(Redacção definitiva)
I
Vai para século e meio, nasceu no
Porto um homem de génio. Esse homem
chamou-se − ALMEIDA GARRETT. A rua onde nasceu é íngreme e chama-se Rua
do Calvário. Vizinha com o rio e com a cadeia. Dali se ouvem bater nos tolêtes os remos
ribeirinhos e o ferro do carcereiro nas grades da Relação, a
experimentar-lhes a segurança, ao dar das Avé-Marias. De lá se
defrontam os pendores de Gaia e avistam os vagalhões da Barra.
A vida de GARRETT passa-se sob essa sina: acidentada como a rua natal, e
ora desterrado, ora no cárcere.
No seu apelido anda sangue nobre do Piemonte; nas reminiscências da
meninice andaram sempre as recitações com que a velha Brígida, criada de
sua avó, o entretinha na Quinta do Sardão, e as lendas e contos de que a
Rosa mestiça lhe tecera o gosto pelo maravilhoso popular; do nascedouro
trazia o entendimento das liberdades públicas; e as suas nunca jamais
alteradas relações com o Oceano, de doze anos vividos nos Açores, as
nove musas atlânticas, rosário de nove Glória-Patri por onde reza o
infinito.
Todas estas herdanças GARRETT honrou. Foi príncipe no vestir e no
tratar, foi popular na fonte original da inspiração, portuense no
guerrear pela Pátria, português no seu amor ao Mar. Cantou, criou o
Romantismo, reconstruiu o nosso teatro, provou dos cárceres, conheceu os
exílios, relanceou o Poder, saboreou a calúnia, privou com a Glória e
correu mundo. Viajou tanto que até viajou Portugal. A prova é que
escreveu um livro chamado Viagens na minha terra. Lera-o eu ali
por volta dos meus... dezassete anos. Nunca mais lhe
pusera a vista em cima. Um dia, passando por murada de livros menos à
mão, reparei nos dois pequenos volumes das Viagens. Um acaso, pai de
mais esta tentação − folheá-los. Agradei-me da primeira página, fiquei
para a segunda e, sem dar fé do tempo, a todo o primeiro capítulo me
prendi.
GARRETT vai a Santarém, Tejo arriba. Bem de ver, entra a descrever a
abalada do Terreiro do Paço e o caminho. Passa Enxobregas, as hortas de
CheIas, deixa na esteira a tauromáquica
/
264 / Alhandra e, por alturas de Vila Franca, apetece-lhe estender as
pernas até à proa. Aceso o bem-humorante charuto no lume de prestimoso
cigarro, atenta na companhia. Dentre os passageiros topa dois grupos:
num, cinco atletas, de calção amarelo e jaqueta de ramagens, que
voltavam da última corrida na praça de Sant' Ana; noutro, seis ou sete
figuras trajando o saiote grego dos varinos e o tabardo siciliano. A
gente do norte testilhava com a do sul. A aparição de GARRETT acomoda a
contenda; mas prestado o fogo, um dos ílhavos roga-o para juiz. Os
campinos lá por pegarem toiros imaginam que ninguém
lhes chega. Apregoavam:
− «A força é que se fala. Um homem do campo que se deita ali à cernelha
de um toiro que uma companhia inteira de varinos lhe não pegava, com
perdão dos senhores, pelo rabo...»
Um dos varinos, embora atordoado pela gargalhada ribatejana, não descoroçoou:
− «Então agora como é de força, quero eu saber, e estes senhores que
digam, qual é que tem mais força, se é um toiro ou se é o mar.
− «Essa agora!...
− «Queríamos saber.
− «É o mar.
− «Pois nós que brigamos com o mar, oito e dez dias a fio
numa tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma
tarde com um toiro, qual é que tem mais força?»
Os campinos dobraram a cerviz.
Para lhes travar para sempre as campainhas, bondava
agarrar-lhes pela jaleca e levá-los ali à Torreira, numa madrugada em
que o búzio soasse e duas companhas arrancassem para a « recachia»(1).
Os de Ílhavo são peixes de água salgada. Vivem no mar. O comando da
nossa marinha mercante está nas mãos deles.
Os da Murtosa, esses não se contentam em ser mareantes. Acham aquilo
monótono e, salvo horas naufragantes, luta branda. A pesca, sim, que é
movimentada, pede força, tira de condição a coragem, faz preço à
audácia, requer do homem a agilidade da onda e o segredo do ritmo. É a
paixão dos murtoseiros. Não é este nem aquel'outro. Observem-nos e verão
que aprender um é conhecê-los a todos. Todos parecem irmãos do António
do Monte, um homem do cano do remo. Para eles não há mar picado nem onda
brava: há ou não há sinal de peixe, lá ao largo. O mar pode estar um
lago, sem farrapo de nuvem, e as companhas não saírem. Mas o arrais
lobrigou, no entreluzir da manhã, o bater dos alcatrazes? O enorme búzio
soa, trespassando, com o seu chamadouro rouco, a
/
265 / dormente serenidade da vila. É a chamada para combate. Toda a Murtosa
desperta. A vaga ruge mais alto que o som do búzio. Deixá-lo! O arrais
viu os alcatrazes baterem de bico para baixo, é o sinal de sardinha.
Ninguém pensava em ir ao mar naquela manhã. A companha da «Carneira»,
confiante em Nossa Senhora do Carmo, sua padroeira, resolveu ir, vai
tudo. Correndo, no seu correr de sombras, miudinho e compassado,
no jeito de trilhar a areia, uns de «malaias», que só lhes dão
pelo joelho, outros de calça de ganga azul e a camisola de lã
da indústria caseira, as companhas achegam ao embarcadoiro.
Toca a carregar: calas a um lado e outro, rolos de cabos no fundo, ao de
cima a rede, outra bateria de cordas, tudo
arrumado ritualmente, num preceito de equilíbrio que dir-se-ia
não pescadores a lastrar um barco, mas trovadores do século XII
pesando, em balança de oiro, os hemistíquios dum alexandrino.
A companha mete ombros à nave. O arrais comanda, num
ritmo grave:
− Bo... ta abaixo! Bo... ta abaixo!
O barco estremece, despega-se, dá uma corrida nos rolos
de madeira, e estaca. O arrais não se cala com a sua ajuda
rítmica:
− Bo... t'abaixo!
Os homens procuram jeito, agarram-se ao casco, dão novo
lanço, o canto do arrais desentranha do solo aquele peso de
penitência:
− Eh!... Bota! Bo... t'abaixo!
O trilho é mais a pique, a gravidade puxa também, a
ondina vem à praia chamá-los, e a cada cadência do comando − «Bo... t'abaixo!»
−, os ombros dos homens rojam o casco, balançam, os
movimentos tornam-se cada vez mais frequentes
e isócronos, o avanço aguenta-se quase contínuo, e o esforço rude já não
pára até o depor aos pés do mar.
António do Monte e os companheiros benzem-se, saltam
para dentro. Os quarenta homens estão a postos; uns tantos sentados,
outros de pé, ao remo, e os restantes aos cambões.
Esperam apenas que a vaga quebre de feição para dar calado.
Outra companha aguarda também que o mar dê um jeito.
Cada uma é uma orquestra sinfónica, presta a obedecer à batuta do
mestre. O arrais, agarrado ao golfeão, ergue o braço
que empunha a corda do comando, dá uma pancada na proa, e a marcha rompe
num intróito de fortes. Os remos dão a
arrancada. A outra companha arranca também. O mar, que
a princípio não dera fé, enfurece-se, e atira uma, duas, três vagas
que espadanam, com bramido de cólera. Na praia, a abençoar
a largada, as mulheres respondem ao mar em côro de angústia. A corda do arrais continua a reger a remada. Os homens
deitam proporções mitológicas. Os músculos parecem espias
de guinchos. E as duas campanhas remam, remam, num desafio
/
266 /
indiferente à braveza do mar e à grita que vai em terra... É a «recachia», uma regata através dos obstáculos temerosos de procela.
António do Monte vai, soberbo, de pé, ao cano do remo, atirando os
punhos para diante. Cada vez que a pá escava a
água, o mar, ressentido, alteia-se. O barco soergue-se. Uma vaga, de
curiosa, não querendo crer que aquela menisca de luz seja batel
tripulado por mortais, forma um salto, a espreitar para dentro da nave.
O barco adeja, os remos tornados asas, e desaparece uns momentos na
vertente da vaga. Na praia, o alarido reboa, aterrador. Há mulheres
feitas um novelo de pânico, o lenço da cabeça descido em alpendre sobre
os olhos, sem coragem para presenciar a desgraça. Outras, de joelhos,
rezam, a tremer pavor de sezões. Um baixo relevo, entalhado na areia
deplora os trabalhos que passa quem anda sobre as águas do mar.
Outra torre de espuma. O barco, uma palhinha a prumo, escala
a onda:
Milagre que as companhas não selam baldeadas! O arrais continua a marcar
o compasso à proa. Os braços, afinados pelo diapasão, mantêm o ritmo do
esforço, e o barco corta a onda, com elegância de nereida, coleando,
descendo, como raio de luz que brincasse no côncavo dum espelho. Mais
outro castelo denteado de verde. Outra grita em terra. Outra escalada do
barco que, rachada a primeira onda, e topada outra na dianteira, vai,
vem, como se a vaga andasse a brizá-lo para o adormecer.
Quadro eterno: mar da costa portuguesa, gente duma bravura mitológica e
humildade cristã venerando catedrais de espuma.
Tábua humilde, sem armação guerreira nem astrolábio descobridor, o barco
é instrumento que o mar gosta de pôr em vibração para lhe ouvir a
marcha da audácia, − batalha de duas ondas: onda marinha, temerosa e
traiçoeira, onda musical da energia humana tornada graça. Em terra, já
longe, responde o côro das mulheres − a consciência das duas vagas.
A «recachia» continua, assim, em remadas fundas, desafiadoras. Quando António do Monte atira o cano do remo, dir-se-ia que
todo o Oceano sente o estremeção do remesso.
E com ardor de semi-deuses, as companhas alcançam a
linha da pesca.
Ao rumor da luta sucede silêncio religioso.
É o lanço. O arrais da proa
persigna-se, e atira a bóia. Acabou o seu reinado. Começa o do arrais da
ré, governo mais acidentado, pesado a perícia e a destreza.
Lançada a rede, a companha aí volta, corda bem testa na mão do comando.
Olhos na vaga, mal se aproxima e ergue na frente dele o gládio glauco, o
arrais passa a corda em oito no leque da ré. Uma remada estica ainda mais
o cabo. O barco é aríete apontado ao cabeço da vaga, esperando o ataque.
/
267 /
O mar estruge e o madeiro risca a onda que tenta volteá-lo, erguendo-lhe
a ré. Mas ainda a nave vai na crista da onda, o arrais, numa manobra de
acrobata desdá o nó, e o barco afasta-se, deixando-a prosternada. O mar
não desarma. O arrais não afrouxa o cabo que a lonjura reduz a uma
linha. Quarenta vidas estão suspensas daquele fio. Vaga sobre vaga, o
arrais faz e desfaz o nó, trazendo sempre a corda na mão, bem retesada,
presto a defender-se de onda que queira surpreendê-los de costado.
Lesto, perito, mantém e leva o barco em seta, riscando onda a onda o
caminho marítimo do retorno.
Assim chega a companha à
vista de terra.
Agora é mister esperar a maré para varar. A corda mantém o barco que nem fateixa largada contra pedra. A maré vem, o arrais
comanda, desfaz o último nó, os homens dão uma remada cega, e o barco aí
vai no lombo da vaga que, um segundo, os ergue em triunfo e, espadanante
e marulhosa, despedaçando-se em soluços de vencida, os restitui à praia,
num penhor de paz.
As mulheres correm a levar-lhes camisas enxutas e ais
de alívio.
Da beirinha do mar, as doze juntas de bois, atreladas aos
cabos da rede, arrancam praia arriba. As cordas encharcadas vão desdobrando a cauda de sargaço e arando a areia.
Voltam os animais à linha da água; atrelam outra vez; outro
puxão aos cabos, e a campanha doba o pesado baraço, doba,
doba, duas horas a fio.
Abre o sol. Avistam-se gaivotas. São as núncias da
rede.
Uma voz grita:
− Estão as «calas» à vista!
Daí a nada, empós as bóias vem a
rede. Bóia o «saco». É a messe. Há
aleluias nos olhos das mulheres. Toda a Murtosa está em festa. Corações
alagados da mesma ansiedade enxugam ao mesmo sol.
Vai de boca em boca:
− A companha da «Carneira» está a alijar!
De feito, tão pesada vinha a
rede que foi preciso tirar sardinha do «saco», ainda na água. Era um regalo ver entrar os
sacos bojudos dos redenhos, chatos que nem arcos de papel de
seda, e saírem carregadinhos de sardinha que, quando lhes passavam o
bordão no aro de madeira, e os dois homens os carreavam para as latas, os ombros dos hércules davam de si, e os
bordões vergavam. Para dar vencimento à fartura, acodem os redenhos mais
pequenos, os xalavares, afunilados, jeitosos
que é só enchê-los de peixe e pegar-lhes pela aselha terminal para
baldear o pescado nos redenhos grandes. Reina a abundância. Só se ouve:
− A lata tem vinte redenhos!
− Vinte e dois!
/
268 /
Não faz minga contá-los: tem vinte, vinte e dois milheiros.
E os atletas continuam a correr para as lotas, até espremer
as últimas malhas, conduzindo, a dois e dois, os redenhos, bordões estremes nas carnes, dorso nu, bronzes fundidos por tempestades.
II
Recolhida a rede, e deixada a escorrer, outra
rede se
apresta para segunda largada.
António do Monte volta com a companha, para outro combate de ritmos, peito a peito com o Oceano.
Para pescador fora criado de pequenino, assim se criara
toda a sua
gente. E na ressaca dos séculos assim haviam sido todos, desde que de
algum golfo da Hélade se destacara a
jangada criadora daquele colmeal piscatório. Filho do mar, afilhado da
coragem, tão bem guardara as suas características,
que não havia memória de rapaz da Murtosa, que andasse no mar, ir buscar
mulher a casal agrícola.
Os braços de António, asas marinhas, não se cansavam
daquele caminho. Mas cansou a sua alma, experimentando a desinquieta
curiosidade de ir mais longe, por novos caminhos,
demandar a fortuna. Na terra não queriam crer. Até à última, fiaram do seu amor à irmã e à velha tia que os criará, que
ele
não arrepiaria carreira. Um rapaz da companha dissera assim
da teimosia de António:
« − Cuidava que era uma teima pequenina, que cabia pela
malha!... »
Qual! O António consultara o seu S. José e, desde que o patrono o não
desaconselhara, fosse lá alguém tirar-lhe a ideia
da cabeça. Na tripulação dum barco, que aquele ano foi à Terra Nova,
viu-se excepcionalmente um rapaz da Murtosa.
Ali por Maio, o «Açor» saiu a barra de Aveiro, bem metido na água,
carregadinho de sal, muito ufano dos seus três mastros, fazendo-se ao
mar com António do Monte, rumo a S. Pedro da Terra Nova.
A tia Mariana, que perdera o irmão, o pai do seu António, perdera o
homem, perdera os filhos, cujo coração era retalhado
de cruzes, já não podia dispor de muitas lágrimas. Entregou o demónio do
rapaz ao Senhor Jesus, soltou um grande ai e
cobriu a cabeça com o lenço preto, para não ver o «Açor» levar-lhe o seu
António.
Maria do Carmo, a não ser o dó que a
toda a Murtosa custara a desgraça
da companha do arrais Manuel, essa não sabia o que fosse chorar. A
abalada do irmão, tristura de raiz,
cegou-a para qualquer alegria. Não o futurara quem tanto a
ouvisse cantar. Mas, escutando a letra, logo dava porque a
/
269 /
cantoria era coração a espantar seus males. Tia Mariana, fazendo-se
desentendida, repreendia-a:
− Ó rapariga! Vê se te calas, que quem te ouvir há-de cuidar que estás
contente, por o nosso António andar por esse mundo além...
Maria do Carmo não fazia caso; continuava a cantar, na
melopeia das naus:
Já lá vão... Porque baloiças
Docemente, negro mar?
− « É iam aprender o jeito
De trazer quem fui levar».(2)
Dos meus olhos nasce um rio
Que ao teu coração vai dar;
.As águas do mar salgado
Todo o rio vai parar(3)
Oh! Senhora da Saúde,
Sois pequenina e bem feita;
Livrai os homens do mar,
Dai-lhe a vossa mão direita.(4)
Nos primeiros nove dias de viagem, a Senhora da Saúde
ouviu os rogos de Maria do Carmo; dera a sua mão direita ao António e
vento propício ao barco. Ao cair do nono sol, o Carapinha fitara o
pensamento no céu e dissera para o Manuel
da Barroca:
− Temos o tempo voltado...
− Qu'ais! − desfez o Manuel.
− O' «home». «Nam» vês as nuvens amarelunças?
É chuva.
− O mais que pode vir por'i é um pedaço de nevoeiro...
− teimou o
Manuel da Barroca, no sestro de contradição dos embarcadiços.
Quem tinha razão era o Carapinha, pescador do mar alto
que fora fazer vinte anos à Terra Nova e trinta e seis vezes lá
festejara os seus natais. No décimo dia de navegação, ali por alturas
das Flores, quando o homem que ia de quarto ao leme
repetira no sino as seis horas que o relógio da câmara marcava, começou
o mau tempo. O Manuel da Barroca surdiu de barlavento para render o
quarto. Perfilou-se e, levando a mão ao
barrete, exclamou no ritual:
− Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
/ 270 /
− P'ra sempre louvado seja!
− respondeu o que saía de
quarto; e em seguida: − O rumo é oeste-noroeste. Aproveitar o mais que
puder.
Manuel já não pôde aproveitar.
Carregaram a toda a pressa
o pano(5), deixando apenas o triângulo(6), e em árvore
seca(7)
correram com o tempo, vento pela popa, indo para fora do
rumo, aproando vezes sem conta a Portugal. No segundo dia
de temporal, todo o navio foi traçado com cabos, para a tripulação se agarrar. Ao leme, dois homens amarrados. Todo o
pessoal, à popa. O capitão gritou para o contra-mestre:
− Olha os colhedores de bom bordo!
O contra-mestre correu à gaiuta do leme,
colheu Uns cabos
e amarrou as enxárcias. O navio tinha uma guinda(8) muito
grande. Os colhedores dum bordo rebentaram todos com o
balanço, tal a chicotada que deram os mastros, e mais eram
quase todos novos, que não refrescados(9).
O mar endoidecera. Três dias e três noites durava já a
tempestade. O capitão enfurecia-se:
− Ah! mar! Ah! ladrão!
À popa praguejavam os homens:
−- Ah! mar dum cão! − e cuspiam.
Ti' Firmino, possesso de
medo, ergueu os punhos para o
céu, e foi a voz mais praguenta:
− Se não sabes governar, vem cá para baixo, que eu
governo melhor do que tu!
− Home! vocemecê tenha lá mão na língua, que Deus
Nosso Senhor inté o pode castigar, e pagamos todos! − advertiu António
do Monte, transido da heresia.
− Não t'assustes, verde(10). Deus faz que não ouve. Ele
bem sabe que tudo isto é cá um probe de Cristo a chamar por ele!
− respondeu o outro, já repeso.
Cresceu a tormenta. Toda aquela gente caiu de joelhos,
passando da praga à oração e à promessa.
− Meu Senhor do Bonfim, salvai-me, que eu prometo levar
na procissão aquela vela branca! − rogava um.
Outro:
− Prometo uma missa...
Como o grego, António do Monte nunca maltratara o mar
nem lhe jogara uma praga. Oito braças de água salgada eram
para a sua alma de pescador uma catedral gótica. Frente à
imensidão, sorria e estendia-lhe os braços. O mar repelia-o?
/ 277 /
António do Monte respeitava o seu furor, e reconhecendo-lhe a divindade,
anunciava, humílimo, as suas oferendas:
− Na festa de S. Paio hei-de levar na procissão uma cruz
do tamanho dum mastro!...
O Carapinha, esse jurava e trejurava:
− Se escapo desta, não torno a embarcar, mil anos que
eu viva!
− Bem se fia o mar no que tu dizes! Vens sempre com
a mesma cantiga!...
− Quando é que tal ouviste da minha
boca, Manuel João?
− Quando? Inda na
última «viage»...
O Carapinha, fora de si, batendo com as mãos nos joelhos, soltou o chuveiro dos insultos máximos:
− Enganador! Inda o mar te «espadace»! E para mais, se o disse, melhor.
Tu «nam» sabes que um «home» nestas «incasiões» «nam» sabe o que diz?
Em a gente se apanhando em terra, são águas passadas!...
O Firmino achou bem tirá-lo de ali.
− Ó Carapinha, vai vestir o fato de oleado...
− Tanto se morre com fato de oleado como sem
ele.
− Vai comer.
− Para morrer não é preciso comer.
− E um cigarro?
− Isso vai...
Com o cigarro caiu a exaltação, e com o empardecer
disse
terceiro dia o temporal.
A alma do marinheiro exalta-se numa volta de vento, encoleriza-se até
o enrouquecer, e, de repente, acalma, numa mansidão repêsa.
É como o mar.
III
O «Açor» lá pôde enganar o vento e tomar para oeste das
Flores. Boas mil
e cem milhas andadas, a uma singradura de duzentas por dia, o Carapinha
pôs-se a olhar para o mar. O Manuel da Barroca passou por ele e desfez:
− Estás espantado, «home» de Deus!
− É que somos chegados ao Banco.
− Daqui até lá não me doia a cabeça!
− A quanto apostas? A quanto?
− «Nam» te quero ganhar o cachimbo!
Num remesso, o Carapinha foi por um balde, atirou-o ao
mar; puxou, e, metendo a mão, confundiu o Barroca:
− «Nam» vês? Água mais fria... e a
cor é outra. «Nam»
te dizia que estamos no Banco?
O capitão mandou fazer a sondagem e reconheceu-se que
o Carapinha acertara. A cerração confirmou também logo ali
/
272 /
que estavam no Banco Grande, com todas as suas surpresas.
O Carapinha, vesado naquelas águas, ia de olho no mar, prevendo de longe os maus encontros. A sua sensibilidade, óculo
de longa vista, avisou o Firmino:
− A gente tem aí uma ilha de
gelo(11), não tarda um
credo! Não sentes o frio?
Passados momentos:
− Lá está!
E satisfeito de avistar o perigo ao longe:
− Estes vê a gente bem. Agora os «filhos» é pior. São
canalha miúda, vêm sorrateiros, rente à água, e quando um
«home» mal se precata, estão em cima do navio. Aquele que
acolá vem é «mãe». Pelo tamanho, o mar me coma a alma se não é «avó»...
Olha! Olha!...
Pela proa via-se o perfil geométrico do Adamastor polar.
Havia calma. Ao fim da tarde, o «iceberg» estava quase em
frente do navio. O José Gaiteiro, cruzando com o Carapinha,
mexeu com ele:
− Ó Carapinha, tu inda t'astrevias a montar o urso branco?
− Sendo preciso...
− «Nam» me parece.
− Também daquela vez ninguém dava nada por mim, veio
a ilha de gelo, rebentou o navio, e eu saltei-lhe para cima,
escarranchei-me, e andei a passear a cavalo nela até que outro navio me
salvou.
− Hoje já lá «nam» ias. Tremem-te as pernas...
O Carapinha fez menção de correr José Gaiteiro com a
ponta dum cabo, mas só o apanhou com uma das suas pragas:
− Até te
«escalava», se t'apanhasse!...
O pior é que o navio levava tacada da vaga e não saltava
como era mister, «adormecia».
− Dá aí uns nós nesse cabo, alma do diabo, a ver se
esse
raio desse vento acode à gente! − gritou o Carapinha.
Os que tal ouviram, deram os supersticiosos nós, para
enxotar a calma. Outros rogavam:
− Sant' Antoninho do Porto! Socorre-nos! Dá-nos bom
vento!...
O «iceberg» avançava para
eles. Então, abriram a escotilha do sal, tiraram a braço trinta toneladas de carga, e jogando-a
ao mar gritavam:
− Vá disto!
O capitão disse para o Carapinha:
− Se a ilha avança e a calma nos não larga, arriamos os
«dories» e reboca-se o navio a remo.
É p'ra já.
/
273 /
− Lá mais p'rà noitinha...
Não foi preciso. Antes do anoitecer, tinham o «iceberg»
pela alheta.
Contente, o capitão entrou com as suas teorias:
− O peixe deve andar no sul.
O ideal seria recolher nos «rocos»(12), ponto
muito característico e pequenino, difícil de encontrar com o cálculo à estima e a
corrente.
Desistindo de localizar essa meia dúzia de braças onde os pescadores
vêem o peixe puxar o anzol e onde há sempre
pesca − foram fundear no sul. Lançado o ferro, o vigia gritou:
− Lula!
A tripulação correu acima; tudo se pôs à pesca do isco. E dormido o sono
bem ganho, ao romper do dia, acabado
que foi o almoço, o capitão comandou:
− Arriar!
N um repente de ânsia de salvação, deitaram os «dories»(13)
ao mar. Cada «dory» levava um homem, uma «agulha» e o seu
equipamento − dois remos, mastro com uma vela pequenina, ferro com a
respectiva «bossa»(14) e... Deus.
Foi a primeira «linha»(15) com rumo indicado pelo capitão. Era o
Carapinha, tendo de estreante o António do Monte, imponente com as suas
botas novas de borracha e o seu
sueste.
Mestre Carapinha olhou o mar e deitou sentença:
− «Nam» 'me parece mau!... Qu'isto com mau tempo é
sério! Nem há leme...
− Também «nam» o temos na minha terra, e «nam» se
deixa por isso de pescar.
− Isso é que tendes, − é a corda! Aqui as vidas nem por cordéis andam
seguras. Que a gente cá se arranja: corpo a barlavento arriba, a
sotavento orça, e lá vamos. Com bom tempo é uma fantochada...
Enquanto António remava, o corpo afeito do Carapinha dava a direcção. E
sempre a desenferrujar a língua, ia industriando pitorescamente o outro
nos costumes do ofício:
− Pescar, todos pescam. Mas, com'ó oitro que diz, cada
roca com seu fuso
e cada pescador com seu anzol. Os franceses pescam ao «troly». «Nam»
sabes o que é? Também eu não sabia quando cá vim a primeira vez festejar
os meus anos. O «troly» é assim a modos dum cabo, atadas as pontas cada uma à
bóia... − E atento à manobra: − Ceia. Ceia daí...
/
274 /
E já despreocupado:
− Pendurados do cabo, os «franciús» põem anzóis a
modos de balões. Vão-se embora, beber «giné», e quem fica a trabalhar é
o peixe. Os «franciús», ó depois, vêm por aí abaixo e, já se sabe,
recolhem o «troly» todo iluminado! Os ingleses, esses, são uns finórios.
Cada lúzio! Arranjaram um raio d'anzol que parece mesmo o capelim(16)
que vem a ser o peixe de que se sustenta o bacalhau. O mar me coma a
alma! s'inté eu não caía naquele anzol. Chamam-lhe eles pescar à
«azagaia», que são dois anzóis unidos por chumbo, e que botam ó depois
a forma do «cápelim». Nós cá, «antão», «semos» uns burros de carga:
pescamos à linha, uma em cada braço. Vai s'a pôr cerração!... Raio de
mar traiçoeiro que é este! P'ró capitão é que nunca há nevoeiro. Às
vezes, o barómetro a anunciar mau tempo, e ele diz: «isto não é nada».
Vai-se a ver, vem o mau tempo, e um desgraçado é qu'assassina a sua
vida. Sequer ó menos, a morrer é melhor
aqui, que há bacalhauzinho para a gente fazer bem à barriga!
Entre risadas, decidiu:
− Fundeia!... − Aí!... isso!
Soaram então as horas religiosas da pesca. A principio, o
peixe não aparecia. Mestre Carapinha, desapontado, praguejava:
− Rai's te partam, peixe,
que já me não conheces! Vem daí!...
Acudiu o primeiro peixe ao chamadouro do Carapinha que
deu outra lição ao António do Monte: puxado o bacalhau, entalou-o
debaixo do braço, deu-lhe o golpe com a faca, e o bacalhau deixou cair o isco, que tornou a
servir.
− A lula não se pode «'esperdiçar» !
− recomendou.
A messe começou presta e farta. Três horas depois foram
ao navio descarregar o «dory» e voltaram para o mesmo ponto, aproveitar
a sorte. O peixe não reconhecia o Carapinha, mas o veterano conhecia
muito bem os sítios mais povoados, e não os procurava por palpite, ia
direito aos «leijos». Aquilo foi fundear segunda vez, e continuar a
puxar peixe, a puxar, até
encheI'o segundo «dory».
A cerração aumentava. Ia cerrar-se o dia. Já de três em três minutos, o
«Fog-Horne»(17) de bordo buzinava os avisos
do código.
− Colhe o ferro!... Vamos embora.
E, no regresso, para entreter, mestre Carapinha foi desentaramelando a língua:
− Erguemo-nos com a graça de Deus! Dois «dories»
carregados, num dia, não é lá qualquer coisa... − Sobre novos
/
275 /
[VoI. VIl - N.º 28 - 1941]
sinais do «Fog-Horne»: − O capitão tem «soidades» da gente. Também,
não nos faz grande favor! Isto, pelos meus cálculos, deve ir p'ràs
quatro.
− Se o nevoeiro apertara, o capitão buzinava na mesma,
isto digo eu... − comentou António do Monte.
− Mas se não houvera cerração era multo capaz de deixar aí
moirejar um
«home» até essas cinco horas... Assim que «havera» ele de fazer? Um «home
nam» vê a bandeira...
− Já é força de expressão! Um pedaço de serapilheira só
na Terra Nova se chamaria bandeira, ti Carapinha!
− É p'r'aí uma coisa. Mas em a gente a não enxergando, o capitão toca o
fole e inté vai tiro de canhão. E assim mesmo, quantos ficam por esse
mar, perdido o tino do navio com o
nevoeiro. Ele avisa porque é obrigação... Senão, tanto se
lhe dava que morresse um como um cento!... Um «home»
enquanto anda por aqui, seis meses entre céu e mar, é escravo e o
capitão é rei. Numa «viage», «fize-a» há três estações, vi um capitão
dar maus tratos a um pescador, um velhote que tinha ensinado os «capitões», mas quê? Não tinha sorte na pesca. O peixe tomou-lhe embirração,
voltava com o «dory» vazio, e era pancada de criar bicho. O «provesinho»,
uma tarde, fugiu para bordo doutro navio. O capitão mandou lá buscá-Io,
amarrou-o ao mastro grande, fê-lo dormir no sal. O desgraçadinho
«resfriou». Nunca m'alembra aquela morte que não sinta a modos dum
marmelo nas «guelras». E o «marvado» do capitão, que fora o
carrasco, a fazer de condoído, a tripulação de joelhos e ele a
encomendar: − «Rezem um Padre Nosso por alma do nosso companheiro!» O corpo saiu p'ró
mar, e o infeliz era tam bô que se voltou a «despedir-se do navio.»
Já se ouvia mais perto o «Fog-Horne». Duas braçadas
mais e atracaram.
Chegados a bordo, o cálice de aguardente com pimenta,
dado ao pescador que mais pesca leve, coube ao Carapinha.
− Vai uma pinga, Tónio?
− Obrigado.
− P'ra dar fôrças p'r'à «escala»!
(18)
− Ná!
− Levo em desfeita!...
António do Monte aceitou:
− Então cá vai à saúde de vocemecê...
− e, tomado um
comedido gole, restituiu o cálice.
Mestre Carapinha, pernas especadas em compasso, não
fosse entornar-se o néctar, repreendeu:
− Fraco bebedor! Olha o chilro que
ele bebeu!... Nem
/
276 /
que bebesses todo, não te em borrachavas. A gente leva aí
vinho do Porto e pipas d'aguardente, mas quê? O vinhinho tem
«incelência», é só lá para o capitão, e a aguardente que ele dá a um «home»
em toda a «viage», «nam» enche a poça dum
saleiro... Deixa estar. Em chegando a Aveiro, hei de te ensinar a pegar
numa caneca de vinho.
Negando, com a cabeça, fé ao que vira, deu um balanço ao
braço, a modos de quem lança um foguetão, despejou a pinga
de aguardente; depois, com um contrabalanço ao dorso, abriu
a boca num regalo de escaldadela e, batendo no ombro de António do
Monte, declarou:
− Bebi à tua saúde e à saúde do mar, que é nosso amigo...
Dá o pãosinho!
Às vezes, também dá a morte. Isto quem dá
o pão, dá o ensino, e não há com'ó mar p'ra nos ensinar a morrer. Raios
o partam! Eh! Eh! Eh!
− O mar é sagrado, ti Carapinha!
É o nosso «cemintério». Tem lá tantos dos nossos! É sagrado!
− Tens bô pensar, rapaz! Mas agora larga lá a escôta
das falas e vamos à «escala».
Rápido que nem volta de mar, Mestre Carapinha atou o avental,
calçou as
luvas de borracha e foi-se às complexas operações(19) de decapitar, estripar e escorchar o peixe, até o enfiar
pela mangueira de lona, goela do porão onde o esperam os
salgadores.
Sentado num mocho, na atitude de «rajá» à chegada da
carga preciosa, o capitão preside à salga, vendo-se, a despeito da
frouxa luz das velas, a cupidez com que vai contando as equilibradas
pilhas do seu tesouro.
Estreia excelente! Não podem meter mais peixe, enquanto
não escoarem a água: uns dias de boa vida, a pedir vaga para que haja
balanço e o peixe acame.
Ao termo de três dias, já arriaram
os «dories».
/
277 /
IV
António do Monte ainda fora uns tempos com o Carapinha. Mas em breve
dado por pronto, logo começou a ser apontado como um dos mais prováveis
vencedores do prémio que o capitão do Porto criara para os melhores
pescadores da Terra Nova. Ou o António não fosse da Murtosa!
− Tenho S. José por mim! − dizia
ele para o mestre Carapinha.
E tinha, e sempre alumiado pela fidelíssima saudade de Maria do Carmo.
Desde que ele do Monte se partira, no oratório onde entronizara a imagem
em vulto de S. José, a lampadazinha não deixara de fazer os seus
humildes rogos. Ali fora o António rezar, antes de tomar a bateira para
Aveiro. No seu lugar ficara a morena Maria do Carmo. Ela lhe tratava do
oratório quando limpava a cómoda, ela lhe cuidava a lâmpada votiva. Se
as saudades apertavam ou o mar se arrenegava,
Maria do Carmo ajoelhava, rezava, rogava, lembrava a S. José
o seu afilhado que andava nas águas do mar. Ajeitava o retrato do
António que não saía do oratório, de modo a que os olhos misericordiosos
do Senhor não despegassem dele. Erguia-se, então, consolada e crente que
S. José o tinha de sua guarda.
Um dia, ali por Agosto, ao deitar o azeite, sem querer embarrou com um
braço na lâmpada que tombou, entornando-se. Maria do Carmo persignou-se. Chamando a si
toda a calma de
que era capaz, apanhou a lampadazinha e tornou a
enchê-la de azeite. Segunda vez o mesmo fracasso aconteceu: a lâmpada
virou-se e o azeite alastrou pela toalha de crivo que fazia altar da
sua cómoda pobrezinha.
Aflita, pegou no retrato de António, beijou-o como a
relíquia, e gritou entre choros:
− Não saias hoje ao mar, António! Não saias, meu irmãozinho! Pelas
cinco Chagas! Pelo teu S. José! Não saias!
O Senhor não quer a luz...
A tia Mariana acudiu, assustada:
− Que «estampatório» é este aqui, Maria do Carmo?...
− O Senhor não quer a luz! Duas vezes enchi a lâmpada do oratório e duas vezes lhe embarrei
e se verteu o azeite. Tenho o coração negro como a noite! O que vai ser
do nosso António? O que vai
ser de nós, sem ele?
− Sossega, rapariga! isso são coisas que assucedem. Olha agora! Tu não
dizes que embarraste na lamparina do Senhor?
− Mas foi sem querer... E mais eu estava com todo o cuidado...
/
278 /
− «Antão»?... Se ela se apagasse, pior era! Ou se se
entornasse sem ninguém lhe tocar...
− A tia fala bem...
− Cala-te, Maria! Não estejas a dar espectáculo. O que
há de dizer a vizinhança?...
Maria do Carmo sufocou a aflição, mas ficou-se num novelinho de
dor, ajoelhada aos pés do Senhor, a chorar e a rezar.
Ao outro dia, o mar abonançara.
− Vês com'ó mar está bó?
− Mas ontem... ontem, tia?
− Sabes que mais? O teu irmão pode voltar quantas
vezes quiser à Terra Nova, que quem não fica contigo sou eu.
− Ande, diga-lhe isso, p'ró António fazer suposições de
que eu não tive juízo!
− «Nam» qu'eu sei como falo! Queres que te diga? Contanto que não
fosse
«tolêdo», tomara eu que tomasses afeição a qualquer. Sequer ao menos
distraías-te dessa saudade do
teu irmão. Não tens mais em que pensar...
− Melhor! Ele é meu irmão, faço eu muito bem.
− Olha, muito bem não te fará! Andas aí esmagriçada
que, a continuar assim, desapareces. Só tens a triste armação
da cara.
E a tia Mariana aproveitou o ter-se quesilado, para ir longe das vistas
da rapariga passar o rosário das saudades, pelo seu
António.
Maria do Carmo bem a conhecia, tanto que lhe jogou de lá:
− A minha tia
a fazer-se forte... e sabe Deus! E vontade de
ralhar, pois é?
A tia Mariana voltou, para responder, terminante:
− Não ralhes tu, que eu de mim não me enfado por
gosto.
Bem me basta a ralação de te ver para aí a definhar. O que há de dizer o
teu irmão?
− Em ele vindo, engordo sem comer. Traga-mo Deus!...
− Já faltou mais.
Agora p'ra Outubro... temo-lo cá, se
Nosso Senhor quiser!
− Eu bem lho peço...
− E eu bem te oiço... − respondeu a rir a tia Mariana.
− Só quem fosse surdo é que não dava
pela cantoria que vai às vezes nessa
casa.
− Pois p'r'à minha tia não me ouvir, daqui p'r'ó futuro
vou cantar para onde ao mar...
− Bem sei. Cuidas que o António te ouve lá em casa
de Cristo.
Os olhos de Maria do Carmo avermelharam-se, como se uma chapada de areia
lhes houvesse batido; e, muito séria, disse para a bondosa tia Mariana:
− A gente sabe lá, minha tia! As vezes parece-me que
ouço a voz do António chamar por mim... Ou, então, vejo-o
/
279 /
caminhar direito a mim, os olhos escuros a rir para a gente. Quando ele
se foi de onde a nós, via-o alegre e de saúde. Agora... Vejo-o outro,
falto de cor... estará doente?
− Nossa Senhora há de permitir que não.
− Olhe que ele já anda por lá há um bom par de meses!
Faço ideia as saudades que terá desta casa... Tanto gosta de
a trazer caiadinha!
E Maria do Carmo, saindo ao eirado, trauteou
quase em
salmo:
Ó Senhora da Saúde
Sois pequenina e bem feita...
Canastra à cabeça, o lenço vivo a
sair do chapelinho, cor de breu, e
caindo em ponta para as costas, blusa do castanho
das redes usadas, saia rodada, pronta a bailar, cor do mar
dormente, ensacada pela faixa negra do negrume das dezoito braças,
aventalinho verde de alga, a Carolina passava, numa graça de Vénus
nascida das ondas. Parou. E, na sua voz de vaga espreguiçada na areia,
disse para o eirado:
− Estás a ensaiar p'r'ó S. Paio?
− Este ano o meu S. Paio é aqui entre estas quatro paredes.
− Porquê,
mulher! Morreu-te o «home» no mar?...
− Mas trago lá o meu irmão, bem sabes.
Atraída por aquela melancolia, a Carolina dispôs-se a
demora. Arriou, sentou-se na canastra, os cotovelos agudos nos joelhos,
as mãos esguias, juntas nos pulsos, segurando o manto, donde os dedos
longos partiam em duas ansas que iam prender às têmporas.
Era uma ânfora, em que houvesse ficado, esquecida pelos
séculos, alguma gota de vinho de Thasos.
− Ele quando vem o teu António?
− Menos d'Oitubro...
− «Antão»! Hás de perder o S. Paio?
− Se em vez de Setembro,
fosse para o mês de além... − Até o S. Paio
pode levar a mal que lhe não vás pedir
pelo teu irmão...
− Já lhe fiz a minha promessa... para cumprir para o ano.
− «Nam», nós não te deixamos faltar. Olha o pecado!
Não ir ao S. Paio?... Vimos cá buscar-te.
− Perdeis o tempo.
E perderam. Não que Maria do Carmo não andasse agora
mais alegre.
Começavam a cair as folhas dos castanheiros. Os barcos alados pelo
florescer de Maio iam retomar da noite polar. Cada dia de ausência a
mais era um dia a menos para o regresso.
Maria do Carmo era a alegria em ritmo. Na sua
boca, as trovas abriam em
cantos de esperança. Caminhava-se para o Outono, e dentro dela, no seu
peito e no seu olhar, ardia a luz
/
280 /
das primaveras de Homero. Era Anfitrite purificada. Ver esse bloco de
estatuária vasado em ritmo dava a certeza de que o mar é o eterno
criador das obras de arte. Se não fosse filha dum trecho da costa
musicada de Portugal, tinha forçosamente
de ser uma deusa da Hélade, arremessada às nossas praias pelo orgulho do
mar Egeu.
Na sua voz de agora andava a rememoração do azul da Grécia. Cantava,
cantava sempre, mas a mesma canção tinha outra cor, mais movimento,
vida.
V
Pelas brisas de Outubro, Maria do Carmo houve boa nova: com as recargas do tempo, entraram os primeiros barcos, e o capitão do
lugre «Ondina» anunciava que dentro de dois ou três dias o «Açor» devia
estar em Aveiro.
Quarenta e oito horas depois, Maria do Carmo e a
tia Mariana tomavam, no
lugar do Chegado, a bateira do Cadeirinha.
Maria do Carmo ia linda. Era a mulher da Murtosa, moreno de
cera
virgem, e aquela gravidade das estátuas helénicas que deve ser a
consciência da sua graça misturada do pesar de não serem aladas. A sua
chinelinha tinha gracilidade de escarpim,
não ousando aflorar o tornozelo, modelado pelo cinzel grego que lhe
tocara a cintura e a curva do pescoço. O xale, prendendo, o lenço em
coifa, parecia o manto duma deusa do paganismo levada em procissão,
Ria acima, uma Oceânide transportada, pelo istmo de Corinto, do
Peloponeso para a Hélade acolhedora.
A sua alegria pegou fogo aos corações dos rapazes e raparigas. Cantaram
toda a jornada. A luz da Ria doirou aquela
manhã uma escultura da felicidade, e o silêncio daquela água
ouviu o tumulto musical das suas trovas conhecidas:
Oh! S. Paio da Torreira,
Abri a vossa capela,
Que eu quero entrar lá dentro
Com o meu barquinho à vela.
Oh! S. Paio da Torreira,
Arregaçai os calções
Vinde a baixo à Lagoa
Apanhar os camarões,
A Senhora da Saúde
Tem vinte e quatro guaritas,
O S. Paio da Torreira
Manda-lhe muitas
visitas.
S. Pedro foi pescador,
As redes ao mar lançou;
O S. Paio da Torreira
Também às redes puxou.(20)
Duas horas e meia de cânticos. Acabou-se-lhes o caminho. O «Açor» só na
manhã seguinte entrou a barra de Aveiro. Maria do Carmo, mal pôs o pé
no convés, começou a
chamar:
− António! Ó Antó...nio!
Como não o visse nem ouvisse, foi
perguntando aos tripulantes:
− O António do Monte? Sabe do An...
Os homens sumiam-se,
açodados, sem sequer lhe dar a
salvacão.
Maria do Carmo tornava ao seu ansioso pregão:
− Ó António!... Tónio!...
A tia Mariana futurou:
− Sabes o que me está cá a vir à lembrança? É que o
António está por aí a enfardar a roupinha. − E decidiu: − Não saias
daqui, p'r'amor de nos não perdermos uma da outra, qu'eu vou lá abaixo
ver se o vejo.
Maria do Carmo ficou-se muito séria, acompanhada da sua
impacIência.
Tia Mariana abalou. Ao pé da gaiuta do leme topou mestre
Carapinha, rogou-o. Vai, então, ele informou:
− Assim com'assim vocemecê tem de o saber. Ouça, vocemecê.,. O mar, no
Banco, tem ocasiões que é muito forte. Há muita «aguage». O mar embarca dentro do «dory», a
gente apanha aquele susto mas esgota a água e safa-se do
perigo. Num dia, era Agosto, o seu António estava a pescar mesmo ao pé
de mim. Veio a «aguage». O mar bateu-lhe, ele era um rapagão, alto
qu'eu sei lá, caiu, virou-se-Ihe o «dory» por cima dele. Dei duas
remadas, a toda a força, cheguei lá, vi o «dory» mas não o vi a ele. Era
um grande marinheiro! Teve o prémio!
− Bô prémio! − soluçou a tia
Mariana.
E desandou, varada, direita à Maria do Carmo. Só lhe
deu estas palavras:
− Vamos embora, Maria do Carmo.
− E o nosso António?!...
− Nossa Senhora nos acuda! Ficou no mar...
−
Que diz, minha tia? Ficou no mar? No mar?!...
Maria do Carmo rodou penosamente a cabeça, primeiro à
/
282 /
direita, à esquerda depois, e rompeu em gargalhadas que transiram de
horror quantos por ali andavam.
Levaram-na dali. Todo o caminho, lidou com o lenço, a pousá-lo nos
joelhos, para se pentear, num alindamento que
não tinha fim, e cantando, numa voz mimada que entristecia a
própria luz do dia agonizante:
Já lá vão... porque baloiças
Docemente, negro mar?
É para aprender o jeito
De trazer quem fui levar... »
Nunca mais a sua pobre alma acordou.
Num pasmo, passa horas e horas de olhos empregados no
mar, naquela fixa, intérmina abstracção dos que, na falta de razão das
amarguras, perderam a razão. Umas vezes chora como criança pequena.
Outras, então, sorri embevecida, dá gargalhadas sem ritmo, de sob a laje
da sua tristeza exalam-se
gemidos, e canta a patética miragem da morosa felicidade.
Se uma vela desliza na Ria ou aponta na imensidade deserta, Maria do
Carmo retoma a sua lida inocente de desenriçar os cabelos, coifar-se, mirar-se, remirar-se, na ilusão de quem se
alinda para ir esperar alguém... Ora soluçando risos,
ora enxugando lágrimas ao sol do engano, numa queixa dolente
de quem adormece esperanças mortas, jeito do mar embalando uma bateira,
a sua voz repete, aprendendo-a com o oceano e ensinando-a à Ria, a
dilecta canção do regresso
...,...................................
.......................................
Livrai os homens do mar,
Dai-lhe a vossa mão direita.
JOAQUIM LEITÃO |