EM recentes estudos,
aliás muito interessantes, da região,
tem-se considerado um haff a laguna aveirense.
Com o devido respeito pela autorizada opinião,
permita-se-me que justifique a minha discordância.
Existe, na verdade, semelhança na génese e no aspecto que, de relance,
nos oferece a sua configuração, mas há diferença no meio em que ele e
ela se desenvolvem, na extensão (muito mais considerável no típico haff),
na acção das marés e dos ventos e nos efeitos que de tudo isso resultam.
A palavra haff provém dum dos
dialectos germano-dinamarqueses das costas
do mar Báltico. É corrupção da palavra dinamarquesa hav, cuja
significação está identificada com a da palavra italiana laguna −
embora haja lagunas sem rios tributários nem comunicação permanente com
o mar.
É por vezes confundida com
hafen ou haven, alteração dialectal da
palavra havn, dinamarquesa também, com a significação geral de porto.
Há, por exemplo, na Dinamarca,
Frederikshavn, e a própria Copenhaga, ou melhor, Copenhagen, é na língua nacional
Köbenhavn ou Kjoebenhavn = porto dos comerciantes.
Na costa germânica prevalece a forma
haven, designando propriamente
anteporto, como, por exemplo, em Bremerhaven, Cuxhaven. Nos portos
interiores é preferida a forma hafen, significando doca ou bacia, como
as de Hamburgo e Colónia, ou designando um porto fluvial, como, por
exemplo, Friedrichshafen ou os de Mogúncia, Francfort s/ Meno, etc.
Dum modo geral, o haff é, como se sabe, formado por
vários rios, em ampla reentrância duma costa baixa, aonde eles
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desaguam, refreiam a corrente e se estendem quase dormentes,
apenas prosseguindo no seio da grande massa líquida, já com
a força viva dividida pelas várias ramificações do seu delta,
ainda este mesmo na fase subaquática, consequente aos primeiros bancos de areia no estuário.
A argila das terras arrastadas e em suspensão, em contacto com a água
salgada, coagula, precipita, aglutina-se com partículas calcárias (telúricas ou marinhas) em torno de núcleos
quartzosos, orgânicos e organizados, dando em resultado uma
argamassa, mais argilo-arenosa ou mais argilo-calcária, a consolidar o substrato diluviano e as aluviões que sobre
ele se
depositam. E como é aos lados aonde as águas tomam menor
velocidade, é sobretudo para os dois extremos da linha de
reentrância que derivam os depósitos que escapam à força das
correntes.
Emersos os primeiros bancos naqueles dois extremos, logo
outros se formam e progridem numa atracção recíproca, quais pontos de
ossificação a gerar, fixar e estender, de colaboração
com o mar, o cordão arenoso, que na sua evolução se apresenta mais ou menos recurvado, alargado, escavado ou interrompido, conforme o domínio dos ventos, a acção do mar e
das marés e a direcção e intensidade das correntes na bacia
neo-formada.
Sucedem-se incessantemente as camadas sedimentares,
emergindo ilhas e definindo-se canais, de derivação natural ou
outros artificialmente praticáveis à navegação − tudo, enfim,
entremeado ou recoberto de complexa vasa de silicatos e outros
sais alcalinos e alcalino-terrosos, humatos, algas, fermentos e
colóides.
Como se vê, o haff é uma laguna, tendo na sua génese e
fisionomia todos estes pontos de semelhança com a laguna
de Aveiro.
Mas nem toda a laguna é um
haff. Este tem o seu habitat
próprio − um mar interior, como o Báltico, de pouca profundidade, de
marés nulas ou muito fracas e sem a influência de
certos ventos e das grandes correntes marítimas.
Sirva de tipo qualquer haff da costa alemã, abrigado num
fundo de golfo daquele mar e, mesmo assim, ainda em ampla reentrância do golfo.
A laguna de Aveiro tem comunicação imediata com o oceano
e o horizonte aberto para todos os lados. Tem as vagas sopradas pelos frequentes ventos do largo, a revolverem as areias, a
erguê-las dum litoral profundo, a misturá-las com as que as
correntes oceânicas arrastam de longe, a segurá-las e a alisá-las
ao longo da costa − enfim, a colaborarem activamente na formação dum cordão em talude recto, de dois socalcos e grande
possança.
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O haff, além de ter a sua saída para golfo ou baía de mar interior, tem
ainda a protegê-lo o relevo mais ou menos acentuado do terreno nalgumas
zonas marginais − quer do lado de terra, como sucede com o planalto de Samland, que se ergue entre o
Frisches e o Kurische Haff, quer, por
excepcional configuração topográfica, em ilhas, já incorporadas no
cordão ou a ele adjacentes, como no Golfo da Pomerânia.
Com efeito, ali, no Haff de Stettin, o cordão não é inteiramente arenoso
e, como, em geral, no haff, fraco e baixo, mas sim formado por uma série
de ilhas e ilhotas, como planaltos e outeiros, de outra constituição
geológica, por entre os quais desagua o Oder. Por sinal, numa das duas
ilhas maiores brotam águas minerais, na pitoresca cidade de Swinemunde,
ao mesmo tempo a mais elegante praia alemã no Báltico (a pouco mais de 2
horas de Berlim, em autocarro), guarda avançada de fortificações e
anteporto de Stettin, que por seu turno é o porto de Berlim, depois que
um canal liga entre si estas duas cidades.
Não há no haff a incursão das marés, as quais, se em Aveiro dão vida a
certas indústrias, também lhe trazem areias submarinas e perturbam as
correntes fluviais com a direcção e velocidade das correntes secundárias
por elas formadas, favorecendo a sedimentação e o alastramento das
inundações.
As marés ordinárias elevam-se em Aveiro a
2,5 e 3 metros, tendo as
equinociais 3,5 a 4
(1) e mesmo mais em ocasiões de grande temporal.
(Estes números aumentaram depois das recentes obras de alargamento e
aprofundamento do canal da Barra).
No haff as dunas são em geral baixas, por falta de marés, e de ventos
propícios. Apenas se nota um certo desenvolvimento
nas do cordão daquele haff da Curlândia − recurvado para o quadrante N.,
e assim o único exposto aos ventos de O., os que, sobretudo no inverno,
sopram com mais frequência no mar Báltico. Em todo o caso, sem marés,
não progridem como as de Aveiro, aonde aceleram a involução da laguna
com a caquexia resultante do assoreamento.
No resto da costa alemã do mar Báltico sopra de terra, também com frequência no inverno, o
foehn − vento atraído da vertente N. das
montanhas do centro da Europa pelas baixas pressões sobre aquele mar.
A importância das dunas depende principalmente da amplitude das marés e
da força, direcção e frequência dos ventos, sobretudo dos que sopram do
lado do mar (DELESSE).
Em Aveiro sopram os ventos de N. O., O. N. O., O. e S. O., alguns deles
com certa periodicidade, levantando as dunas e fazendo-as avançar com a
aceleração que se sabe.
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Em Arcachon, exposta a sua bacia, como a de Aveiro, aos
ventos do oceano, as dunas atingem a altura de 100 metros,
a máxima das dunas da Europa (E. RÉCLUS).
Os ventos e a acção do sol em Aveiro produzem uma evaporação rápida, que se por um lado activam a produção do sal,
por outro mantêm as areias num estado de exsicação tal que muito
facilita o seu deslocamento; ao passo que nas costas do
Báltico, tão frequentemente cobertas de nevoeiro, a areia conserva por mais tempo a coesão mantida pela humidade.
Em Aveiro as águas fluviais, mesmo no refluxo das marés,
pouco poderão diminuir a salinidade da água do mar, constantemente renovada pela corrente que roça pela costa.
No Báltico não poderia desenvolver-se cm grande a exploração do sal, porque «a evaporação é insignificante e o afluxo
das águas dos rios é tão considerável que tornam aquele mar muito pouco
salgado» (LAROUSSE).
No haff faz-se o assoreamento do mar, junto à costa, com
as aluviões fluviais − isto é, de dentro para fora.
Na laguna de Aveiro actuam de fora para dentro os factores
que mais concorrem para o seu assoreamento: os ventos fortes
e frequentes e as marés. Os ventos, como se sabe, além de
soprarem as dunas, levantam as vagas − os agentes de pressão
máxima nas ablações afectas aos grandes temporais. As marés,
além de lhe trazerem areias submarinas, têm ainda a propriedade de, na enchente, apressarem as precipitações fluviais, no
seu contacto com a água doce, não as arrastando consigo na vazante,
visto que os materiais mais leves se afastam para os
lados da corrente, aonde a velocidade é menor ou mesmo nula nalguns recôncavos.
«Com o alargamento e aprofundamento do canal da Barra,
resultantes das obras já realizadas e consequente aumento de
amplitude das marés, o volume de água que entra e sai em
cada maré, segundo informação oficial, deve actualmente andar
à volta de 90 milhões de metros cúbicos − quatro vezes por dia,
duas na enchente e duas na vazante».
São as marés que mais se destacam no complexo hidrodinamismo da laguna de Aveiro:
− seja na enchente, em que o
mar, a mais elevado nível, se precipita na laguna, apertado no
canal da Barra; − seja na vazante, em que também numa descarga de nível se
juntam as correntes dos rios, canais, valas e
esteiros, atropelando-se nalguns pontos, a caminho daquele
mesmo canal.
«As velocidades das correntes de enchente e vazante têm
valores compreendidos entre limites muito variáveis com a idade
da lua, a época do ano, o estado do tempo e do mar, a pluviosidade, a idade da maré, o volume da restinga de areia que
existe do lado do sul do molhe norte, o estado da barra e valor
das correntes litorais, etc., etc. Pode dizer-se que não haverá
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dois valores iguais no ano, e nestas circunstâncias é praticamente
impossível determinar com aproximação aceitável valores médios que
tenham utilidade para cálculos de vazão. Os máximos no canal de
navegação, entre os molhes, fora da época de cheias, estão calculados
nos seguintes valores:
− enchente − 4 milhas por hora nas marés vivas e 2,5 milhas
nas marés médias;
− vazante − 4,7 milhas nas
marés vivas e 3 milhas nas
marés médias»(2).
Em suma, a laguna de Aveiro é animada por uma espécie de
corrente alterna e variável, cujo potencial é regulado pelas marés.
No haff o grande potencial da corrente dos rios varia não só com a
pluviosidade, mas também com os degelos, activados pelo foehn, vento
quente e seco. O efeito é, porém, num só sentido, sem resistências de
marés e de frequentes ventos marinhos.
Mais parecida com o haff é, em meu entender, por exemplo, a laguna de
Veneza − num golfo de mar interior e numa ampla reentrância do golfo, na
qual desaguam, entre outros, o Brenta.
Não há ali grande vaga e corrente forte a revolverem os fundos litorais,
e as marés são tão fracas que não chegam a cobrir uma grande parte da
laguna − a chamada laguna morta.
Separa-a do Adriático o estreito cordão arenoso, o Lido,
baixo, interrompido e em parte artificial.
Os ventos mais fortes descem dos Alpes para o mar; e, quanto às
aluviões, assoreiam mais o litoral do Golfo do que a laguna.
Notam-se também as principais características do
haff em
qualquer das lagunas do delta do Nilo, aliás conhecidas pelo nome de
lagos, a meu ver, sem independência nem génese que justifiquem sequer a
designação de lagos de barragem, como os do litoral girondino, a N. e. a
S. da bacia de Arcachon.
No Nilo, na laguna de Menzaleh, por exemplo, é notória a fraqueza das
marés. «O Mediterrâneo só tem marés no Golfo da Grande Sirta (Cirenaica
e Tripolitana) até às costas da Tunísia» (LAROUSSE).
O vento mais forte em Menzaleh sopra do deserto, do S. ou do S. O.
− o seco e sufocante Khamsin (que significa cinquenta), assim chamado por se sentirem mais os seus efeitos
em cerca de cinquenta dias da primavera.
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Nos seus turbilhões, a areia trepa pelas Pirâmides, não
tendo barrado a entrada da de Kheops porque ela lhe fica na
face virada ao norte, mas sim soterrado o templo subjacente à
Esfinge − como também inutilizaria o Canal de Suez se as
potentes dragas aspiradoras não lhe detergissem constantemente o fundo.
Não escapa à vista de quem por ali anda o baixo e curvo
cordão arenoso estendido de Port-Said a Damieta. É certo que
não longe se encontram dunas de certa altura, como bem se
nota nas barreiras cortadas nalguns pontos pelo Canal e pela
boa estrada em que desliza, no deserto, o automóvel entre Suez
e o Cairo, mas essas, a montante do vértice do cone de dejecção
do Nilo, são a continuação das dunas continentais, por sinal
endurecidas, talvez pela argila soprada dos produtos de colmatagem, ressequidos e pulverizados.
É curioso o modo como as andorinhas ali fazem o ninho,
e como esse facto só por si indica a direcção do vento dominante: escavam-no na parte mais alta duma das barreiras
− por
instinto de defesa, só na não exposta às tempestades de areia.
Ainda no Mediterrâneo, no Golfo de Lião, se poderá ver
representado o haff em Cette, entre outras das lagunas do
Languedoc e das bocas do Ródano (estas últimas ainda dentro
doutros golfos) todas com a sua fraca maré, sem duna movediça, com o
mistral a soprar de terra e sem corrente do mar
a diluir as aluviões que para ele constantemente avançam.
________
Em resumo: ao contrário do que sucede com a laguna de
Aveiro, o típico haff encontra-se numa reentrância e está no
fundo de golfo ou baía de mar interior, pouco profundo e pouco
salgado, sem correntes marítimas nem marés ou com marés
de muito fraca amplitude e, geralmente, sem ventos fortes
do mar.
É a mesma a tendência do haff e doutra qualquer laguna
sob a acção livre das forças naturais − cederem à terra o espaço que
ocupam.
Mas é diferente o processo de regressão:
− no haff esta
opera-se em consequência dos contínuos depósitos terrígenos
e seu avanço sobre o mar, geralmente pouco agitado e sempre de fraca profundidade;
− nas lagunas expostas ao oceano
resulta das aluviões eólicas e submarinas, no seu avanço para
dentro da costa, aonde a água salgada vai acelerar a deposição
fluvial.
Por este processo, a incessante terraplanagem subaquática
faz-se talvez mais rapidamente nestas lagunas.
Tanto o haff como a laguna de Aveiro, no período progressivo, como no regressivo, dependem das formações
deltaicas
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(incluindo nesta designação os depósitos de estuário) e
«a formação dos deltas está intimamente ligada à rapidez com
a qual os materiais transportados pela água do rio se depositam
nas águas marinhas; a água do mar clarifica-se cerca de
quinze vezes mais depressa que a água doce, em razão dos sais
que ela tem em solução»(3).
E, a título de corolário: um
nehrung ou um lido, isto é, o cordão como o
do haff, nalguns pontos delgado, baixo e fraco, sem ilhas altas a
formá-lo, sem socalcos nem lombas, não poderia na laguna de Aveiro resistir à potência mecânica das grandes
marés conjugada com a dos fortes temporais; não teria possança bastante
para, nessas ocasiões, conter a invasão do oceano.
(Excerto dum trabalho
em preparação).
Cor.-Méd. ANTÓNIO NASCIMENTO
LEITÃO |