O concelho de Aveiro
encontra-se na orla post-paleozóica ocidental. Os terrenos mais antigos,
que bem se destacam devido ao seu intenso colorido em vermelho, são em
geral gresosos, mas, por vezes, abundantemente argilosos, quase fazendo passagem a grosseiros argilitos.
Estendem-se com interrupções na margem esquerda do Vouga, de Taipa até
Hortas, e, na área que nos interessa, limitam-se à
escarpa, com excepção dos afloramentos de Eirol e de Requeixo.
Tais depósitos foram notados pela primeira vez neste concelho por DANIEL SHARPE, o fundador da Paleontologia portuguesa.
Baseando-se nos seus caracteres petrográficos, paralelizou-os com os
grés do Jurássico superior de Buarcos, embora em
dúvida por ter observado a sobreposição directa a rochas metamórficas.
Na verdade, a sua idade é mais antiga. Como aqui não apresentam fósseis,
a determinação estratigráfica tornar-se-ia absolutamente impossível se
não fizessem parte, com toda a evidência, de conjunto de grande unidade
litológica, que se dispõe como que debruando a Meseta, e serve de base
aos primeiros depósitos liásicos, em concordância, e parece que sem
lacuna. Os elementos paleontológicos encontrados em outros locais apenas
consistem em maus restos de vegetais, e os pontos mais próximos em que
se colheram foram Vacariça e Raposeira. Classificados por OSWALD HEER,
pouco esclareceram. A flórula de todo o país foi, porém, mais tarde
estudada pelo marquês de SAPORTA, que, tendo em consideração o número
restrito de espécies, não pôde determinar a idade, mas era sua opinião
/
84 /
haver muitas probabilidades para que fosse triásica. E, como tal,
tem sido desde então considerada.
É de crer que a grande transgressão liásica, de tão notável envergadura,
tivesse atingido esta área; todavia, não se encontra no concelho nenhuma
testemunha. Não há representação alguma do Jurássico.
Os primeiros terrenos paleontologicamente datados são os cenomanianos do
«nível com Neolobites». Mas, de certo, não há lacuna completa entre
estes e o Triásico, pois ocorrem em vários pontos formações
grosseiramente detríticas que se lhes intercalam e se mostram
idênticas a outras que, mais a Sul, repousam sobre o Liásico. São
cascalhos e areias grosseiras caulínicas com calhaus angulosos, tendo,
num e outro ponto, leitos de grandes calhaus rolados; conjunto este que
suporta argila muito untuosa ao tacto, fracamente micácea, em parte
branca, em parte vermelha violácea. PAUL CHOFFAT incluiu estes
depósitos estéreis no seu andar Belasiano(1), que abrange a parte
superior do Albiano e a inferior do Cenomaniano.
Aquele nível fossilífero só foi reconhecido aqui ,na estrada
de Palhaça a Oiã. Em calcários margosos de Águas Boas colheram-se
bastantes moluscos e equinodermes; além da característica amonite
Neolobites Vibrayi D'ORBIGNY, Pteroceras incerta D'ORB.,
Tylostoma
Torrubiae SHARPE, Neithea laevis DROUET, N. quinquecostata, sow.,
Gryphaea biauriculata LAMK, Exogyra columba LAMK, Ex. olisiponensis SHARPE,
Ex. flabellata GOLDF e Hemiaster
lusitanicus P. DE LORIOL, para apenas citar os mais Importantes.
É bastante longe - 300 m a S. O. do sinal geodésico do Carrejão, um pouco
a norte da estrada de Oliveirinha a Requeixo − que se encontra outra
formação calcário-margosa, de que não se conhecem as camadas
subjacentes, a qual tem sido considerada como turoniana. Os fósseis
que ali se apresentam conservam a concha, mas são bastante frágeis,
destruindo-se com
muita facilidade ao serem colhidos. CHOFFAT chegou a pensar na
possibilidade de se pôr a hipótese de tais depósitos serem
superiores à série cenomaturoniana e então sincrónicos do Senoniano
marinho do Ceadouro ou de Mira; porém, ele próprio pôs em evidência que
a abundância de Neithea laevis e de Exogyra columba contrariava essa interpretação, tanto mais que em
Mira só aparece a espécie Faujasi do género Neithea e a secção
das Rhynchostreon apenas está representada por um único exemplar de
Exogyra decussata GOLDF.. A presença em Carrejão de Trigonia sulcataria
LAMK., levou-o então a incluir aqueles estratos
na «camada com Anorthopygus» que, embora inicialmente em
/ 85 /
dúvida, mais tarde sempre apresentou como fazendo parte do
Turoniano inferior. Somos, porém, de opinião diversa e, de acordo com
HAUG, tendo em consideração alguns elementos da sua fauna como
Anorthopygus Michélini COTT. e A. orbicularis D'ORB., pensamos ser mais
lógico incluí-los ainda no Cenomaniano.
A estes sedimentos sobrepõem-se argilas escuras, micáceas, em que os
fósseis são abundantes, mas dificilmente classificáveis. A presença do
género Pectunculus e da espécie classificada, em dúvida, como Neithea
regularis SCHLOTHEIM, levou CHOFFAT a pensar que anunciaria,
possivelmente, a fauna senoniana de Mira, a qual, por isso, deveria ser
colocada na base do Neocretácico. Esta última hipótese é, contudo,
inadmissível, pois aquela fauna é sem dúvida alguma campaniana, e apenas
se reconhece pertencer ao Coniaciano a do «grés de Ceadouro». É,
todavia, provável que as argilas superiores do Carrejão sejam já
emscherianas. Sendo assim, não se encontra representado no concelho de
Aveiro o Turoniano incontestável.
Imediatamente mais moderno é o complexo flúvio-marinho que abrange a
maior área e que atribuímos ao Aturiano, sem ser possível fazer-se a
distinção entre o Campaniano e o Maestrichtiano. Foi
ele estudado já com
minúcia nesta mesma revista(2), razão por que nos abstemos, por agora,
de fazer novas considerações de ordem estratigráfica.
Além do depósito arenoso belasiano a que fazemos referência, outros de
análogo tipo petrográfico se mostram em grande extensão, e por vezes com
notável possança, na região em estudo. O único critério geralmente
seguido até hoje para determinar a sua idade baseia-se na percentagem
existente de substância caulínica. Quando esta abunda, as areias são
julgadas cretácicas; caso contrário, pliocénicas ou antropozóicas
conforme a sua posição relativa no terreno e a homogeneidade do seu
grão.
Se alguns desses depósitos devem, na verdade, ser ainda
atribuídos ao Cretácico, de fácies mais costeira, outros são, sem
dúvida, mais modernos. Como, infelizmente, não há fósseis, somos
obrigados a apoiar-nos na tectónica, se quisermos tentar estabelecer a
sua posição na escala estratigráfica.
Na cidade de Aveiro, os depósitos de materiais menos
coerentes parece terem-se sedimentado após lacuna apreciável,
mas, em outros locais do concelho, o facto não é tão evidente,
sendo mesmo impossível a distinção quando se encontram subjacentes materiais do mesmo tipo, quer senonianos, quer mesacretácicos.
/
86 /
As transgressões neogénicas
não deixaram sedimentos datados, para norte
da foz do Lis. É provável, porém, que no Plaisenciano se tivessem
realizado incursões marinhas, de maior ou menor envergadura, até à
região de Ovar; mas nada de positivo é possível dizer-se, não só devido
às razões anteriormente expostas, como ainda à ocultação produzida pela
larga faixa marginal holocénica. Durante a regressão vilafranquiana
deve-se ter dado importante orogenia. Como consequência houve
modificação e rejuvenescimento do relevo, o que modificou a rede
fluvial e activou a acção erosiva. O rio Cértima captou o Vouga, segundo
a opinião do Dr. ALBERTO SOUTO(3), desviando-o do seu curso normal e consequente, que deveria orientar-se N. E.−S. O. como o seu curso médio,
para S. E.−N. O., − ou seja na direcção, reconhecida hoje como a dos
mais recentes alinhamentos tectónicos. Os rios tinham, decerto,
carácter torrencial e, por isso, as cheias foram rápidas e violentas, e
os materiais sedimentados geralmente grosseiros. Foi-se originando então
o mais alto terraço fluvial. Como em outra trabalho concluímos(4),
devem ser vilafranquianos muitos depósitos de calhaus rolados das mais variadas dimensões, mesmo
os grandes blocos, dispersos. entre Condeixa e Aveiro, e grande parte
das areias que, por não apresentarem fósseis nem estarem ainda estudadas granulimetricamente, podem ser confundidas com outras mais antigas ou
mais modernas.
Foi portanto devido a esta activa erosão, auxiliada por fenómenos de
solifluxão, que tais sedimentos se foram acumulando nas regiões mais
baixas, constituindo em grande parte as gândaras visíveis em extensas
áreas de Estarreja para o Sul, e que tão características se mostram na
região em estudo, como entre Cacia e Esgueira, na Oliveirinha e na
Quinta do Picado. Sincronicamente se depositaram as areias grosseiras,
superficiais, margosas e micáceas, com grandes calhaus rolados e outros
mais pequenos achatados, ou com o seu bloco de arcose, como foi notado
por CHOFFAT, entre Eirol e Carcavelos.
|
Fig. 1 − FÓSSEIS DE AVEIRO
I
II
III
IV
V
VI |
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−
−
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Cyrena sp. aff. Cyprina
oblonga D' ORBIGNY
Cyrena an sp. nov.
a) Glauconia sp.
b) Cyrena solitaria ZITTEL
Cerithium Vidali CHOFFAT
(molde interno)
Bulimus Gaudryi
CHOFFAT
Melania sp. |
(Os exemplares
mostram-se ligeiramente reduzidos; o V é pertença do Gabinete de
Ciências Naturais do Liceu José Estêvão).
/ pág.87 / |
No final desta idade foi-se acentuando a diminuição no calibre dos
materiais transportados, enquanto a linha de costa se
ia afastando e se aproximava da isóbata de − 500 m. Foi daqui
que, muito provavelmente, o mar tirreniano, ou ainda siciliano, partiu
para nova transgressão, a qual, no seu apogeu, devia recortar o
continente de maneira bem diferente da actual. Não se apresentam, porém,
no concelho de Aveiro, depósitos originados por este fenómeno que, a existirem, se encontram em
/
88 /
profundidade encobertos pelas formaç6es flandrianas. É muito provável,
todavia, que ali ocorram terrenos sedimentados no Tirreniano, mas da
fase regressiva. Durante a sua regressão, a grimaldiana, houve
actividade tectónica, com predomínio de movimentos epirogénicos que
elevaram o interior do nosso território e acentuaram, em muitos pontos,
os desníveis costeiros. Devido a esse aumento de altitudes, novamente se
intensificou a acção erosiva. Como, quase sempre, os materiais então
sedimentados, têm as mesmas características geoquímicas que os da regressão vilafranquiana, deles se torna impossível, na maioria dos casos,
distinguir. Pode-se, porém, dizer que foi durante esta última retirada
do mar que se formaram os curiosos vales que se estendem paralelos entre
a foz do Vouga e a Ria de Vagos, os
quais tiveram o seu nível de base muito mais baixo, quando a linha de
costa se encontrava, aproximadamente, pela altura da actual isóbata de −
200 m.
Os depósitos, que se sedimentaram
nos talvegues, foram
devidos à deslocação daquele nível de base, motivada pela actual
transgressão, a flandriana. Esta é evidente como muito claramente foi
demonstrado pelo Eng. C. FRElRE DE ANDRADE(5), embora na região em
estudo a deslocação da linha de costa − as antigas ribas são hoje taludes na cidade e arredores
− dê a
impressão de movimento em sentido contrário. Este recuo, porém, tem
outra causa. É que, ao presente, a transgressão é suficientemente lenta
para permitir o assoreamento − devido à acção da corrente marinha que se
efectua no sentido N.-S.
das reentrâncias costeiras e das embocaduras dos rios e ribeiros, até
se constituir um alinhamento de equilíbrio. Portanto, todos os
depósitos, relativos a este concelho, indicados na Carta Geológica de
1899 pelas letras d e I, são os mais modernos e de idade flandriana. A
sedimentação ainda se continua, activada pela acção eólica. Verifica-se
assim, que a chamada planície aveirense não foi devida à abrasão
marinha, como se chegou a supor.
*
* *
Das considerações feitas se
conclui que a cidade de Aveiro assenta em
sedimentos de três idades: aturiana, vilafranquiana e flandriana. Muito
restritos ou nulos serão os depósitos visíveis tirrenianos da fase
regressiva, atendendo à fraquíssima possança das formações arenosas
post-cretácicas e ante-flandrianas.
São bastante recentes os estudos destes terrenos. CHOFFAT não chegou a
empreendê-los, tendo-se contentado com a observação do depósito de Vilar
e as informações fornecidas por
/
89 /
VASCONCELOS PEREIRA CABRAL que na cidade colheu alguns fósseis, os quais
aquele notável geólogo classificou como Hydrobia Vasconcellosi e
Cyrena Marioni. Foi dois anos mais tarde que a sua descrição foi apresentada(6)
bem como a de outros, colhidos em diferentes pontos das formações senonianas. CHOFFAT chamou a atenção para o facto das determinações
paleontológicas não poderem ser rigorosas, atendendo ao mau estado de
conservação do material; e declarou que foi para poder citar as formas
nos trabalhos estratigráficos que se viu obrigado a servir-se de
designações provisórias ou a dar nomes específicos a espécies que lhe
pareceram evidentemente novas, embora lhe fossem imperfeitamente
conhecidas.
Outra preocupação o dominou, tornar conhecida uma fauna, a respeito da
qual consultara os mais notáveis especialistas da época que pouco o
elucidaram, pois poderia dar-se o caso de aparecer alguma semelhante em
qualquer outra região da Europa, em melhores condições de estudo.
Se a descrição teve de ser muito deficiente pelas razões expostas, a
figuração não foi mais feliz, principalmente no que diz respeito à
ornamentação das formas mais pequenas.
Foram aqueles os dois primeiros fósseis de Aveiro registados. Só muito posteriormente o Dr. ALBERTO SOUTO(7) indicou o
aparecimento de Bulimus Gaudry, nas argilas margosas do canal de S.
Roque, em cortes de exploração industrial para a
fábrica de cerâmica da viúva de José Pereira Campos.
A outras espécies fizemos nós referência nesta mesma
revista − Cyrena aff. galoprovincialis, Cyr. aff.
Cyprina ablonga,
Dentalium (Fustiaria?) sp., Clastes lusitanicus, restos de quelónios da
família Bothremydidae, coprólitos e corpos cilíndricos de origem
problemática − mas, como se tratava de trabalho puramente
estratigráfico, nenhumas considerações de ordem paleontológica foram
então feitas. É, porém, o que nos propomos realizar agora, não só relativamente àquelas formas,
mas também a outras colhidas posteriormente, em especial pela nossa
aluna D. Florinda Machado, a quem marcámos como trabalho de estágio,
para a sua licenciatura em Ciências, investigações geológicas nesta
região. A si se deve o podermos indicar ainda Clastes postulosus e alguns
gastrópodes de dificílima classificação, devido a serem moldes
imperfeitos, mas que,
não somente pela primeira vez foram colhidos na área da cidade, como
ainda são inteiramente diferentes dos encontrados
nas formações senonianas portuguesas dos outros locais.
/ 90 /
Não é pequeno, relativamente, o número de espécies fósseis que aparecem
no concelho de Aveiro. A sua descrição ou está por fazer ou se encontra dispersa por várias publicações,
nem sempre acessíveis aos leitores do Arquivo. Algumas não
foram reproduzidas. E, embora outras estejam expostas no
Liceu e no Museu Regional daquela cidade, há toda a vantagem
em descrevê-las e figurá-las. Poderá assim ser despertado o
interesse, se não para a investigação paleontológica especializada que é de grande delicadeza e exige conhecimentos e
bibliografia adequados, pelo menos para a colheita de material
que possa vir a ser objecto de análise a fazer por pessoa competente.
Neste artigo apenas se estudará a fauna recolhida na área
da cidade ou seus mais próximos subúrbios, deixando para outra
oportunidade a do resto do concelho.
*
* *
Os fósseis mais frequentes correspondem a moluscos,
embora em certas camadas sejam muito abundantes os fragmentos de
carapaça de quelónios; as escamas, vértebras e
dentes de peixe ocorrem, segundo esta ordem, em menor percentagem. Daqueles invertebrados, são muito numerosos como
indivíduos os lamelibrânquios, cujos moldes, nalguns casos, chegam a
cobrir por completo a rocha. Os gastrópodes, porém,
mostram maior variedade genérica. De escafópodes apenas
foram colhidos dois exemplares, que é possível pertencerem a
dois subgéneros diferentes. Alguns estratos contêm grande quantidade de
coprólitos ou de corpos cilíndricos de origem
problemática.
No Gabinete de Ciências Naturais do Liceu de José Estêvão(8)
existe uma amostra de molasso, muito fossilífero, que consta ter
sido encontrado por um antigo aluno, próximo, de Aveiro. Bastante pequeno, tem todo o aspecto de pertencer a depósito
marinho miocénico, pois notam-se fragmentos de moluscos dos
géneros Arca e Turritela que parecem especificamente iguais a
outros dessa idade muito abundantes na bacia do Tejo. Seria
de extraordinária importância verificar se de facto é verdadeira
a presença de tal formação nesse concelho, mesmo na província
da Beira Litoral, onde ainda não foi reconhecido qualquer terreno,
que possa, incontestavelmente, ser atribuído ao Mioceno.
Também, em tempo, nos mostraram um fragmento de fóssil
que apresentava ornamentação assaz semelhante à da espécie
de Pyrgulifera que CHOFFAT classificou como armata var. gandarensis.
/ 91 / Não será de admirar que se confirme a sua ocorrência
em Aveiro, posto que já foi registada em Santo André, Covões,
Soza, Vagos e Quintãs.
Aproveitamos a oportunidade para fazer algumas considerações. Aquela variedade não corresponde, à forma típica
Pyr.
armata MATHERON, bem característica do Daniano, visto ter
também analogias com a espécie Pyr. Matheroni do Maestrichtiano; além disso, os exemplares que serviram para o seu estudo eram
todos incompletos e apenas moldes, a tal ponto imperfeitos, que aquele
notável geólogo chegou a pensar em
certa semelhança com Melania Matheroni ROULE. Por tais motivos e até que sejam obtidos melhores elementos que permitam
fazer diagnose mais segura, pensamos preferível, a fim de evitar
conclusões possivelmente erradas de carácter estratigráfico, aplicar à forma portuguesa a designação específica de
Pyr. gandarensis. A verdade é que, com os conhecimentos actuais, somos
obrigados a considerar os sedimentos, onde ela aparece, mais
provavelmente maestrichtianos do que danianos.
Passaremos a analisar os fósseis que não oferecem dúvida
quanto à sua localização:
GASTRÓPODES
Bulimus Gaudryi CHOFFAT
− Esta espécie foi baseada apenas sobre moldes internos, e, portanto, em condições de não
permitir boa descrição. A concha é ovóide subglobulosa, acuminada para trás e imperfurada; a espira, bastante curta na juventude, tornava-se muito mais larga com a idade; a abertura é medíocre,
acuminada atrás e largamente arredondada na frente.
Os exemplares encontrados .em Aveiro (fig. I,
V), correspondem bem a esta diagnose, e como moldes que são, não fornecem
mais elementos; a columela continua a ser desconhecida.
Os Bulimus s. lat., são bastante raros nas nossas formações
geológicas. Além dos da fáunula quaternária do Alentejo, em dúvida
considerados como tal, apenas se regista Bul. (Anadromus) Ribeiroi TOURNOUËR, muito abundante nos depósitos
argilo-piroclásticos do chamado «Manto basáltico», que, com
mais frequência, tem sido atribuído ao Eoceno. Essa espécie
parece aproximar-se da actual da América do Sul, B. (Plecocheilus)
signatus WAGNER, e, por isso, TOURNOUER a colocou no
mesmo grupo. De opinião contrária foi BARKELEY COTTER(9), que
reconheceu, apesar da grande diferença nas dimensões, mais
analogias com B. (Anadromus) proboscideus MATHERON
das
camadas do Cretácico superior da Provença. Posteriormente,
/
92 /
RÉPELIN(10) retomou o assunto e achou maiores afinidades ainda
com B. (Anadromus) affuvelensis MATHERON do Daniano da mesma região,
tendo concluído, embora com certa dúvida, que
a fáunula do «Manto basáltico» era cretácica. Eis a razão por
que provocámos este cotejamento das duas espécies. A Gaudryi
distingue-se bem da Ribeiroi, não só pelas maiores dimensões, mas ainda
porque nesta a última volta é mais envolvente, dando,
/ 93 /
por vezes, à concha aspecto bem globuloso. É, contudo, de
notar que os exemplares colhidos em conglomerado basáltico
imediatamente justaposto ao Turoniano da Nazaré, são mais
semelhantes aos primeiramente descritos por TOURNOUER, e, por
serem mais alongados e menos geniculados, mais se aproximam
de B. Gaudryi.
|
Fig. 2
I − ESCAMA DE TELEÓSTEO − Coimbrões-Arada
X 3
(Exemplar do Gabinete de Ciências Naturais do Liceu de José Estêvão).
II − ESCAMAS DE Clastes postulosus SAUVAGE − Agras
(Gr. nat.). |
/
93 /
Cerithium Vidali CHOFFAT
− Os exemplares recentemente
encontrados são bastante imperfeitos. Falta em todos, quase
por completo, a abertura. Só representamos molde interno
(fig. l, IV), pois os externos estão de tal modo colocados na
rocha que não permitem ser fotografados. Verifica-se, porém, serem
idênticos aos figurados por CHOFFAT. As voltas de superfície
achatada são cónicas, com quatro filetes finamente granulados ou
com pequenos tubérculos; na juventude eram presentes linhas
radiais bem acentuadas. Aquele geólogo pôs a hipótese de existirem duas
variedades: uma com três filas de tubérculos e outra com cordões
lisos. Nalgumas formas de Aveiro nota-se
que, num mesmo indivíduo, as voltas mais pequenas têm tubérculos muito nítidos, e as maiores apenas cordões lisos. Parece,
assim, haver formas de transição.
Este facto, a facies da formação e, especialmente, o dispositivo do curto canal e da abertura da concha, levam-nos a pensar que tais fósseis deviam antes ser incluídos no género
Potamides. Só melhor material poderá confirmar esta hipótese.
Glauconia sp. − É em dúvida que se coloca neste género
o exemplar (fig. I, III − a) recolhido num grés fino argiloso
junto do Canal de S. Roque. Tratando-se de um molde bastante imperfeito, assim o classificámos, devido à sua concha
turriculada, cónica, com voltas relativamente pouco numerosas
e costeladas transversalmente, e por ser Glauconia, o único
género de turritelídeos que se pode adaptar aos meios salobros.
Nos depósitos senonianos mostram-se duas espécies
deste género, Gl. Renauxiana D'ORB. e Gl. Kefersteini MUNSTER, e
que já vêm do Mesocretácico; a primeira desde o Aptiano, não ultrapassa
o Coniaciano, a outra mantém-se ainda no Aturiano,
em Chousa do Fidalgo, Lavandeira, Quintãs e Mira. É espécie
de grande longevidade que parece não apresentar variações. Julgamos que
não pode ser atribuído a qualquer destas o fóssil
em estudo, mas não temos elementos para justificar o reconhecimento de uma espécie nova para a Ciência.
Melania sp. − Outro gastrópode colhido no mesmo local
apresenta caracteres diferentes (fig. I, VI). É maior o número
de voltas e diverso o relevo destas. As voltas, que crescem
regularmente, são um tanto convexas e ornamentadas de estrias.
Apesar da abertura não estar visível e o fóssil estar imperfeito,
/
94 /
pensámos ser lógico o colocá-lo no género Melania. A falta de
elementos, porém, não impede que se verifique estarmos em presença de
espécie ainda não reconhecida no nosso Senoniano. Mel. Dolfusi CHOFFAT do
«grés do Vale», mostra sete excrescências axiais por volta, que se
correspondem com bastante regularidade sobre todo o comprimento da
concha, e, além disso, é de menores dimensões. Muito mais pequenos são
ainda os exemplares, de impossível classificação específica, contidos
nos nódulos calcários das argilas aturianas de entre Mesas
e Santa Catarina e de Henricas. São um tanto semelhantes a jovens Mel. galloprovincialis MATHER., mas, como judiciosamente fez notar CHOFFAT,
aquelas devem corresponder a adultos, devido à constância das dimensões.
Hydrobia Vasconcellosi CHOFFAT − Apenas conhecemos o material estudado
pelo autor da espécie; nada, portanto, se nos oferece dizer
relativamente a este fóssil. Seria de interesse colher material
eficiente para se verificar a hipótese de distinguir outras espécies,
como foi sugerido por aquele geólogo. Infelizmente, nada encontramos; as
Hydrobia são raras em Aveiro.
LAMELIBRÂNQUIOS
Todos os lamelibrânquios neocretácicos de Aveiro actualmente conhecidos
têm de ser atribuídos ao género Cyrena. Com excepção de Cyr. solitaria
ZITTEL (fig. l, III - b) que, só em dúvida, se pode considerar representada,
recolhemos naquela cidade todas as outras espécies registadas por
CHOFFAT quer nas formações marinhas do Ceadouro e de Mira, quer no complexo flúvio-marinho:
Cyr. Marioni CHOFFAT, Cyr. cfr.
gallo-provincialis MATHERON e Cyr. sp. aff. Cyprina ablonga D'ORBIGNY
(fig. l, I). Esta última muito frequente no «grés com Hemitissofia»,
bastante menos nas «camadas com Mytilus», e cuja presença foi julgada
duvidosa nos depósitos salobros, é, todavia,
muito abundante na cidade. De Cyr. Marioni só obtivemos a
forma mais alongada e de maior envergadura se bem que proporcionalmente
menos alta e em que o costelamento e a carena não são tão marcados.
Confirma-se, assim, a variedade suspeitada por aquele cientista, para
a qual propomos a designação
de aveirensis.
Junto do Canal de S. Roque apresentam-se indivíduos que não podem ser
incluídos nas espécies citadas. A concha é equivalve, oval subtrigonal
como as do género Corbula, com o bordo anterior arredondado, o posterior
um tanto rostrado, o dorsal anguloso e o ventral arqueado; vértices
proeminentes, quase unidos e ligeiramente posteriores; valvas não
costeladas nem carenadas; impressão paleal inteira e impressões
musculares
/
95 /
nítidas. Em virtude da falta de carena afasta-se de Cyr. Marioni e de
Cyr. solitaria. As outras duas espécies foram diferenciadas por CHOFFAT atendendo sobretudo à relação existente entre
a altura e a largura: Cyr. cf. gallo-provincialis de diâmetros
aproximadamente iguais e Cyr. sp. aff. Cyprina oblonga mais
comprida do que alta. Comparada a forma em estudo com esta,
verifica-se que a relação diametral é bastante menor e que a
forma geral não é cordiforme oblíqua. Poderia supor-se que os
exemplares pequenos pudessem corresponder aos indivíduos
jovens, contudo aparecem outros com iguais dimensões, 25 mm,
diferindo do mesmo modo. É, pois, sem dúvida, uma outra
espécie. Como não temos elementos suficientes para fazer diagnose séria, limitamo-nos a, indicá-la, sem qualquer preconceito,
por Cyrena (?) an sp. nov., até ser possível conseguir melhor
material que permita fazer a revisão de todos estes lamelibrânquios.
ESCAFÓPODES
Dentalium ( Fustiaria?) sp.
− Num barreiro explorado pela
Cerâmica Aveirense colhemos em argila margosa azulada fragmentos de moluscos. Um deles pertence a fóssil do género
Dentalium, de concha subcilíndrica de fraco diâmetro, ligeiramente arqueada, opaca e lisa, mas que julgamos ter sofrido
rolamento. A presença de estreita fenda, que possivelmente
será natural, levou-nos a incluí-lo no subgénero Fustiaria. Porém,
só o fazemos em dúvida, pois, no mesmo local, recolhemos um
outro incompleto sem fenda e anelado. É esta a única formação senoniana
portuguesa em que têm aparecido dentalídeos.
PEIXES
As escamas ganóides que frequentemente aparecem, correspondem bem
às descritas e representadas por SAUVAGE como Clastes lusitanicus SVG. e
Cl. postulosus SVG.(11) (fig. 2, II).
Aproveitamos esta oportunidade para figurar uma escama
de teleósteo fóssil (fig. 2, I), encontrada pelo Dr. ALBERTO SOUTO
próximo de Coimbrões (Arada), juntamente com um fragmento
de folha paralelinérvea, em argila cinzento-azulada. A escama,
que pertencia à linha lateral como se verifica pela presença do
pequeno tubo central, apresenta o bordo livre destruído e o
posterior ligeiramente recortado, nele terminando dez estrias
radiantes. Não é sem analogias, por exemplo, com as dos
géneros Holocanthus, Cyprinus e Carassius, porém assaz difere
das de Carassius carassius LIN., espécie actual, abundante nas
/
96 /
valas de Fermentelos. Fizemos esta aproximação, por nos
parecer que o depósito em que apareceu a escama, e que segundo julgamos
estava entre formações arenosas, seja mais moderno, talvez mesmo do
Pleistocénico.
|
Fig. 3
ROSASIA SOUTOI CARRINGTON
(Molde existente no Museu Regional de Aveiro. Foi preparado no Laboratório de Geologia da Universidade
do Porto pelo naturalista Dr. C. Teixeira).
|
RÉPTEIS
Há alguns anos que se registava a ocorrência de fragmentos
de carapaça de quelónios, todavia tão pequenos e tão mal conservados
que a sua classificação se tornava completamente
impossível. Pela ornamentação, supunha-se pertencerem a indivíduos semelhantes a outros fossilizados em Vizo e estudados por
SAUVAGE(11).
/
97 /
Este paleontólogo apenas conseguiu observar duas ou três
placas, o que não lhe permitiu estudo sério e, por isso, se limitou a empregar a vaga designação de
Emydée ind.. Mais feliz
fomos nós, pois obtivemos bom material o qual nos levou a
verificar a existência de uma espécie e de um género novos para
a Ciência, que tivemos a honra de dedicar aos nossos ilustres
amigos Prof. DR. ROSAS DA SILVA e Dr. ALBERTO SOUTO(12).
Rosasia Soutoi CARRlNGTON
− Tartaruga aquática de carapaça nitidamente achatada e subcircular, de grande envergadura,
com ligeira curvatura meridiana entre a última placa
óssea vertebral e a suprapigal, mostra margem relativamente
larga e quase horizontal (fig. 3). O fóssil melhor conservado
tem, no estado actual, o comprimento de 38 centímetros e a largura de 35 centímetros. São perfeitamente nítidos os sulcos
que separam os escudetes dérmicos os quais se encontram
assim distribuídos: 5 vertebrais, 4 pares de costais, 11 pares
de marginais e um pigal; não possuía escudete nucal. Bem
visíveis são também os contornos das peças ósseas, o que permite constatar a presença das seguintes placas:
1 nucal, 7 vertebrais, 8 pares de costais, 1 suprapigal, 1 pigal e 22 periféricas.
A ornamentação consiste em granulação excessivamente miúda e em finos
sulcos que, pela maior parte, mostram divisão dicotómica.
Pelo número, distribuição e grandeza das placas ósseas e dos escudetes
dérmicos, verifica-se haver notável semelhança
com os quelónios do género Elochelys NOCPSA, colocado pelo
seu autor na família Bothremydidae. Uma das características
deste género é a falta de placa suprapigal, facto de grande
importância, pois, devido a ele se distingue de todas as tartarugas conhecidas, com excepção das
Trionychoidaea. E, como
o réptil de Aveiro possui aquela peça bem desenvolvida não
pôde nele ser incluído. Por outro lado o Prof. BERGOUNIOUX, notável
especialista deste ramo da Paleontologia, propôs a anulação da família
Bothremydidae, passando as espécies nelas
colocadas a constituir um simples género dos Pelomedusidae(13).
O estudo deste fóssil aveirense impediu-nos de seguir esse
critério, pois teríamos de o associar às formas de Bothremys
só conhecidas pelo crânio, e às de Elochelys de que difere por
tão importante carácter, antes indicado. Mas, como em grande
parte concordamos ser indispensável simplificar tanto quanto
possível a taxinomia, propusemos antes transformar a família
Bothremydidae em subfamília dos pelomedusídeos, na qual
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ficaria colocado o nosso género
Rosasia. A colheita de melhores elementos permitirá, decerto, um mais profundo estudo, que
muito poderá contribuir para resolver alguns dos numerosos
problemas relacionados com os quelónios fósseis.
Muitos dos coprólitos colhidos, especialmente em Agras,
devem ser as fezes fossilizadas daquela espécie de tartaruga.
INCERTA SEDIS
CHOFFAT designou por «corpos cilíndricos» uma espécie de
nódulos cilindróides, uns direitos, outros irregularmente curvos,
arredondados nas extremidades, rugosos, dando o aspecto de
estarem cobertos por pequenas escamas, e que se encontram
nos depósitos neocretácicos que se estendem de Covões ao
Bôco. Os que obtivemos em Agras mostram a mesma forma;
todavia, a sua superfície é, em geral, lisa, assemelhando-se
mais, por isso, a outros que aparecem no «Manto basáltico» de
Lisboa e arredores − Carnaxide, Valajas, Ajuda, etc., − mas,
ao que parece, ali muito menos frequentes.
Corpos destes tipos são conhecidos do calcário com
Lychnus do Daniano francês: Eis mais uma analogia que
parece apoiar a ideia de atribuir a idade cretácica àquele depósito, contudo de modo algum provativa.
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Os fósseis que ultimamente têm sido colhidos na cidade
de Aveiro, vêm, pois, apoiar melhor ainda a nossa hipótese
relativa ao paralelismo existente entre níveis que CHOFFAT supunha de idades diversas. Põe-se assim em evidência que as
pequenas diferenças notadas nas fáunulas apenas devem corresponder a variações locais resultantes de certa mudança na
salinidade e nas condições de sedimentação, o que, de facto,
está de acordo com a fácies.
Não foi possível ainda fazer com maior minúcia o estudo
estratigráfico, devendo, como mais lógico, continuar a serem
consideradas, todas estas formações fossilíferas mais coerentes,
como aturianas.
Laboratório de Geologia da Universidade do Porto em
Março de 194I.
J. CARRINGTON DA COSTA
Bolseiro do Instituto para a
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