António Nascimento Leitão, É a laguna de Aveiro um Haff?, Vol. VII, pp. 175-181.

N.º 27 − Setembro, 1941

ARQVIVO

DO DISTRITO DE AVEIRO

Directores e proprietários:

ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL

FRANCISCO FERREIRA NEVES

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Editor:

FRANCISCO FERREIRA NEVES

Administração:

Estrada de Esgueira − AVEIRO


Composto e impresso na Tipografia da Gráfica de Coimbra − Largo da Feira, 38 − COIMBRA


É A LAGUNA DE AVEIRO

UM HAFF?

EM recentes estudos, aliás muito interessantes, da região, tem-se considerado um haff a laguna aveirense.

Com o devido respeito pela autorizada opinião, permita-se-me que justifique a minha discordância.

Existe, na verdade, semelhança na génese e no aspecto que, de relance, nos oferece a sua configuração, mas há diferença no meio em que ele e ela se desenvolvem, na extensão (muito mais considerável no típico haff), na acção das marés e dos ventos e nos efeitos que de tudo isso resultam.

A palavra haff provém dum dos dialectos germano-dinamarqueses das costas do mar Báltico. É corrupção da palavra dinamarquesa hav, cuja significação está identificada com a da palavra italiana laguna − embora haja lagunas sem rios tributários nem comunicação permanente com o mar.

É por vezes confundida com hafen ou haven, alteração dialectal da palavra havn, dinamarquesa também, com a significação geral de porto.

Há, por exemplo, na Dinamarca, Frederikshavn, e a própria Copenhaga, ou melhor, Copenhagen, é na língua nacional Köbenhavn ou Kjoebenhavn = porto dos comerciantes.

Na costa germânica prevalece a forma haven, designando propriamente anteporto, como, por exemplo, em Bremerhaven, Cuxhaven. Nos portos interiores é preferida a forma hafen, significando doca ou bacia, como as de Hamburgo e Colónia, ou designando um porto fluvial, como, por exemplo, Friedrichshafen ou os de Mogúncia, Francfort s/ Meno, etc.

Dum modo geral, o haff é, como se sabe, formado por vários rios, em ampla reentrância duma costa baixa, aonde eles / 176 / desaguam, refreiam a corrente e se estendem quase dormentes, apenas prosseguindo no seio da grande massa líquida, já com a força viva dividida pelas várias ramificações do seu delta, ainda este mesmo na fase subaquática, consequente aos primeiros bancos de areia no estuário.

A argila das terras arrastadas e em suspensão, em contacto com a água salgada, coagula, precipita, aglutina-se com partículas calcárias (telúricas ou marinhas) em torno de núcleos quartzosos, orgânicos e organizados, dando em resultado uma argamassa, mais argilo-arenosa ou mais argilo-calcária, a consolidar o substrato diluviano e as aluviões que sobre ele se depositam. E como é aos lados aonde as águas tomam menor velocidade, é sobretudo para os dois extremos da linha de reentrância que derivam os depósitos que escapam à força das correntes.

Emersos os primeiros bancos naqueles dois extremos, logo outros se formam e progridem numa atracção recíproca, quais pontos de ossificação a gerar, fixar e estender, de colaboração com o mar, o cordão arenoso, que na sua evolução se apresenta mais ou menos recurvado, alargado, escavado ou interrompido, conforme o domínio dos ventos, a acção do mar e das marés e a direcção e intensidade das correntes na bacia neo-formada.

Sucedem-se incessantemente as camadas sedimentares, emergindo ilhas e definindo-se canais, de derivação natural ou outros artificialmente praticáveis à navegação − tudo, enfim, entremeado ou recoberto de complexa vasa de silicatos e outros sais alcalinos e alcalino-terrosos, humatos, algas, fermentos e colóides.

Como se vê, o haff é uma laguna, tendo na sua génese e fisionomia todos estes pontos de semelhança com a laguna de Aveiro.

Mas nem toda a laguna é um haff. Este tem o seu habitat próprio − um mar interior, como o Báltico, de pouca profundidade, de marés nulas ou muito fracas e sem a influência de certos ventos e das grandes correntes marítimas.

Sirva de tipo qualquer haff da costa alemã, abrigado num fundo de golfo daquele mar e, mesmo assim, ainda em ampla reentrância do golfo.

A laguna de Aveiro tem comunicação imediata com o oceano e o horizonte aberto para todos os lados. Tem as vagas sopradas pelos frequentes ventos do largo, a revolverem as areias, a erguê-las dum litoral profundo, a misturá-las com as que as correntes oceânicas arrastam de longe, a segurá-las e a alisá-las ao longo da costa − enfim, a colaborarem activamente na formação dum cordão em talude recto, de dois socalcos e grande possança. / 177 /

O haff, além de ter a sua saída para golfo ou baía de mar interior, tem ainda a protegê-lo o relevo mais ou menos acentuado do terreno nalgumas zonas marginais − quer do lado de terra, como sucede com o planalto de Samland, que se ergue entre o Frisches e o Kurische Haff, quer, por excepcional configuração topográfica, em ilhas, já incorporadas no cordão ou a ele adjacentes, como no Golfo da Pomerânia.

Com efeito, ali, no Haff de Stettin, o cordão não é inteiramente arenoso e, como, em geral, no haff, fraco e baixo, mas sim formado por uma série de ilhas e ilhotas, como planaltos e outeiros, de outra constituição geológica, por entre os quais desagua o Oder. Por sinal, numa das duas ilhas maiores brotam águas minerais, na pitoresca cidade de Swinemunde, ao mesmo tempo a mais elegante praia alemã no Báltico (a pouco mais de 2 horas de Berlim, em autocarro), guarda avançada de fortificações e anteporto de Stettin, que por seu turno é o porto de Berlim, depois que um canal liga entre si estas duas cidades.

Não há no haff a incursão das marés, as quais, se em Aveiro dão vida a certas indústrias, também lhe trazem areias submarinas e perturbam as correntes fluviais com a direcção e velocidade das correntes secundárias por elas formadas, favorecendo a sedimentação e o alastramento das inundações.

As marés ordinárias elevam-se em Aveiro a 2,5 e 3 metros, tendo as equinociais 3,5 a 4 (1) e mesmo mais em ocasiões de grande temporal.

(Estes números aumentaram depois das recentes obras de alargamento e aprofundamento do canal da Barra).

No haff as dunas são em geral baixas, por falta de marés, e de ventos propícios. Apenas se nota um certo desenvolvimento nas do cordão daquele haff da Curlândia − recurvado para o quadrante N., e assim o único exposto aos ventos de O., os que, sobretudo no inverno, sopram com mais frequência no mar Báltico. Em todo o caso, sem marés, não progridem como as de Aveiro, aonde aceleram a involução da laguna com a caquexia resultante do assoreamento.

No resto da costa alemã do mar Báltico sopra de terra, também com frequência no inverno, o foehn − vento atraído da vertente N. das montanhas do centro da Europa pelas baixas pressões sobre aquele mar.

A importância das dunas depende principalmente da amplitude das marés e da força, direcção e frequência dos ventos, sobretudo dos que sopram do lado do mar (DELESSE).

Em Aveiro sopram os ventos de N. O., O. N. O., O. e S. O., alguns deles com certa periodicidade, levantando as dunas e fazendo-as avançar com a aceleração que se sabe.

/ 178 /

Em Arcachon, exposta a sua bacia, como a de Aveiro, aos ventos do oceano, as dunas atingem a altura de 100 metros, a máxima das dunas da Europa (E. RÉCLUS).

Os ventos e a acção do sol em Aveiro produzem uma evaporação rápida, que se por um lado activam a produção do sal, por outro mantêm as areias num estado de exsicação tal que muito facilita o seu deslocamento; ao passo que nas costas do Báltico, tão frequentemente cobertas de nevoeiro, a areia conserva por mais tempo a coesão mantida pela humidade.

Em Aveiro as águas fluviais, mesmo no refluxo das marés, pouco poderão diminuir a salinidade da água do mar, constantemente renovada pela corrente que roça pela costa.

No Báltico não poderia desenvolver-se cm grande a exploração do sal, porque «a evaporação é insignificante e o afluxo das águas dos rios é tão considerável que tornam aquele mar muito pouco salgado» (LAROUSSE).

No haff faz-se o assoreamento do mar, junto à costa, com as aluviões fluviais − isto é, de dentro para fora.

Na laguna de Aveiro actuam de fora para dentro os factores que mais concorrem para o seu assoreamento: os ventos fortes e frequentes e as marés. Os ventos, como se sabe, além de soprarem as dunas, levantam as vagas − os agentes de pressão máxima nas ablações afectas aos grandes temporais. As marés, além de lhe trazerem areias submarinas, têm ainda a propriedade de, na enchente, apressarem as precipitações fluviais, no seu contacto com a água doce, não as arrastando consigo na vazante, visto que os materiais mais leves se afastam para os lados da corrente, aonde a velocidade é menor ou mesmo nula nalguns recôncavos.

«Com o alargamento e aprofundamento do canal da Barra, resultantes das obras já realizadas e consequente aumento de amplitude das marés, o volume de água que entra e sai em cada maré, segundo informação oficial, deve actualmente andar à volta de 90 milhões de metros cúbicos − quatro vezes por dia, duas na enchente e duas na vazante».

São as marés que mais se destacam no complexo hidrodinamismo da laguna de Aveiro: − seja na enchente, em que o mar, a mais elevado nível, se precipita na laguna, apertado no canal da Barra; − seja na vazante, em que também numa descarga de nível se juntam as correntes dos rios, canais, valas e esteiros, atropelando-se nalguns pontos, a caminho daquele mesmo canal.

«As velocidades das correntes de enchente e vazante têm valores compreendidos entre limites muito variáveis com a idade da lua, a época do ano, o estado do tempo e do mar, a pluviosidade, a idade da maré, o volume da restinga de areia que existe do lado do sul do molhe norte, o estado da barra e valor das correntes litorais, etc., etc. Pode dizer-se que não haverá / 179 / dois valores iguais no ano, e nestas circunstâncias é praticamente impossível determinar com aproximação aceitável valores médios que tenham utilidade para cálculos de vazão. Os máximos no canal de navegação, entre os molhes, fora da época de cheias, estão calculados nos seguintes valores:

enchente − 4 milhas por hora nas marés vivas e 2,5 milhas nas marés médias;

− vazante − 4,7 milhas nas marés vivas e 3 milhas nas marés médias»(2).

Em suma, a laguna de Aveiro é animada por uma espécie de corrente alterna e variável, cujo potencial é regulado pelas marés.

No haff o grande potencial da corrente dos rios varia não só com a pluviosidade, mas também com os degelos, activados pelo foehn, vento quente e seco. O efeito é, porém, num só sentido, sem resistências de marés e de frequentes ventos marinhos.

Mais parecida com o haff é, em meu entender, por exemplo, a laguna de Veneza − num golfo de mar interior e numa ampla reentrância do golfo, na qual desaguam, entre outros, o Brenta.

Não há ali grande vaga e corrente forte a revolverem os fundos litorais, e as marés são tão fracas que não chegam a cobrir uma grande parte da laguna − a chamada laguna morta.

Separa-a do Adriático o estreito cordão arenoso, o Lido, baixo, interrompido e em parte artificial.

Os ventos mais fortes descem dos Alpes para o mar; e, quanto às aluviões, assoreiam mais o litoral do Golfo do que a laguna.

 

Notam-se também as principais características do haff em qualquer das lagunas do delta do Nilo, aliás conhecidas pelo nome de lagos, a meu ver, sem independência nem génese que justifiquem sequer a designação de lagos de barragem, como os do litoral girondino, a N. e. a S. da bacia de Arcachon.

No Nilo, na laguna de Menzaleh, por exemplo, é notória a fraqueza das marés. «O Mediterrâneo só tem marés no Golfo da Grande Sirta (Cirenaica e Tripolitana) até às costas da Tunísia» (LAROUSSE).

O vento mais forte em Menzaleh sopra do deserto, do S. ou do S. O. − o seco e sufocante Khamsin (que significa cinquenta), assim chamado por se sentirem mais os seus efeitos em cerca de cinquenta dias da primavera. / 180 /

Nos seus turbilhões, a areia trepa pelas Pirâmides, não tendo barrado a entrada da de Kheops porque ela lhe fica na face virada ao norte, mas sim soterrado o templo subjacente à
Esfinge − como também inutilizaria o Canal de Suez se as potentes dragas aspiradoras não lhe detergissem constantemente o fundo.

Não escapa à vista de quem por ali anda o baixo e curvo cordão arenoso estendido de Port-Said a Damieta. É certo que não longe se encontram dunas de certa altura, como bem se nota nas barreiras cortadas nalguns pontos pelo Canal e pela boa estrada em que desliza, no deserto, o automóvel entre Suez e o Cairo, mas essas, a montante do vértice do cone de dejecção do Nilo, são a continuação das dunas continentais, por sinal endurecidas, talvez pela argila soprada dos produtos de colmatagem, ressequidos e pulverizados.

É curioso o modo como as andorinhas ali fazem o ninho, e como esse facto só por si indica a direcção do vento dominante: escavam-no na parte mais alta duma das barreiras − por instinto de defesa, só na não exposta às tempestades de areia.

Ainda no Mediterrâneo, no Golfo de Lião, se poderá ver representado o haff em Cette, entre outras das lagunas do Languedoc e das bocas do Ródano (estas últimas ainda dentro doutros golfos) todas com a sua fraca maré, sem duna movediça, com o mistral a soprar de terra e sem corrente do mar a diluir as aluviões que para ele constantemente avançam.

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Em resumo: ao contrário do que sucede com a laguna de Aveiro, o típico haff encontra-se numa reentrância e está no fundo de golfo ou baía de mar interior, pouco profundo e pouco salgado, sem correntes marítimas nem marés ou com marés de muito fraca amplitude e, geralmente, sem ventos fortes do mar.

É a mesma a tendência do haff e doutra qualquer laguna sob a acção livre das forças naturais − cederem à terra o espaço que ocupam.

Mas é diferente o processo de regressão: − no haff esta opera-se em consequência dos contínuos depósitos terrígenos e seu avanço sobre o mar, geralmente pouco agitado e sempre de fraca profundidade; − nas lagunas expostas ao oceano resulta das aluviões eólicas e submarinas, no seu avanço para dentro da costa, aonde a água salgada vai acelerar a deposição fluvial.

Por este processo, a incessante terraplanagem subaquática faz-se talvez mais rapidamente nestas lagunas.

Tanto o haff como a laguna de Aveiro, no período progressivo, como no regressivo, dependem das formações deltaicas / 181 / (incluindo nesta designação os depósitos de estuário) e «a formação dos deltas está intimamente ligada à rapidez com a qual os materiais transportados pela água do rio se depositam nas águas marinhas; a água do mar clarifica-se cerca de quinze vezes mais depressa que a água doce, em razão dos sais que ela tem em solução»(3).

E, a título de corolário: um nehrung ou um lido, isto é, o cordão como o do haff, nalguns pontos delgado, baixo e fraco, sem ilhas altas a formá-lo, sem socalcos nem lombas, não poderia na laguna de Aveiro resistir à potência mecânica das grandes marés conjugada com a dos fortes temporais; não teria possança bastante para, nessas ocasiões, conter a invasão do oceano.

(Excerto dum trabalho em preparação).

Cor.-Méd. ANTÓNIO NASCIMENTO LEITÃO

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(1)ADOLFO LOUREIRO − O Porto de Aveiro, 1904..

(2)Obsequiosa informação do Ex.mo Engenheiro Director das obras do porto de Aveiro − 1941. 

(3) − F. JADIN & A. ASTRUC − Précis d'Hydrologie, de Géologie et de Minéralogie. Paris, 1920.

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