangelhos e das Vidas dos Santos. Aos catorze anos
tinha fama a sua inteligência e saber. Trocava jogos e vaidades por práticas piedosas(15). Aos dezoito, todavia, segundo
RUI DE PINA, de tal modo se
entusiasmou pelo luxo que seu pai a mandou internar em Odivelas, o que
deu origem a boatos em que a sua honestidade foi posta em dúvida(16).
Desenvolvimento físico rápido; aos quinze anos parecia ter vinte e cinco(17). Grande
fervor religioso (orações, reza de horas canónicas, jejuns,
penitências, disciplinas, cilícios)(18).
O pai criou-lhe uma corte luxuosa, à qual fugia para se
entregar a devoções(19).
Aos 16 anos começou a usar camisas ásperas de estamenha, como sacrifício, bem como cilícios(20).
/
289 /
Chegou ao cúmulo de usar as camisas de lã,
sem as mudar,
até estarem cheias de piolhos. («até que mais a não podia sofrer por a
multidão de piolhos que criava»)(21).
Fingia por vezes que comia, quando a queriam desviar de
jejuns(22).
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INFANTA SANTA
JOANA
(Retrato coevo,
pintado em madeira, existente no Museu de Aveiro. Autor
desconhecido. Fotografia do quadro anterior ao último restauro.
Clicar para o ver restaurado. |
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Caritativa. Emotiva. A leitura e meditação da
Paixão de
Cristo provocava-lhe lágrimas copiosas(23). Confessava-se e
comungava a miudo(24).
/ 290 /
Formosa, alta, desempenada,
airosa e forte até aos dezassete anos. Olhos verdes.
Lábios grossos
(25).
1471 − Quando o pai regressou de Arzila, pediu-lhe que a deixasse
recolher a um convento, para comemorar a vitória.
O pai acedeu, mas o irmão reagiu violentamente, assim como
os procuradores das cidades, vilas e lugares(26).
1471-1472 − A luta do irmão contra a ideia de ela entrar
para um
convento foi brutal, por vezes mesmo grosseira e selvagem(27).
Em 4 de Agosto de 1472 entrou para o
Convento de Jesus,
de Aveiro, ficando alojada em frente da enfermaria(28) (perigo
de contágio).
1475 − Tomou o hábito de. dominicana em 25
de Janeiro.
Como noviça cumpria rigorosamente, «sem em nenhuma coisa
falecer»(29). Nessa altura
tinha «fracas forças e (era) mui delgada e
delicada de compleição»(30), abusando dessas fracas
forças, pelo que adoeceu subitamente, com «graves e fortes
doenças»(31). Conferência de vários médicos «bons
e certos»,
que concordaram que «tinha o fígado e rins muito danados e quase podres. E sobretudo o sangue tão danado e, corrupto que se mais
aturasse lã a carã (junto à pele) e cama (na roupa da cama) e assim (bem
como) o jejum e comer pescado (peixe) que fosse certa que de todo por
força se danaria e
seria gafa(32). O que parecia ser verdade por o grande desconcerto do seu sangue
e muitos e maus inchaços, postemas e
acidentes que tinha» (gânglios? pústulas?)
(33).
Melhorou com os «remédios de grandes
físicos», ficando no entanto muito
fraca e debilitada das forças corporais. Entretanto o espírito e o fervor místico mantiveram-se sempre(34).
1476 − Passado um ano de noviciado, vendo que tinha
falta de saúde e robustez e não podia voltar a ser o que era dantes e
que os médicos a admoestavam muito, desistiu de
professar, por «má disposição corporal e graves enfermidades»(35) e
«a delicada e muito má disposição da Senhora
Infanta, não ser para continuar a cumprir a ordem sem correr perigo de
vida»(36)
/ 291 /
[Vol. VII - N.º 28 - 1941]
1479 − Entretanto continuou no convento, em orações, jejuns, disciplinas
e cilícios. Sonho místico. Ao declarar-se «peste» em Aveiro, embora
contrariada, saiu dali para Coimbra.(37)
1481 − Morte de D. Afonso
V. A Princesa frequentava a
enfermaria sem nojo de maus cheiros(38) (perigo de contágio).
A prioreza do mosteiro e sua grande amiga, D. Leonor de
Menezes, tão rigorosas disciplinas seguiu que «em breve tempo
foi confirmada ética e acabando sua vida»(39) (morreu tuberculosa).
A Infanta procurava emendar pessoas que viviam escandalosamente, em especial «mulheres de mau viver» e clérigos,
primeiro aconselhando-as, depois ameaçando-as
com a justiça
(40).
Devido a isso foi ameaçada de morte por envenenamento(41).
Doença súbita:
(42)
− Ao regressar de Coimbra, onde estivera fugida à peste com o sobrinho D. Jorge, logo depois de beber um
copo de água, devido à «grande calma por a sesta»,
sentiu-se muito mal, «toda de dentro muito revolta, e logo toda
aquela noite, contra seu uso natural e costume passou em
grandes e maus acidentes de arrevessar (vómitos. violentos) e
câmaras (caimbras, espasmos, diarreia), sentindo revolvimento de todos
os humores do corpo e, assim os lançando, desde aquela hora começou a
sentir-se muito mal continuadamente do
coração e tristeza grande e abafamentos e, a pouco e pouco, inchando do
estômago e ventre».
Desde então começou a sentir-se cada vez mais fraca.
Facies cor de terra, faces queimadas e os «olhos agravados
com amiudadas lagrimas»
(43).
Entretanto continuava com as vigílias, jejuns e disciplinas
«de corda e sangue»(44).
A prioreza, que encarregara uma irmã
de a acompanhar
sempre ao refeitório para a fazer comer(45), começou a andar seriamente
apreensiva, como todas as freiras(46).
1489 − História pregressa
− Em 9 de Dezembro de 1489 teve início a
doença que a veio vitimar(47) em 12 de Maio
seguinte, 5 meses depois.
/
292 /
«Sua doença foi grande febre e desconcerto de todos os humores, em
maneira que assim foi a dita Senhora toda trespassada e
revolta deles,
que todos se lhe soltavam em câmeras e vómitos»(48).
«Muitos remédios lhe foram feitos por os físicos. E muito
trabalharam por lhos assentar e estancar».
«Passados assim alguns dias em esta desenteria de
humores e sangue,
abrandaram e cessaram. Mas a mui grande febre não»(49).
Aproximando-se as festas do Natal, levantou-se e foi ao coro de baixo,
para se confessar e comungar, abusando das forças, «mui enferma e com
grande febre do corpo»(50).
Depois deste grande esforço, recolheu à sua «pequena camarinha e câmara
e lançou-se, porque não pôde mais forçar-se por a grande doença e febre».
Esteve deitada todo o dia e noite, até às nove horas. Assistiu aos
diversos ofícios, passando neles todo o dia, «forçando-se até mais não
poder».
«Desde então começou sua doença a ir crescendo cada um
dia mais, em tal maneira que já não se podia levantar».
Tanto os físicos, como a prioreza, e as outras madres e irmãs,
foram
incansáveis, a tratá-la. A Infanta incomodava-se por lhes dar tanto
trabalho.(51)
1490 − Em Janeiro e Fevereiro piorou cada vez mais, tendo «grandes
padecimentos de febre e foi visto lhe inchar em grande maneira o ventre
e o estômago e padecer muito grande sede em extremo e fastio»(52).
Nenhum médico conseguia dar-lhe qualquer alívio. Sofria
dores muito fortes.
Suportava todas as mezinhas e remédios, «por fortes e
penosos que fossem».
A sede era intensa, pedindo água, «a qual lhe davam os físicos em mui
estreita quantidade, de que veio se lhe fazer toda a boca em chagas, com
que recebia tanta dor que esse pouco comer que tomava era regado com
lágrimas» (estomatite; sapinhos?).
Piorava de dia para dia.
Seu irmão, já então rei, veio visitá-la, como muitos nobres,
não entrando todavia no convento, mas «vindo à rodinha das
casas da dita Senhora»(53).
/
293 /
D. João II e a tia, D. Filipa, do mosteiro de Odivelas, «mandaram-lhe cada um o seu físico, que bem experimentados e
grandes eram em ciência e curas».
Apesar, porém, dos pareceres dos melhores médicos e
de
tantos remédios, não sentia alívios nem melhoras, piorando
cada vez mais
(54).
Em Março e Abril «cresceu tanto a doença que de todos
os que a viam julgavam falecer».
D. João lI, que estava então em
Évora, quis ir visitá-la,
mas «o seu físico principal que então era o Dr. Mestre Rodrigo»
dissuadiu-o de ir sem ele lhe dizer. «Isto tudo era engano,
porque bem entendia e via o dito físico ser tudo em contrário
e que piorava muito e chegava aos derradeiros dias»(55) (prognóstico fatal).
Sua tia D. Filipa veio visitá-la, pelo que ela «se alegrou
algum tanto».
«E ainda que com o espírito muito folgasse e se alegrasse,
todavia com a doença grande não pôde falar nem dar ar de si
senão mui pouco. Assim se passaram aqueles dias com muito trabalho
daquela Senhora, mais que martir», que, com profundos
gemidos e suspiros oferecia ao Senhor Jesus «as dores que
padecia». Na sexta-feira de Endoenças para ir adorar a Cruz
teve de ser levada pelas irmãs, sentindo «muitas dores e
fraqueza»(56).
No sábado de Aleluia resolveu confessar-se para comungar
no domingo.
Depois da confissão ficou consolada, mas na noite seguinte
esteve «mui assicada de fortes acidentes», reconhecendo não
ser capaz de ir comungar. Os médicos não a deixaram ir ao
coro de baixo, sendo-lhe armado um altar no coro de cima
onde ouviu missa com a maior atenção, «como na sua maior
saúde», voltando entretanto para a cama com a maior dificuldade(57).
Os médicos disseram a D. Filipa como era grave «sua
grande doença, a que nenhum conhecia, nem entendia, nem achava nome, nem
aproveitava remédio algum, antes crescia
em grande maneira e piorava muito»(58).
O estado da Infanta ia-se agravando. «Inchava fortemente
e começou a se soltar toda de humores mui peçonhentos e por
vómitos de arrevessar com grande trabalho e força. Não dormia nem comia, por o grande fastio. Veio
a se lhe fazer uma
/
294 /
grande chaga em cima dum osso do quadril» (escara)(59). De dia para dia
o seu estado era mais grave(60).
Em 19 de Março fez testamento, por sua própria mão,
dando nele carta de
alforria a todos os seus escravos e escravas(61).
Em 5 de Maio, quarta-feira, começou «de se assicar e de mudar mais
do
acostumado», tendo «grandes dores e fortes acidentes». Às oito horas
sobreveio «um tão súbito, forte e desacostumado acidente à dita Senhora,
que de todo foi fora de si, e dos sentidos corporais, que nenhum sinal
de vida ficou em
ela, nem quentura natural, nem cor de rosto em ela».
Voltou a si «como quem acorda de grave sono».
Conversou a seguir com as irmãs, calma. «Passou assim
aquele dia todo, mui atormentada, e assim a noite, na qual não teve
repouso nenhum de sono».
No dia 6 pela manhã confessou-se com grande devoção e «parecia estar
de
perfeita saúde», contrastando a sua disposição de espírito com o
abatimento físico(62).
«A disposição e falecimento corporal era tão grande que
forte espanto fazia aos físicos e a quantos a viam».
«Recebido o Senhor e acabada a missa, esta Senhora se recolheu de
todo
com os físicos e com todos não falava somente o que lhe muito necessário
era»(63).
«Vendo... que de todo lhe desfaleciam as forças corporais»,
pediu para
a confessarem e lhe darem a extrema unção, pedindo perdão a todos(64).
Os restantes seis dias, depois de ser ungida, «todos se passaram,
quanto ao exterior do corpo, em purgatório de dores e enfermidades, por
diversas maneiras e modos, não tendo coisa e parte que não fosse
atormentada fortemente, em tal modo que nenhuma pequena volta podia dar.
E com muito trabalho seu e força lhe davam algum pouco sumo de carne e
água. Sono, nunca mais pôde tomar que fosse espaço de rezar um Pater Noster». «Padecia esta Senhora em todo o corpo»(65).
Dia 10, segunda feira, falou a todos com caridade, pedindo perdão de
culpas «com tanto amor e fortaleza, que parecia estar
na sua maior saúde».
Passou toda a noite «como quem sabia bem como tinha
perto a partida»(66).
Dia 11, terça feira. Veio a manhã. «E, vindo os físicos
para a visitar, disse que já escusados tinha físicos corporais;
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295 /
que fossem dizer a seus capelães que todos logo celebrassem e dissessem
cada um missa das Chagas, por remédio e aliviamento das penas que por
seus pecados a Deus merecia...» «Já não curava de mezinha
corporal
aqueles dias, que bem sabia serem os postumeiros» (últimos)
(67).
Pediu às irmãs que fossem repousar e dormir, «porque eu sei certo
que
esta noite vos hei-de haver mistér. E há-de ser a mim necessaria vossa
ajuda»(68).
«Começou com uma mui nova e desacostumada alegria do
seu espírito e rosto e com fortaleza incrível».
«Mandou chamar os físicos e, despedindo-se deles com muitas humanas
palavras, agradeceu a cada um a cura e remedios que lhe feitos tinham».
«Era verdade e confessava desejara muito e trabalhara por remédios para
viver» e «pedia a eles lhe perdoassem o trabalho que com sua grave
enfermidade e dores lhes dera» e que «sabia muito no outro dia àquela
hora não estaria onde então. Portanto era escusado tomarem mais trabalho
e ocupação»(69).
«Estava esta Santa Senhora com todos seus inteiros sentidos tão espertos
e bons como eram em sua perfeita saude, sem lhe falecer coisa alguma
todo seu entender, e ouvir e ver mui perfeito e a fala clara até à
derradeira e ultima expiração, sem nunca em sentido algum nem fala ter
pejo ou turvação, nem pequena nem grande».
«Às 10 horas mandou que lhe levantassem mais a cabeceira. Começaram-lhe
mui fortes dores de ventre, e ela, olhando para a Madre Prioreza,
disse-lhe: − Madre, com isto me começou e nisto me quere acabar»(70).
«...Começou esta Senhora a passar seu caminho em maneira que as
dores se asicavam muito por espaço de duas horas. E, desi abrandando,
ela pediu todas as irmãs fossem juntas. E as que em isso tomassem em
devoção rezassem a oração do Horto».
«Começou fortemente de suar e muito enfraquecer. Dava-lhe a Madre
Prioreza, que tomasse, um pouco de cordial. Disse com fala fraca: −
Madre, já não é tempo. Mas lede a paixão»
«Começou a Madre Prioreza a Paixão, a qual a dita Senhora ouviu com
tanto intento e quietação que, chegando ao passo onde o Evangelista diz
da bofetada que foi dada ao Senhor, ela, porque já não podia, acenou que
lhe levantassem o braço, e, estendendo a mão, deu uma tão grande
bofetada em sua
/
296 /
face que fez som». «Vendo a Madre Prioreza, Maria de Ataíde, em como
ela se despedia e falecia, suava muito e tinha o fôlego mui curto
(dispneia), deixou de ler a Paixão...»(71).
«− Pequei, Senhor, pequei! Perdoa-me por tua morte e
Paixão!
Isto dizia baixo, porém fala clara e sem nenhum embargo
da língua... e acabou dizendo mais claro, com gemido ou
suspiro... »
«Puseram-lhe diante o seu relicário da Vera Cruz; tomou-o, e,
beijando-o e adorando-o, com gemidos e suspiros e pondo os olhos na
Coroa de Espinhos, disse: − Ave spina, pene remedio, etc. E, acabando,
mui cansada do fôlego e grande suor em grandes gotas que caiam de sua
cabeça, rostro e mãos... »(72)
Chamou as irmãs todas, despedindo-se, anunciando-lhes que ia morrer e
rezando continuadamente. Depois disse ao padre Prior que dissesse as
orações da agonia.
Era a «sua criada Margarida Pinheiro(73) que lhe ajudava a sustentar a
cabeça, à qual mandou lha alevantasse com uma almofada. E lhe limpava
mansamente com uma toalha as gotas
mui grandes de suor, que em grande abastança corriam da cabeça e rostro».
As irmãs cercavam-na, de joelhos,
«algumas com os rostos
em terra, com muita dor e lágrimas sem conto.»
«Mas a Santa Senhora, de grande prazer e alegria, não dava gemido algum,
nem fazia jeito nenhum de dor, grande nem pequeno».
«Como esta Senhora começou entrar em seu derradeiro
'artigo, o seu rosto começou de se fazer e tornar muito mais formozo do
que até ali fora, porque três mezes havia que era mui desmudada na côr e
quebranto, mas não em as feições, que de seu natural eram mui bem
apostas e bem feitas».
Dia 12, quarta feira, às 2 horas da manhã
− Pediu baixinho que dissessem
a ladainha, o que o Prior começou a fazer, respondendo-lhe o outro padre(74). Então «começou a entrar naquele acidente, sentada direita, da
cinta para cima, encostada
por detrás, em almofada grande, no regaço da Madre D. Catarina da Silva.
E a cabeça lhe sustinha, da ilharga ou fronte, a dita sua criada
Margarida Pinheiro» e «o seu rostro foi tornado tão formoso, claro e
resplandecente que parecia um belilo (berilo) e vidro de cristal.
Alevantou os olhos à Cruz e Crucifixo que ante ela tinham. E porque de
seu natural eram verdes, mui fermosos... pareciam esmeraldas mui
finas...».
/
297 /
|
A MORTE DA
INFANTA SANTA JOANA
Quadro do 2.º quartel do século XVIII, que faz fundo
ao altar da capela instalada na cela onde a Infanta habitou e
faleceu
Museu de Aveiro −
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«Bulia com seus beiços esta mui Santa Senhora, como quem rezava baixo
sòsinho. Assim, com este mui claro aspecto, e muito formoso, abriu os
olhos, alçando-os para cima, e, estando
um pouco assim, e chegando com a ladainha, e dizendo o padre Omnes sancti ignocentes..., aquela mui inocente e pura alma foi solta da
prisão do cárcere deste mortal corpo».
/
298 /
«Sem fazer mais jeito algum de dor, mas mui quieta, alegre, claro e plácido vulto, se abaixaram e caíram suas formosas mãos,
que até àquele passo levantadas tinha ante a Cruz».
«E assim, subitamente, se cerraram seus
formosos olhos»(75),
na madrugada de 12 de Maio de 1490.
*
* *
Procuremos esquematizar esta «história clínica».
A Infanta Santa Joana, pessoa robusta,
saudável, de vontade
forte, porventura de temperamento linfo-bilioso(76), irmã de
D. João lI, que em criança foi muito doente e morreu aos 40 anos com
uma nefrite crónica, sofreu a sua primeira crise mórbida aos 23 anos,
tendo os médicos que a observaram em conferência diagnosticado doença grave dos rins e fígado e posto
em destaque o perigo do abuso de jejuns, penitências e cilícios,
fazendo-a desistir de professar.
Tendo nascido em 1452, entrou para o convento aos 20 anos,
lá convivendo com uma amiga que, devido a abuso de jejuns,
penitências e cilícios, veio a morrer ali em 1481 com tuberculose
pulmonar.
Em 1475 − Adoeceu subitamente de graves enfermidades,
ficando muito fraca.
Em 1481 − A seguir a beber um copo de água, em dia de grande calor,
sentiu-se muito mal, com vómitos e diarreia, com meteorismo,
tornando-se-lhe o facies cor de terra. Houve suspeita então de ter sido
envenenada.
Em 1489, em Dezembro, adoeceu com febre intensa, vómitos e diarreia
sanguínea.
A febre não a abandonou mais
até morrer.
Entretanto nunca deixou de abusar das suas forças, rezando
horas canónicas, fazendo penitências, jejuns e cilícios.
Em Janeiro e Fevereiro foi piorando cada vez mais. Com a maior
resignação suportou dores abdominais e gerais, febre,
timpanismo, anorexia, sede violenta e estomatite, tudo renitente
a todos os medicamentos e aos esforços dedicados dos melhores
médicos da época.
Em Abril, um dos mais categorizados, Mestre Rodrigo,
declarou o prognóstico fatal.
O enfraquecimento aumentou; as dores e a febre mantinham-se com oscilações.
Surgiu-lhe diarreia fétida, vómitos intensos, lipotimias,
escara de decúbito.
Contrastando com este estado cada vez mais grave, o seu
espírito mantinha-se nítido e lúcido, e os sentidos normais.
/
299 /
Apareceram-lhe dores por todo o corpo.
Teve a sensação da morte próxima. Mas isso, longe de a
aterrar ou desanimar, dava-lhe alegria, coragem moral, exaltação mística.
Dois dias antes de morrer chamou os médicos para se despedir deles e
lhes agradecer e afirmar o amor que tinha à vida, ao reconhecer que a
sua doença era incurável.
As dores abdominais exacerbaram-se na véspera de morrer,
surgindo suores profusos e dispneia.
Entretanto o facies retomou uma expressão de serenidade
grande, até entrar na agonia.
Em resumo, a sintomatologia foi, desde a segunda crise, de 1481,
essencialmente gastrointestinal. Essa segunda crise foi acompanhada
de febre? Não o diz a cronista. A crise iniciada em Dezembro de 1489 foi
sempre febril, durante cinco meses e três dias.
Confirmar-se-á a afecção aguda renal e hepática diagnosticada em 1475 pelos médicos? Será de admitir o envenenamento?
Essa crise de 1475 durou mais dum ano, parecendo que a
Infanta não
voltou a ter saúde desde então.
Tenha havido ou não envenenamento e doença dos rins e fígado, o que é
indiscutível é que desde 1481, quando tinha vinte e nove anos, até
morrer com trinta e oito, em 1490, a Infanta sofreu duma afecção
gastrointestinal, averiguadamente
febril nos últimos cinco meses.
Gastroenterite crónica, complicada ou não com afecções do fígado e
rins, e febril, numa doente que durante vinte e dois anos (dos dezasseis
aos trinta e oito) abusou de jejuns, penitências e cilícios e se expôs a
contágios, frequentando «sem nojo», a cada passo, a enfermaria do
convento, onde viveu durante dezoito anos e onde morreu tuberculosa uma
sua amiga íntima, cujo exemplo a levou a recolher-se, que doença
poderá ser?
E que doença gastrointestinal assim caracterizada é compatível com o estado de espírito, com a psicologia registada na
Crónica?
Não nos parece que possa fazer-se outro diagnóstico que
não seja o de enterite tuberculosa.
*
* *
Dito isto, como conferente menos categorizado, mais não
tinha a fazer do que dar a palavra aos outros conferentes.
Sendo porém este trabalho destinado, não só a médicos, mas a estranhos à
Medicina, não deixará talvez de ser interessante fixar neste lugar alguns dados que facilitem a compreensão da
sintomatologia relatada pela irmã MARGARIDA PINHEIRO.
/
300 /
Procuremos, pois, esclarecer alguns pormenores da doença
que vitimou a Infanta Santa Joana.
Tratemos de analisar os sintomas, para deles passar à designação da doença.
1.ª crise (1475) − Adoeceu subitamente de «graves e fortes doenças»,
concluindo os médicos categorizados da época que «tinha o fígado e rins
muito danados e quase podres». Ao
mesmo tempo dores e «maus inchaços, postemas e acidentes». Melhorou
com «remédios de grandes físicos». Esta crise, que se prolongou por
mais dum ano, e a deixou «mui fraca e debilitada», impediu-a de
professar.
2.ª crise (1481) − De novo adoeceu subitamente, a seguir a ter bebido um
copo de água em dia de grande calor. Surgiram-lhe vómitos, diarreia, meteorismo, grande astenia. O
facies tornou-se terroso.
3.ª crise (1489) − Febre intensa, vómitos, diarreia
− «Disenteria de
humores e sangue, durante alguns dias. E depois, no decurso de cinco meses, surgiram-lhe dores abdominais e meteorismo, a febre manteve-se,
com anorexia, sede intensa, estomatite, enfraquecimento progressivo, «fortes acidentes», diarreia fétida, dores por todo o corpo, vómitos
frequentes, escara de decúbito, lipotimias, insónias, suores profusos,
dispneia, mantendo sempre os sentidos apurados e a lucidez e viveza da
inteligência, até morrer.
Primeiro problema a pôr:
− Que teria levado os médicos
a inclinarem-se para a doença grave do fígado e rins? Dores? Icterícia?
Perturbações urinárias? Ascite localizada?
Os «inchaços», os «postemas» e os «acidentes» estariam ligados a
edemas localizados, a gânglios, a pústulas escrofulosas e a lipotimias
consecutivas a dores?
A cronista não nos dá todos os esclarecimentos. Mas sabendo nós que os
médicos do fim do século XV seguiam as
doutrinas árabes, principalmente, e estas tinham como origem
os escritos hipocráticos, não nos surpreende que a polaquiúria, a piúria,
a oligúria e possivelmente a hematúria, tudo sinais já
descritos por HIPÓCRATES(77), os tenham levado a convencer-se de que os rins estavam
«podres». Quanto aos sinais clínicos chamando a atenção para o fígado,
as dores na região hepática e a ascite localizada, forma da «hidropisia
do fígado» de que fala o mesmo HIPÓCRATES, justificavam perfeitamente o
diagnóstico. Juntos a sintomas gerais graves («graves e fortes
doenças») e
aos edemas dos pés e pernas que o médico de Cós inclui na sintomatologia
da referida doença, compreende-se assim o diagnóstico,
/ 301 / de prognóstico sombrio, feito pelos médicos «bons e
certos» da Infanta.
Diagnosticariam eles «tísica nefrética», seguindo a terminologia hipocrática? Diagnosticariam «hepatite»? Tudo era possível.
O que não teriam diagnosticado era uma tuberculose intestinal, doença que parece ter sido descrita apenas no fim do
século XVII pelo médico inglês Morton e no século XVIII pelo
italiano Morgagni e o francês Boyle(78).
Poderemos nós agora admitir que a Infanta sofreu em 1475 de tuberculose
renal primitiva? Ou deveremos preferir o diagnóstico de granúlia localizada? Haveria localização pulmonar?
Parece que não, pois a cronista, em geral tão minuciosa, não se refere a
ela, como, nesta primeira crise, não fala de febre, que, como se sabe,
pode faltar em certas formas localizadas, em
especial ao fígado, conforme a descrição referida por GIMBERT,
embora em tais casos o prognóstico seja em regra fatal a breve prazo(79).
Seja como for, a sintomatologia da primeira crise mórbida
cabe perfeitamente dentro da tuberculose aguda. Em 1475 havia três anos
que a Infanta estava no convento, a conviver com a Madre Leonor de
Meneses que seis anos depois morreu tuberculosa.
Segundo problema − Em 1481, a 2.ª crise mórbida teria
sido devida a envenenamento?
Se os sintomas não tivessem sido precedidos, seis anos antes, pelos da
1.ª crise, é possível que a hipótese de envenenamento fosse difícil de
desmentir. Assim, porém, e sabido como a obsessão do envenenamento das
pessoas reais está reduzida às devidas proporções; conhecendo-se a acção
dos alimentos frios no desencadear de diarreias tuberculosas;(80)
agrupando-se os sintomas (vómitos, diarreia, meteorismo, astenia
profunda) ao facies terroso(81); todo
este cortejo mórbido,
numa pessoa que na ocasião estava longe de Aveiro e das pessoas que
possivelmente a haviam ameaçado, acompanhada
de outras que nenhum interesse tinham na sua morte, antes
pelo contrário; sendo a água o veículo onde qualquer dos
tóxicos usados seria mais difícil de administrar sem se dar por
isso; tendo em atenção a sintomatologia tão minuciosa, quase
/ 302 /
clássica, desenrolada durante a 3.ª crise, não nos restam dúvidas de que
a hipótese de envenenamento é inadmissível.
A terceira crise, mesmo isolada das restantes, levava-nos
insensivelmente ao diagnóstico de tuberculose intestinal. Posta em face
das outras, impõe-no.
Faltam os resultados da autópsia, é certo. O
diagnóstico
não tem a confirmação anátomo-patológica. Sem dúvida. Mas
o diagnóstico clínico não se impõe menos do que a maior parte
daqueles de que nunca ninguém duvidou. Pode afirmar-se a nosso ver com
tanta segurança como o da doença que vitimou
Luís XIII de França, que foi autopsiado e o relatório de cuja
autópsia chegou até nós(82).
*
* *
Não vá porém julgar-se que, aceitando o diagnóstico de
tuberculose intestinal como causa da morte da Infanta Santa
Joana, depois duma longa doença de quinze anos, com grandes períodos de
relativo bem estar, nós não pusemos outras hipóteses, embora conheçamos
o aforismo de CHOMEL, aceite por
PAVIOT, PRUVOST GALLIARD e a maior parte dos autores, de que «uma diarreia crónica, rebelde, persistente,
com febre e suores nocturnos, e emagrecimento
progressivo, é quase sempre uma
diarreia tuberculosa»(83).
Vejamos que outras causas de diarreia poderiam admitir-se.
Longe de nós a ideia de estabelecer um quadro semeiológico completo das diversas diarreias. Recordemos todavia a natureza e
evolução geral delas, para irmos afastando hipóteses absurdas.
A diarreia, não registada pela cronista por ocasião da
1.ª crise (1475) foi o sintoma constante e predominante na 2.ª e 3.ª
(1481 e 1489); na 2.ª, acompanhada de vómitos, astenia e meteorismo e
seguida de cor terrosa da face, sem indicação de ter havido febre; na
3.ª sempre acompanhada de febre,
durante cinco meses, é de suores profusos, emagrecimento e
perda de forças progressiva.
A 2.ª crise, isolada, sem ter sido seguida da 3.ª nem precedida da
1.ª, podia levar-nos a pensar numa enterite banal estival, numa
febre tifóide, numa disenteria bacilar, numa enterocolite consecutiva a insuficiência hépato-renal (diagnosticada
/ 303 /
em 1475 pelos médicos), numa diarreia emotiva, ou numa dispepsia gastrointestinal.
O seu aparecimento súbito podia mesmo autorizar, como
já vimos, a hipótese de envenenamento, tanto mais que a cronista nos aponta
esse boato.
A circunstância de não registar a existência de febre durante esta 2.ª
crise e a cor terrosa do facies, de qualquer modo apoiam
a hipótese de envenenamento pelo ácido arsenioso, o tóxico
então mais usado com fins criminosos.
A mãe da Infanta, a infeliz Rainha D. Isabel, filha do
Regente D. Pedro, que, como vimos, morreu com «fluxo de
sangue», não se livrou da fama de ter morrido envenenada;
sua avó, a pouco simpática viúva de D. Duarte, passou como tendo morrido
envenenada por ordem do Condestável de Castela D. Álvaro de Luna(84);
seu tio, o Condestável D. Pedro, filho
do Regente, também consta ter sucumbido a veneno, em Barcelona(85); os seus outros tios, D. João e D. Brites, foram, parece,
envenenados também, aquele em Chipre, esta em Bruges; seu
irmão, finalmente, D. João II, ficou na tradição popular como
tendo sucumbido a peçonha(86).
Nada admira, pois, que em volta da morte de Santa Joana
se tenha formado a lenda de ter sido envenenada.
A respeito de D. João II, está perfeitamente demonstrado,
pelos estudos de D. ANTÓNIO DE LENCASTRE e RICARDO JORGE
e do
dito por não dito de BRAMCAMP FREIRE e JÚLIO DANTAS(87), que o
Príncipe Perfeito sucumbiu devido a uma nefrite crónica.
Devido
aos excessos alimentares, que refere GARCIA DE RESENDE(88),
provocando-lhe crises urémicas, edemas e anasarca, como concluiu D.
ANTÓNIO DE LENCASTRE? Como reliquat de envenenamento anterior na Fonte
Coberta, ou intoxicações lentas, como pôde admitir-se?
Parece mais provável concluir que, segundo esclarece a
irmã MARGARIDA PINHEIRO na sua Crónica de Aveiro, que ninguém
pode considerar cúmplice dos inimigos de D. João II, este, muito
doente desde criança, a ponto de se recear até aos quinze anos,
a cada passo, que sucumbisse, houvesse sofrido de escrofulose
ou mesmo de tuberculose renal.
De que morreu afinal sua mãe? De «fluxo de sangue»
/ 304 /
cinco meses depois de ele nascer. Hematemeses? Hemorragias
uterinas? Hemorragias intestinais? Hemoptises? Não o conseguimos apurar. Apenas sabemos que, casada ainda criança
com seu primo D. Afonso V, passou uma vida de angústias, no meio das
intrigas tecidas em volta de seu pai, entre este e o marido que a
adorava, mas que, tomando o partido dos inimigos do Regente, o havia de levar à morte em Alfarrobeira, em 1449, e ao
miserável abandono do seu próprio cadáver, que
exigiu, para cessar, intervenção estrangeira. Sabemos que depois
desses dias trágicos, tinha ela dezassete anos, não descansou enquanto
não conseguiu reabilitar a memória do pai; que aos vinte anos deu à luz
a Princesa D. Joana e aos vinte e três
D. João; que sofreu toda a casta de vexames da parte dos inimigos de seu pai, que «chegaram a levantar aleivozias e infâmias contra a honra» dela; que fizeram todos os possíveis para
que o marido a repudiasse, «chegando os médicos e os padres
a aconselhá-lo a que não coabitasse com sua mulher, porque
lhe podia ser fatal à sua saúde»(89).
Que poderia ela ter que servisse de pretexto a tais instâncias? Hematemeses? Hemorragias uterinas?
É mais natural
que o «fluxo de sangue» que a vitimou estivesse ligado à
mesma doença, devido à qual queriam afastar dela o marido,
doença própria da idade moça, tida como contagiosa desde a
maior antiguidade(90), agravada por choques morais violentos e pela
perda do apetite, irregularidades alimentares e falta de repouso a que
estes dão origem sempre, agravada também por dois partos, a três anos de
distância um do outro. Essa
doença é a tuberculose pulmonar complicada de hemoptise. Mas pode
admitir-se a tuberculose intestinal, dando lugar a
enterorragias, embora seja mais de crer a primeira hipótese.
Para que ir procurar como causa
desse «fluxo de sangue»
o envenenamento?
Não temos elementos para discutir, por agora, os diagnósticos de
envenenamento de D. Leonor de Aragão e dos três outros filhos do Regente, D. Brites, D. Pedro e D. João.
Mas voltemos a Santa Joana.
A obsessão popular do envenenamento dos reis levou certos historiadores a aceitar sem provas os maiores absurdos.
Citaremos apenas o da morte de Luís XIII de França, que teria
sucumbido a veneno ministrado por Richelieu quando este já tinha morrido
há seis meses à data em que o rei foi vitimado por
uma tuberculose intestinal, documentada pelo relatório da autópsia,
/ 305 / confirmando a história clínica, indiscutível(91). E, a juntar a
este caso, o de D. Pedro V e dos irmãos, vítimas de febres tifóides, diagnosticadas clinicamente e confirmadas pelas autópsias.
Mas Santa Joana?
O ter morrido nova, com trinta e oito anos, não é argumento.
Seu irmão morreu com quarenta, seu pai com quarenta e nove,
sua mãe com vinte e três, o tio D. Fernando com trinta e sete,
com febre,(92) talvez tuberculoso.
O haver a crise de 1481 surgido subitamente, a seguir a ter
bebido um copo de água, também não. Primeiro, porque um
copo de água fria bebido em dia de calor pode provocar sintomas iguais, que nada têm com a hipótese de envenenamento.
Segundo, porque, a acreditarmos
em BRIAND e CHAUDÉ(93), em
duzentos e cinquenta e oito casos de envenenamento por ele
estudados, a água nunca foi utilizada, sendo-o a sopa, em cento
e doze casos, o vinho em vinte e quatro, o pão em dezassete,
a farinha em dezasseis, o leite em dezasseis, o chocolate e o
café em dez, vários outros alimentos e sal em trinta e quatro,
medicamentos em vinte e dois, e sem mistura alguma em sete.
Não quer isto dizer que a água não possa ter sido utilizada.
No século XV os venenos mais conhecidos eram os arsenicais,
os sais de chumbo e de antimónio, com os vapores de mercúrio,
as carnes podres e as peçonhas de víbora e escorpião(94).
De todos estes tóxicos só nos parece admissível a hipótese
de poder ter sido utilizado o ácido arsenioso, solúvel em oitenta
partes do seu peso de água fria(95) e mortal na dose de dez
a quinze centigramas, insípido e fácil de disfarçar num púcaro,
como aquele de que se serviu a Infanta.
Mas será de admitir esta hipótese?
A sintomatologia, encarada superficialmente, não a desmente.
Doença súbita, a seguir a ingestão de água, caracterizada
por vómitos, diarreia, astenia e facies terroso, pode ser devida
a envenenamento pelo ácido arsenioso.
Mas súbita foi também a 1.ª crise, em 1475, e seria absurdo atribuí-la a
envenenamento, de que, de resto, não fala a cronista.
O de 1481 podia ser perpetrado por alguma mulher ou clérigo
de vida imoral a quem a Infanta houvesse ameaçado com a
justiça se não se emendassem. O de 1475 porém só podia
admitir-se aceitando a hipótese absurda de ter sido ordenado
ou por D. João II, ou pelos procuradores das cidades, vilas e
lugares, que se tinham exaltado com a Princesa, pouco antes,
/
306 /
sim, mas por ela fugir do mundo e pôr em risco a sucessão do Reino.
Iriam eles próprios
comprometer definitivamente essa sucessão por parte da Infanta, dando-lhe a morte? De modo algum,
evidentemente.
A não ser que, num romance de
grand guignol, fosse, à
maneira do que urdiu CAMILO nos Narcóticos a respeito de Mestre João da
Paz, fantasiar-se um complot de médicos a ministrar à Infanta com
segurança, de modo a não lhe produzir a morte, o quantum satis
de
venenos que bastassem para lhe provocar doença impedidora de a deixar
professar e se houvessem de atribuir ao arsénico as pústulas e o
apodrecimento do fígado e dos rins. Mas para quê todo esse fantasiar?
E depois, a pigmentação que por vezes surge na pele a seguir às
intoxicações arsenicais, é raro ser geral e em regra é limitada às
articulações e a regiões sujeitas a pressões, poupando a face.
Não. A hipótese de envenenamento, registada apenas para não se dizer que
pretendemos fazer calar a vox populi, por a temermos, é inadmissível. O
estudo atento da sintomatologia das intoxicações arsenicais ou outras
admissíveis no século XV, mostra a sua inconsistência.(96)
*
* *
A contra-prova é dada pela evolução da 3.ª crise, minuciosamente
descrita pela cronista, que a ela assistiu desde o princípio até ao fim,
como enfermeira dedicada da Infanta.
Como admitir que a 3.ª crise fosse devida a envenenamento? Como
atribuí-la a consequências dum envenenamento feito em 1481? (só nesse
ano ele teria sido consecutivo a ameaças).
A crise de 1475 não se tornou suspeita à cronista, e é inseparável das
outras duas, formando no conjunto um quadro mórbido completo.
Posta de parte a hipótese de envenenamento criminoso, sem esgotar os
argumentos, fáceis de coleccionar, para não abusar do leitor, vejamos se
outras hipóteses podiam explicar a sintomatologia apresentada.
Comecemos por admitir que as três crises não hajam tido
origem comum.
A primeira, tendo a Princesa 23 anos, podia ter sido devida
a uma febre tifóide ou a uma séptico-piohemia.
/ 307 /
[Vol. VII - N.º 28 -1941]
Tivesse mesmo sido depois de 1493 e não em 1475 e tratasse-se dum homem
exposto ao contágio frequente e não duma senhora com as qualidades de
Santa Joana, que poderia pensar-se numa hipótese, ainda assim arrojada, mas possível, a
de sífilis, doença que a seguir à descoberta da América por Colombo
irrompeu em forma quase epidémica na Europa, a
partir de Barcelona(97) e apresentando-se não só como tendo
origem venérea, mas também, e com frequência, honesta. Essa
hipótese, moral e historicamente absurda, embora ninguém
duvide da existência antiquíssima da doença, poderia, se o não fosse, explicar não só a sintomatologia de 1475 (gânglios,
pústulas, sofrimento renal e hepático) como as crises de 1481
e 1489, podendo os vómitos e diarreia e restantes sintomas provir de intoxicação medicamentosa pelo mercúrio, vulgar no início
da sua aplicação quatrocentista, a seguir a ser este preconizado
em 1495 por MARCOS CUMANUS, médico do exército veneziano(98). A febre
poderia ter sido devida a infecção secundária.
Mas, repetimos, essa hipótese é moral e historicamente absurda.
Nem sequer a admitimos, partindo do princípio de que os
médicos da Infanta, não pensando evidentemente na sífilis,
muito embora se hajam prescrito fricções de pomada mercurial
no tratamento das pústulas da pele, tratamento já preconizado,
como se sabe, no século XIII por TEODORICO DE LUCQUES, cuja
obra possivelmente serviu de guia a um médico de D. Dinis,
Mestre Giraldo,(99) embora tenha sido invocado como tal outro TEODORICO(100).
Posta de parte a ideia de intoxicação medicamentosa mercurial, pensemos, visto a sintomatologia da
1.ª crise, aceitando-a como
independente das outras, ser muito vaga, se outras hipoteses podem encarar-se em face da sintomatologia da
2.ª crise,
sem voltar a insistir sobre a do envenenamento criminoso. Na
verdade, pode admitir-se a febre tifóide, qualquer enterocolite
infecciosa, ou parasitária, alimentar, ou ligada a insuficiência
hépato-renal. A cronista não refere a febre, é certo, o que prejudica o
diagnóstico de febre tifóide e outras enterites infecciosas.
Esse facto porém não significa que a febre não existisse, quer
na 2.ª, quer na 1.ª crise mórbida, mas apenas que, tendo-se
passado oito e catorze anos antes da de 1489, a boa freira apenas episodicamente se lhes referiu, tendo esquecido pormenores
/ 308 /
delas ou não tendo acompanhado dia a dia a enferma, como na doença
final.
E a terceira crise, poderia ser devida a outras afecções?
Pode admitir-se uma
enterocolite infecciosa? Uma disenteria seguida de enterite crónica banal? Uma diarreia urémica,
complicação de insuficiência hépato-renal antiga? Uma diarreia ligada a
cirrose hipertrófica biliar? Um cancro intestinal?
A febre alta inicial e
contínua durante cinco meses, põe de parte a hipótese de urémia, aliás acompanhada habitualmente
de apatia intelectual, como afasta a de cancro intestinal.
Quanto às outras, parece-nos ser precisa
muita subtileza para as
defender, e muita predilecção pelo sofisma para as admitir, mesmo
partindo do princípio de que as três crises mórbidas foram independentes
umas das outras.
Com efeito, desde os tratados de
CHOMEL e GRlSOLLE às lições de
TROUSSEAU e JACCOUD e de estas aos livros de GASTON LYON,
PAVIOT,
COLLET, MARTINET, PROU, ODO, GALLIARD e PRUVOST(101), para não citar
senão autores que andam nas mãos de
todos os médicos, a descrição que mais se sobrepõe à «história clínica»
de Soror MARGARIDA PINHEIRO é a da tuberculose intestinal.
*
* *
Associadas as três crises,
esse diagnóstico parece-nos indiscutível.
A Infanta Santa Joana que, segundo muitas probabilidades, era filha
duma tuberculosa, mas se expôs incontestavelmente ao contágio tuberculoso desde os vinte anos, pelo menos, deve ter
sido atacada de granúlia aos vinte e três anos, com rebate hepático,
renal, ganglionar e cutâneo; aos vinte e nove anos, depois de seis anos
de vida enfermiça, teve as primeiras perturbações gastro-intestinais,
desencadeadas devido à ingestão dum copo
/ 309 /
de água fria, em dia de calma; aos trinta e sete iniciou-se a
diarreia crónica, com o seu cortejo sintomático clássico, que a vitimou
cinco meses depois, sem sequer lhe faltar durante a última doença o
estado mental característico dos tuberculosos, de lucidez constante e hiperstesia sensorial(102).
Eis o que pude concluir da «história clínica». Têm a palavra agora os
outros conferentes.
Caldas da Rainha − Novembro de 1941.
FERNANDO DA SILVA CORREIA |
(1)
−
Vid. Crónica da fundação do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e Memorial da
Infanta Santa Joana (códice quinhentista) − Leitura, revisão e prefácio de ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL
− Edição do Prof. Dr. FRANCISCO FERREIRA NEVES − Aveiro, 1939 − XXXIX
− 304 páginas (31 de prefácio).
(Nas citações é indicada como Crónica de Santa Joana).
(2)
−
Crónica de Santa Joana, pág.
134.
(3)
−
DAMIÃO DE GÓIS, Crónica do Príncipe D. João. Edição de Coimbra.
1905, págs. 3 e 9.
(4)
−
Crónica de Santa Joana, pág.
92.
(5)
−
Crónica de Santa Joana, págs.
97 a 133.
(6)
−
GARCIA DE RESENDE, Crónica de El-Rei D. João lI. (Edição de Melo
d'Azevedo), voI. I, pág. 23.
(7)
−
Idem.
(8)
−
Idem, pág. 16.
(9)
−
Idem, pág. 15.
(10)
−
Idem, pág. 26.
(11)
−
CONDE DE SABUGOSA, A Rainha D. Leonor; RICARDO JORGE,
O óbito de
D. João II.
(12)
−
Crónica de Santa Joana, págs.
76-77.
(13)
−
Idem, pág. 76.
(14)
−
Idem, pág. 77.
(15)
−
Idem, pág. 78.
(16)
−
RUI DE PINA, Crónica do Senhor Rei D. Afonso
V; HENRIQUE LOPES DE
MENDONÇA, Boletim da Academia das Ciências, 1918, n.º I do VoI. XIII;
JÚLIO
DANTAS, Arte de amar; MARQUES ROSA, Princesa Joana, citados por A. G.
DA ROCHA MADAHIL, in Crónica de Santa Joana, Prefácio, pág. IX e
X.
(17)
−
Crónica de Santa Joana, pág.
80.
(18)
−
Idem, págs. 80, 81.
(19)
−
Crónica, págs. 81 a 83.
(20)
−
Idem, pág. 82.
(21)
−
Idem, pág. 83.
(22)
−
Idem, pág. 84.
(23)
−
Idem, pág. 86.
(24)
−
Idem, pág. 87.
(25)
− Idem, pág. 89.
(26)
− Idem, págs. 96 e 97;
e JOÃO PEDRO RIBEIRO, Dissertações chronologicas, Tomo I, n.º CXVII.
(27)
− Crónica, pág. 97 a 133.
(28)
− Idem, pág. 108.
(29)
− Idem, pág. 113 e
115.
(30)
−
Idem, pág. 116.
(31)
−
Idem, pág. 124.
(32)
−
Idem.
(33)
−
Idem, pág. 125.
(34)
−
Idem.
(35)
−
Idem, pág. 126.
(36)
−
Idem.
(37)
−
Idem, págs. 54 e 132.
(38)
− Idem, pág. 136.
(39)
−
Idem, pág. 99.
(40)
−
Idem, págs. 137 e 138.
(41)
−
Idem, pág. 139.
(42)
−
Idem.
(43)
− Idem, pág. 142.
(44)
−
Idem.
(45)
−
Idem, pág. 116.
(46)
−
Idem, págs. 142 a 145.
(47)
−
Idem, pág. 145.
(48)
−
Idem.
(49)
−
Idem.
(50)
−
Idem.
(51)
−
Idem.
(52)
−
Idem, pág. 147.
(53)
−
Idem, pág. 148.
(54)
−
Idem.
(55)
−
Idem, pág. 149.
(56)
−
Idem, pág. 150.
(57)
−
Idem, págs. 150 e 151.
(58)
− Idem, pág. 151.
(59)
−
Idem.
(60)
−
Idem, pág. 152.
(61)
−
Idem, pág. 153 e 154.
(62)
−
Idem, págs. 155 e 156.
(63)
−
Idem, pág. 156.
(64)
−
Idem, pág. 157.
(65)
−
Idem, pág. 158.
(66)
−
Idem, pág. 160.
(67)
−
Idem, pág. 161.
(68)
−
Idem, pág. 162.
(69)
−
Idem, pág. 163.
(70)
−
Idem, pág. 164.
(71)
−
Idem, pág. 165.
(72)
−
Idem, pág. 166.
(73)
−
MARGARIDA PINHEIRO é a autora da
descrição da doença e morte.
(74)
−
Idem, pág. 167.
(75)
−
Crónica, pág. 168.
(76)
−
Vid. retrato do Museu de Aveiro.
(77)
−
«Traduction des oeuvres médicales d' Hippocrate, sur le texte grec»
−
segundo a edição de Foës, Toulouse, 1801, Fages, Meilhac & C.ie, Tomo
III, págs. 217, 386 a 408. Vid. também Aphorismos, in Tomo II, pág. 128
e Prognósticos, in Tomo I, págs. 36 e 540.
(78)
−
Maladies de l'intestin, por GALLIARD, in
Tratado de Gilbert e
Thoinot,
edição de 1912, pág. 177.
(79)
−
GIMBERT, «Tuberculose aigüe» in Tomo
XVIII do Tratado de
Patologia Médica e de Terapêutica aplicada, dirigido por SERGENT,
RIBADEAU-DUMAS e BABONEIX, Tuberculose, II, pág. 191.
(80)
−
PIERRE PRUVOST, «Tuberculose du tube
digestif et du péritoine»,
no
mesmo volume, pág. 658.
(81)
−
Idem, pág. 657.
(82)
−
CABANES, «Les mortes mystérieuses de
l'histoire» (2.ª série) pág. I
a 39.
(83)
−
PAVIOT, «Précis de diagnostic
médical et de sémeiologie»,2.ª edição,
pág. 237.
PRUVOST, loc. cit., pág. 661. GALLIARD, «Maladies de l'intestin» in
Tratado
de Medicina e Terapêutica, de GILBERT e THOINOT, ed. de 1912, pág. 197,
188.
CHOMEL, «Pathologie générale».
(84)
−
Dicionário «Portugal» − D. Leonor.
(85)
−
Idem, D. Pedro.
(86)
−
OLIVEIRA MARTINS, Os Filhos de D.
João I
(87)
−
OLIVEIRA MARTINS, Os Filhos de D.
João I(87) CONDE DE SABUGOSA, A Rainha D. Leonor; RICARDO JORGE,
O Óbito de
D. João II; Idem, pag. 55; JÚLIO DANTAS, artigo no número da Gazeta
das Caldas de 18-Xl-1925, comemorativo do 4.º centenário da morte da
Rainha D. Leonor (depois transcrito no Diário de Noticias); e FERNANDO
CORREIA, O julgamento da Rainha D. Leonor (inédito).
(88)
−
Crónica d'El-Rei D. João II (Virtudes, feições, costumes e manhas
d'EI-Rei D. João, o segundo).
(89)
−
Dicionário «Portugal» − D. Isabel.
(90)
−
Vid. Obras de HIPÓCRATES, CASTIGLlONI,
Histoire de la Médecine,
Edição
Payot, 1931, pág. 141. Na livraria de D. Duarte havia as obras de
AVICENA, (Vid. Provas da História Genealógica, Vol. I, pág. 544).
(91)
−
CABANES, Les mortes mystérieuses de I'histoire (2.ª série),
pág. 22.
(92)
−
CONDE DE SABUGOSA, A Rainha D. Leonor, pág. 19.
(93)
−
BRlAND E CHAUDÉ, Manuel de Médecine légale, 1863, pág. 456.
(94)
−
Encyclopédie medico-chirurgicale-Intoxications, 1937, 16.001,
pág. 1.
(95)
−
LYON E LOlSEAU, Formulaire thérapeutique.
(96)
−
BRIAND E CHAUDÉ, loc. cit.; BALTHAZARD,
Médecine légale; VIBERT,
Précis de Toxicologie; ODDO, La médecine d'urgence; LECLERQ, DUVOlR,
POLLET, e MELlSSINOS, lntoxications (respectivamente pelo arsénico,
chumbo, mercúrio, antimónio e fósforo), in Encyclopédie
medico-chirurgicale.
(97)
−
CASTlGLIONI, Histoire de la
médecine; DIEPGEN, Historia de la
Medicina; VENZMER, Uma moléstia agonizante; RIBEIRO SANCHES, cit. por
MAXIMIANO DE LEMOS, in História da Medicina em Portugal, Vol. II.
(98)
−
MANQUAT, Traité élémentaire de thérapeutique, 6.ª edição, pág. 92.
(99)
−
CASTlGLIOI, loc. cít., pág. 279; e Livro de alveitaria de Mestre
Giraldo,
in Revista lusitana, vol. XII, 1-2 (1909).
(100)
−
JOAQUIM FIADEIRO, A contribuição científica
da Medicina
Veterinária
Portuguesa, (Congresso da actividade científica de 1940).
(101)
−
CHOMEL, Éléments de pathologie générale,
4.ª edição, 1856.
GRlSOLLE, Traité élémentaire et pratique de pathologie interne,
7.ª ed., 1857.
TROUSSEAU, Clinique Médicale de l' Hôtel Dieu de Paris, 2:
ed., 1865.
JACCOUD, Leçons de clinique médicale faites à l'Hôpital de
la Charité,1867
GASTON LYON, Précis de clinique sémiologique, 1924.
PAVIOT, Précis de Diagnostic Médical, 2.ª ed., 1912.
COLLET, Précis de pathologie interne, 7.ª ed., 1914.
MARTINET, Diagnostic clinique, 2.ª ed., 1920.
PRON, Les maladies de l'intestin, 1921.
ODDO, La Médecine d'urgence, 5.ª ed., 1922.
GALLIARD, GUIART, HUTINL, THIERCELlN, Maladies de l'intestin (in
Traité
de Médecine et de thérapeutique de GILBERT E THOINOT), 4.ª ed., 1912.
PRUVOST e outros, Tuberculose, (in Traité de pathologie médicale & de
Thérapeutique appliquée, de EMILE SERCENT, RlBADEAU − DUMAS,
BABONNEIX), 1921.
JACQUES STEPHANI, Etude clinique et radiographique des formes de la
tuberculose pulmonaire, 1935.
(102)
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(102) LADlSLAU PATRÍCIO, Altitude, 1938.
THIAGO DE ALMEIDA, Estudos sobre a Tuberculose, 1921.
HONIGMANN E
STERN, Tratado de diagnóstico diferencial, Tomo IV, Psiquiatria, (tradução espanhola), 1933. |