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Continuação da
página 202
III
ARADA
CONQUANTO a freguesia de Arada não seja parte da cidade,
contudo, pela sua proximidade, pois está situada quase às portas dela,
convirá dizer alguma coisa acerca do que era na época a que me tenho
referido, e das mudanças que nela tem havido.
A povoação de Arada era sede de concelho, com juiz
ordinário e Câmara Municipal. Este concelho, porém, não abrangia toda a
freguesia, compondo-se apenas da povoação deste nome, exactamente como
agora é, com a diferença de mais algumas casas novas e do melhoramento
de algumas antigas; pode dizer-se composta de três ruas; a principal,
porém, é a que segue à Estrada Nova, começando a população na casa alta
na quinta de D. Maria Isabel, hoje dos herdeiros do visconde de
Valdemouro, que fica à direita de quem vai da cidade. Do mesmo lado
ficava a capela de S. Sebastião, no sítio onde hoje ainda está, e quase
ao fim desta rua a casa da Câmara, do mesmo lado. Um casebre
insignificante com uma sala em cima para as sessões e audiências, com
uma prisão térrea que tinha apenas uma janela gradeada.
Daqui, descendo-se à fonte, e passada a baixa que ainda
hoje lá existe, atravessando aí a estrada uma levada de água a
descoberto, continuava pela estrada a outra rua, com casas mais raras,
até próximo do sítio a que chamam o Coimbrão, sítio em que não havia
casas, mas aí há já dois moradores.
Era nesta rua que habitavam os paneleiros, fabricantes de
louça preta de barro, em que então toda a gente cozinhava e ainda
cozinham algumas pessoas que a preferem à louça de folha de ferro, hoje
muito generalizada. A outra, que chamaremos também rua e à qual chamavam
Rua Cega, começava defronte da casa da Câmara com casas muito rareadas,
indo
/ 260 /
terminar na casa de Caetano José Ferreira do Amaral, para onde foi
viver, depois que, pela extinção dos conventos, foi vendida a casa em
que habitava, junto dos celeiros onde ele recolhia as rendas do convento
padroeiro, o que tudo era situado defronte da casa da Câmara, à entrada
da dita Rua Cega.
Destas três ruas e de alguma casa isolada de um e do
outro lado da estrada é que se compunha o concelho, confinado com o
concelho de Aveiro pelo norte e nascente, e terminando no vale de S.
Pedro das Aradas, no qual se acha o esteiro da mesma denominação e a
malhada para secar o moliço. Como freguesia, porém, pertenciam à Arada
as povoações de Verdemilho, Bom Sucesso, e ainda a Quinta do Picado, que
pertenciam todas ao concelho de Ílhavo, deixando de fazer parte dele
quando, pela divisão territorial de 1835, a freguesia de Arada passou
inteira para o concelho de Aveiro.
Estas três povoações pagavam conjuntamente com o concelho
de Arada o dízimo ao Convento da Serra do Pilar, que era o padroeiro da
freguesia e pagavam igualmente oitavos ao Conde de Carvalhais, senhorio
de Ílhavo, sendo de notar que o lugar de Verdemilho (corrupção de Vila
de Milho, primeiro nome) foi em tempos remotos a sede do concelho de
Ílhavo e que é à Vila de Milho que el-rei D. Dinis deu foral em...
É também de notar que estes povos eram obrigados a levar
o oitavo dos seus produtos ao celeiro de Carvalhais, próximo da vila de
Anadia, o que lhes era muito penoso, e por isso de há muito que pediam
ao senhorio um celeiro dentro do concelho, até que afinal foram
atendidos, mas com a condição que aceitaram de pagarem mais um alqueire
cada fogo, que chamavam o alqueire do celeiro. Este, creio que ainda
existe, e era uma casa sobradada, à entrada da rua de S. João, ao lado
do norte.
A igreja paroquial desta freguesia era situada junto do
esteiro de S. Pedro, achando-se também aí a residência paroquial, que
era ao mesmo tempo hospedaria dos frades quando vinham a esta paróquia.
Achava-se, pois, na extremidade da freguesia, sem uma casa próxima, pois
que a Quinta da Boa Vista, hoje pertencente à viúva do Dr. Agostinho
Fernandes Melício foi edificada, muito entrado já o século XIX, pelo pai
da dita senhora, o Dr. Gonçalves Monteiro, natural das Ribas, concelho
de Ílhavo. Ficava, pois, a igreja em um sítio ermo, muito distanciada
das quatro povoações da freguesia, sendo além disso, os caminhos maus e
lamacentos, principalmente nas proximidades da igreja, tanto no leito da
ponte como na avenida que da estrada ia em direcção à igreja, em razão
dos montes de moliço que dos barcos eram lançados para os caminhos, como
do contínuo rodar dos carros que dali o conduziam para as lavouras. Mas
o que importava isto? Ao que se atendeu foi à comodidade dos padroeiros,
que, quando vinham da Serra
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[Vol. VI - N.0 24 – 1940] do Pilar a
esta freguesia, embarcando em Ovar, vinham pela ria desembarcar no
esteiro, tendo, para assim dizer, um pé ainda no barco e o outro já na
residência; os paroquianos que se arranjassem como quisessem e pudessem,
e com efeito lá se arranjaram; construindo cada povoação a sua capela,
onde ouviam a missa, pagando aos capelães a quem também se confessavam,
indo apenas à igreja para cumprimento do preceito quaresmal e para
baptizados, casamentos e condução dos seus mortos.
Achava-se, pois, a igreja quase como abandonada; ali
entrei uma vez, notando o deplorável estado em que se achava, com as
sepulturas destapadas, vários trastes e objectos pertencentes ao serviço
encostados às paredes, por falta de casa onde fossem recolhidos, os três
altares todos faltos de asseio e limpeza, mostrando a mais extrema falta
de cuidado.
Além disso, pela situação da igreja, sobre um terreno
falso, quase lodo, arruinava-se ela amiudadas vezes, porque ou uma
parede desequilibrada ou outra fazia fendas, o que obrigava o povo às
despesas da reconstrução. No cartório da extinta provedoria vi um
processo de arrematação de obras feitas naquela igreja por ordem do
provedor; depois dos autos de apontamentos, arrematação e aprovação das
obras, seguia-se o requerimento em que o juiz da igreja, entidade que
naquele tempo desempenhava, quanto à igreja, as funções hoje a cargo das
juntas de paróquia, pedia ao provedor providências para que o padroeiro
fizesse os consertos de que a capela-mor carecia, pois que, apesar das
suas instâncias para com o procurador do convento, o dito Caetano José
Ferreira do Amaral, nada dele tinha podido conseguir; seguia-se no
processo o despacho do provedor, mandando proceder a sequestro nos
frutos armazenados no celeiro dos frades e intimar o procurador do
convento para fazer as ditas obras em um prazo que lhe assinou, sob pena
de serem feitas às ordens do juízo e pagas pelos frutos embargados,
vendendo-se, para esse efeito, a quantidade necessária.
Acudiu logo o procurador do convento, prometendo fazer as
obras imediatamente, como fez, menos, porém, o trono, dizendo que para
isso não tinha obrigação, mas afinal lá o fez, bem ou mal, depois de se
repetir a queixa do juiz da igreja, novo sequestro e nova intimação.
Infelizmente, este processo, que era dos fins do século
XVII, ou dos primeiros anos do século XVIII, foi queimado no incêndio do
Governo Civil de 1864, onde se achava com todos os mais papeis da
provedoria.
Desde 1834 instavam estes povos pela construção de uma
nova igreja em sítio mais central e acessível; os de Arada, por esta
povoação ser vila, cabeça do concelho e da freguesia, pugnavam para que
a igreja fosse edificada em Arada, ou o
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possível; os três lugares distantes pretendiam que o fosse no sítio do Outeirinho por ser o mais central da paróquia.
Houve questões, chegando-se a vias de facto e a
cometer-se até um assassinato, conforme as diversas parcialidades desta
divergência, a qual era principalmente promovida por Caetano José
Ferreira do Amaral que, muito devotado a D. Miguel, e esperando que ele
havia de voltar ao trono português, sendo estabelecidas as leis do
regímen antigo e de novo povoados os conventos, entendia ele que,
colocada a igreja fora da área do concelho de Arada, o Convento da Serra
do Pilar tivesse por este motivo questões com o conde de Carvalhais, das
quais resultasse o perdimento dos direitos que tinha aos dízimos da
freguesia.
Venceu, enfim, o partido adverso, graças à integridade do
secretário geral, servindo de Governador Civil, Dr. António Ferreira de
Novais, o qual, indo pessoalmente percorrer a freguesia e examinar os
locais em que lhe parecesse mais conveniente fundar a igreja, escolheu o
do Outeirinho, sem ainda saber que era ali que os três lugares
pretendiam que ela fosse edificada.
Foi em 1856 que, e em 17 do mês de Fevereiro que ali se
disse a primeira missa, tendo-se fundado também junto da igreja um
cemitério paroquial.
Neste cemitério foi sepultado o conselheiro desembargador
Joaquim José de Queiroz, um dos vultos mais importantes deste concelho,
entre os homens que promoveram o glorioso movimento da Carta
Constitucional, tendo sido ele o secretário da Junta criada no Porto em
16 de Maio de 1828, por ocasião da reacção contra a elevação de D.
Miguel ao trono, e sendo mais tarde ministro dos Negócios da Justiça.
Para este cemitério foi igualmente conduzido por sua
disposição o cadáver de Domingos dos Santos Barbosa Maia, vulgo,
Domingos Carrancho, o qual, sendo presidente da Câmara de Aveiro de 1842
a 1845, foi o primeiro presidente que iniciou nesta cidade e seu
concelho obras e melhoramentos de alguma importância, entre os quais o
cemitério em que jaz.
LUGAR DE SÁ
Era uma aldeia suburbana da cidade, que por uma das
muitas anomalias que se notavam na antiga divisão territorial pertencia
ao concelho e julgado de Ílhavo. Tinha um juiz de vintena ou pedâneo,
com seu escrivão.
A última casa da cidade era o convento de frades do
Carmo, (hoje a casa do Sr. Dr. Jaime de Magalhães Lima); e o das freiras
franciscanas do convento da Madre de Deus, que estava
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no local onde hoje se acha o Quartel, já era da jurisdição de Ílhavo.
Entre os dois conventos não havia casa alguma.
Esta aldeia compunha-se, como actualmente, da rua que
terminava, como já se disse, logo adiante da capela de Nossa Senhora da
Alegria e de algumas casas por travessas e becos ao sul dela, hoje na
maior parte melhoradas e em muito menor número, porque muitas têm sido
feitas de novo nestes últimos anos.
Sobradadas só havia duas, além do convento e hospedaria
das freiras e habitação do capelão, que até 1834 era sempre um frade da
Ordem, e actualmente é hospedaria episcopal; e uma outra do lado do
norte, quase ao fim do lugar, a qual pela sua construção mostra ser
muito mais antiga do que as outras ora existentes.
As restantes casas eram poucas, térreas e de miserável
aspecto, como ainda existem algumas defronte do Quartel, ao começo da
avenida para a Estação; uma ou outra tinha pequenos quintais vedados
para a estrada por valados ou sebes de raquíticos sabugueiros.
Conquanto este lugar de Sá pertenceu a Ílhavo (foi até
1835), havia ali muitas tabernas que vendiam vinho em grande quantidade,
por ser muito mais barato do que o vendido na cidade, e isto pela razão
de diferença do imposto de consumo, que em Ílhavo era muito menor. Em
consequência, famílias da cidade dali se sortiam, e Sá era muito
frequentado à noite e nos dias feriados por todos os devotos de Baco,
sendo por isso frequentes ali as desordens e os malefícios; os
empresários destas tabernas eram negociantes da cidade.
Depois da morte do último bispo sagrado Manuel Pacheco de
Resende, e enquanto foi vigário geral o da Vera Cruz, Manuel Tavares de
Araújo Taborda, foram nomeados muitos clérigos instruídos nas ciências
eclesiásticas ultimamente pelo último capelão das freiras, frade da
Ordem, mas já egresso, o Dr. Francisco Nicolau.
Em dois anos ele, só, os preparava para receberem
demissórias e irem tomar ordens a algum bispo da nação vizinha.
Os limites deste lugar pelo lado do nascente eram os
mesmos que hoje dividem as freguesias de Esgueira e Vera Cruz, pois que
o lugar, conquanto pertencente a Ílhavo, no civil e criminal era
pertença da freguesia da Vera Cruz.
O lugar de Arnelas era da freguesia da Vera Cruz, assim
como todo o terreno que daí segue pela Forca, Presa e Quinta do Gato,
onde por este lado findava a freguesia da Vera Cruz; pelo lado do norte
pouco terreno podia pertencer-lhe adjacente à estrada, porque pertencia
na maior parte à freguesia de Esgueira, e tanto que no lugar da Quinta
do Gato há casas pertencentes a esta última freguesia.
O lugar da Forca era desabitado, e aquelas casas e
quintais
/ 264 / que hoje se vêem entre a estrada para a Presa e o
caminho para Esgueira são edificações novas em um largo despovoado, a
monte, com o terreno bastante desigual e até com algumas covas abertas
por quem pretendia tirar saibro para construções; aqui e ali rebentavam
silvas ou cardos, e no centro existiam umas velhas paredes que diziam
ser da forca, e creio que o eram, não só pelo nome dado ao lugar, mas
também pela sua configuração que não mostravam ser restos de casa para
habitar. É certo que em muitas terras há ainda um sítio com este nome, e
posto que em Aveiro não houvesse quem se recordasse de ter havido ali
execuções, é muito natural que elas existissem, à vista do livro V das
Ordenações, em cujas páginas tantas vezes se repete a terrível sentença,
− morra por ello.
A estrada para a Quinta do Gato foi há poucos anos aberta
do antigo caminho de carro, ficando este muito bonito e melhorado, e
dando lugar a novas construções, o que aquelas povoações conseguiram por
ocasião de uma eleição chamada municipal mui disputada.
Não chegou, porém, o desejado dinheiro para se proceder
ao ensaibramento, pelo qual apenas os pobres esperam para quando houver
outra eleição, eleição que não promete vir tão cedo, visto que já não a
têm; já não há eleições, mas sim nomeações feitas pelo santo acordo dos
influentes e galopins dos diversos bandos políticos ou pseudo-políticos,
governadores deste país.
Ao sul da estrada mencionada confina a freguesia da Vera
Cruz com as terras ou terrenos pertencentes à da Senhora da Glória que
vão até mesmo ao marco de S. Bernardo e que naquele tempo pertenciam à
freguesia do Espírito Santo, os quais também não vão muito ao sul da
estrada porque os aperta a freguesia de Arada.
Além destes terrenos, havia, como há ainda hoje, os do
lado de Santiago, cujos limites eram os mesmos que ainda hoje existem
entre as freguesias da Glória e das Aradas.
ESTRADAS E CAMINHOS DE FERRO
Naquele tempo não havia alguma outra estrada nas
vizinhanças da cidade, além da estrada nova ao sul dela, feita nos
últimos anos do reinado de D. Maria I. O resto eram tudo caminhos de
carro e de pé; mesmo no Distrito não havia outra estrada além da de
Lisboa ao Porto, passando por Mealhada, Águeda, e Albergaria, etc.
Deploráveis eram, porém, as condições em que por essa
antiga estrada se viajava. Havia as liteiras, caixas com assento para
duas pessoas, com varais anteriores e posteriores, aos quais
/ 265 / era
respectivamente atrelado um muar. Serviam só para nababos, bispos,
prelados das Ordens monacais, desembargadores, e outros altos
funcionários; para os restantes havia os machos de arrieira, pela maior
parte teimosos e manhosos, mal arreados, de péssimo andar, no que
forçoso era resignar, porque uma viagem de liteira entre Lisboa e Porto
não custava menos de 80000 a 90000 réis.
Deve acrescer um dispêndio não menor de cinco dias,
pousadas incríveis, e enfim, o risco de ser roubado e até assassinado em
Chão de Maçãs, no Pinhal da Azambuja, e noutros sítios, em que
quadrilhas de ladrões assaltavam os viandantes.
Não é inteiramente figura de retórica dizer-se que
algumas pessoas, obrigadas a ir a Lisboa, deixavam feito o seu
testamento; o caso deu-se algumas vezes.
Quem aqui nascia, aqui morria, sem se aventurar a viajar
para além de Coimbra ou Porto; e ainda assim, com quantas dificuldades
lutava! Para se ir ao Porto entrava-se num barco de Ovar, assim chamado,
que fazia carreira diária entre os dois pontos; quem podia tomava a
proa, se não estava já tomada; aliás, ia no convés e ao relento, e no
inverno ao vento e à chuva.
A partida era sempre às nove ou dez horas da noite,
chegando-se a Ovar de manhã, às horas que o barqueiro queria. Ali
justava a cavalgadura, havendo-a, pois que algumas vezes nem uma
aparecia; havendo sardinha em Espinho, todas para ali corriam;
havendo-a, montava-se sobre uma albarda de carga, sem estribos, sem
freio, sem rédeas, e ela partia por entre os pinheiros, seguindo o
trilho seu conhecido, sem que o passageiro pudesse guiá-la.
O arreeiro deixava-a seguir como quisesse, e se desviava
por atalhos, aparecendo quando e onde queria, mas sempre onde havia
taberna para exigir vinho e para pensar a cavalgadura. Esta, costumada à
pitança, ao avistar a taberna, corria de galope, e ai do passageiro que
se não baixasse, prolongando-se pelo pescoço do animal, porque, não o
fazendo, era-lhe certo bater com a cabeça na padieira da porta. Quem
tinha relações em Ovar com alguma pessoa, à qual pedisse com antecipação
que lhe fretasse cavalgadura, só por este meio conseguia obtê-la em
condições suportáveis, embora mais cara; mas nem todos tinham ali
relações, e nem sempre havia tempo de utilizar-se delas.
A passagem da Barrinha, sempre incómoda, era perigosa no
inverno; os barcos velhos, mal aparelhados; os barqueiros imperitos e às
vezes crianças; cavalgaduras embarcadas juntamente com os passageiros;
enfim, não podiam ser piores os meios de fazer esta travessia.
Em 1850 ou 1851, um belo rapaz desta cidade, José Nunes
da Maia, capitão de marinha mercante, depois de ter feito viagens ao
estrangeiro, terminou seus dias naquele charco. Muitas
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vezes, no meio do areal, era o passageiro sacudido pela cavalgadura, que
fugia, deixando-o só, e obrigado a seguir a pé, até que o arreeiro
aparecesse e conseguisse encontrar a fugitiva.
De volta, ou se havia de esperar em Ovar a hora da
partida do barco da carreira, ou, fretando-se outro, apenas se obtinha a
passagem da proa, mas pouco ou nada se adiantava a viagem. Feito o
ajuste, começavam a faltar os aparelhos; era a chave da proa, era a
ostaga, a escota, etc., e cada uma destas coisas se ia buscar à casa do
barqueiro, prolongando-se a demora quanto possível, com o fim de admitir
no barco os passageiros que vinham chegando, e não havendo, como quase
sempre não havia, recurso, forçoso era resignar, muitas vezes, a partir
quando o barco da carreira.
As jornadas pelo Distrito, sempre por caminhos péssimos,
azinhagas, com largura apenas para um carro de bois, eram sempre
incómodas e quase sempre arriscadas; aqui, atoleiros em que as
cavalgaduras se enterravam até aos peitos, ali, charcos de água que era
forçoso transpor, por toda a parte silvas dos valados, rasgando o fato
ou ferindo os cavaleiros; eram inconvenientes que a gente de pé evitava
quando podia, abrindo portais nos valados, e subindo as terras, fazendo
caminho por diversos carreiros, através de sementeiras e searas, com
prejuízo de seus donos.
No rio Vouga, apenas havia a antiga ponte junto do lugar
que tem o mesmo nome do rio, e a de Pessegueiro, mandada construir por
um abade da freguesia; sobre o Águeda havia a do lugar deste nome, e a
chamada da Rata, entre Eirol e Almear.
Esta, porém, consistia em duas paredes paralelas, com
abertura para passagem da água em tempo de cheias, com o pavimento aqui
encharcado, ali com montões de pedregulho, dando dificílima passagem a
cavaleiros e mesmo a peões, que só podiam seguir descalços.
Além destas, foi em 24 de Novembro de 1844 que António
Ferreira de Novais, secretário geral, e ao tempo servindo o cargo de
Governador Civil, pelo aborrecimento de esperar três horas pelo
barqueiro para passar de Cacia para Angeja, em jornada de serviço, tomou
a iniciativa da construção da ponte que naquele sítio se acha, sendo
feita à custa do Distrito, mas de madeira, porque a Junta Geral não
dispunha de meios para mais, e assim ficou até ao presente, sem ter
havido quem disponha de influência bastante para conseguir do Governo
que a substitua devidamente por outra de pedra ou ferro, como cumpre que
se faça, pois que faz parte da estrada de segunda classe n.º...
A avenida desta ponte para a vila muito custou a firmar,
destruindo sucessivamente os trabalhos por alguns anos feitos para a
consolidar, o que afinal foi conseguido pelo engenheiro Silvério Augusto
Pereira da Silva.
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267 /
Antes das estradas que hoje servem todos os concelhos do Distrito, que todas foram construídas posteriormente a
1851, todos os caminhos eram deploráveis, Que dificuldades se
encontravam para conduzir um doente às Caldas de S. Pedro do Sul, quando
pelo seu estado não podia ir a cavalo! Nos concelhos serranos só podia
jornadear-se em cavalgaduras costumadas aos caminhos, sempre com guia, o
qual, de quando em quando convidava os passageiros a apearem-se, até que
chegassem a ponto do qual pudessem seguir a cavalo.
Na passagem do Vouga, em tempo de cheias, quase todos os
anos havia perda de vidas, porque, alastrando as águas para os campos e
cobrindo as valas que por ali há, nelas caíam passageiros que não
conheciam a direcção que deviam seguir, até chegarem ao ponto onde a
barca os esperava, pois que esta somente servia para a passagem no álveo
ou leito do rio. Enfim, os que hoje se aborrecem com as demoras dos
comboios nas estações da via férrea e com outros inconvenientes das
viagens, se tivessem jornadeado nos tempos já idos, longe de se
aborrecerem e de se queixarem, deviam bem dizer a sua sorte, e
confessar-se agradecidos aos que lhes proporcionaram as vantagens de que
gozam com as novas estradas e com a viação acelerada de que nos servimos
actualmente e de que vamos falar.
Foi em 18 de Julho de 1863 que uma locomotiva, puxando
algumas carruagens de primeira classe, veio a primeira vez em viagem de
experiência da estação de Estarreja até à proximidade da ponte sobre a
ribeira de Esgueira. De Estarreja até às Devesas já o caminho de ferro
funcionava. Não avançou para aquém da ponte, por isso que, tendo abatido
um viaduto praticado no aterro que atravessa o vale do Côjo, exigido por
Mendes Leite em condição no acto da venda do terreno, sobre o qual o
dito aterro foi levantado, afim de lhe dar serventia para os seus
prédios, de um e outro lado, ainda a esse tempo não se achava
reconstruído, nem chegou a sê-lo, porque Manuel José Mendes Leite,
reconhecendo que lhe era desnecessário, preferiu receber a importância
provável da despesa com a reconstrução; e por esta forma se abreviou o
trabalho de pôr o caminho naquele ponto em estado de dar passagem aos
comboios.
Todavia, só em 10 de Abril de 1864 teve lugar a abertura
do caminho de ferro das Devesas até Taveiro.
A passagem do caminho de ferro tão próximo desta cidade
foi inquestionavelmente o maior dos benefícios que Aveiro ficou devendo
a José Estêvão Coelho de Magalhães; a primeira directriz passava mais a
nascente, distanciando-se algumas léguas desta cidade, e foi devido
exclusivamente às diligências e esforços deste benemérito aveirense que
foi alterada, não, porém, sem que ele tivesse de lutar com tenacíssima
oposição
/ 268 / contra a qual empregou toda a força que dimanava do seu
acrisolado amor à terra em que nasceu. Com efeito, além de todas as
vantagens comuns a qualquer povoação resultantes da proximidade de uma
estação de via férrea, recebeu daí esta cidade benefícios especiais e
privativos mui importantes, tais como a deslocação, de Águeda para
Aveiro, do empório do comércio de pescado, a saída pelo caminho de ferro
de grande quantidade de sal e outras muitas.
O pescado era conduzido em barcos pelo Vouga e Águeda, à
custa de insano trabalho, sendo indispensável recorrer em alguns pontos
a juntas de bois que os arrastavam por ser tão pouca a água que lhes não
dava navegação, e, chegando àquela vila, tinham os mercanteis de ali se
demorar dias, esperando a procura, e de sofrer as bruscas alterações de
preço a que este comércio da sardinha aqui está sujeito; desde que há a
estação da via férrea são os almocreves e carrejões que vêm procurar o
pescado à cidade, deixando assim este negócio maiores interesses aos
exploradores, além dos lucros que auferem contadeiras, empilhadeiras,
carreteiros, e outras classes, pelo seu trabalho ou fornecimentos.
O sal saía exclusivamente pela barra; muitas vezes,
porém, com os prejuízos resultantes da forçada demora na saída dos
navios, por dias e semanas, em razão da bravura do mar. Além disto, a
via férrea abriu para o sal novos pontos de consumo, para a Beira e até
para além da raia.
O comércio de frutas também é beneficiado pelo caminho de
ferro: a demora na saída da barra fez algumas vezes que se perdessem
carregações inteiras; hoje, porém, expedida imediatamente pela estação
de que está mais próxima, chega ao Porto em bom estado, e aí embarca e
sai sem dano para os portos do destino.
Facilitou e deu importante incremento à exportação de
legumes, aves, ovos, mariscos, e outros artigos, e pôs a cidade em
comunicação directa com muitas das terras principais do Distrito, com as
estâncias balneares, com Lisboa, Coimbra, Porto, e outras cidades e
terras importantes do país.
Estes benefícios, porém, mal podem ser compreendidos e
avaliados pela presente geração; seria mister que ela tivesse viajado
pelos antigos caminhos e sofrido, numa demorada e enfadonha jornada de
Aveiro ao Porto, as arrelias causadas pelos arreeiros e barqueiros de
Ovar. Quem diria nesses tempos que outros viriam em que fosse facílimo
ir a Lisboa, chegar sem a menor fadiga, demorar-se um dia inteiro,
regressar e achar-se em sua casa, sem ter perdido mais do que um só dia?
Quem tal dissesse, por doido seria tido! Ir a Lisboa?! Só uma absoluta e
urgentíssima necessidade, a tanto podia obrigar. Havia um caminho pela
Figueira, e mais povoações da beira-mar, a terminar no Carregado,
seguido apenas pelos pescadores
/ 269 /
de Ílhavo e Murtosa, e por um recoveiro de Mira que prestava bons
serviços nas suas viagens mensais, levando e trazendo encomendas.
Aqueles pescadores costumavam ir passar parte do ano nas
vizinhanças de Lisboa, onde se ocupavam na pesca da sardinha na baía e
mesmo fora da barra, e na do sável no Tejo até Santarém. Para todos os
outros havia a chamada estrada real, de Lisboa ao Porto, que no Distrito
passava por Oliveira de Azeméis, Albergaria, Águeda e Mealhada, e que na
sua maior parte foi aproveitada para a estrada que hoje temos e que a
princípio se chamava a estrada da Malaposta, sendo continuada mui poucos
anos antes da construção da via férrea do norte.
QUARTEL
Foi um erro edificar o quartel de Sá sobre as ruínas do
convento. Este era de freiras franciscanas da terceira Ordem, tendo por
orago a Madre de Deus. Além de se ter feito à única freira então
existente a violência de expulsá-la da sua cela, onde já tinha passado
uma tão longa vida e onde tanto desejava morrer, ficou a obra muito mais
cara do que se para ela outro local tivesse sido escolhido.
O edifício do convento prometia duração para séculos;
eram rijas e seguras as paredes e excelente e em bom estado o
travejamento, de forma que, reparados os estragos nele produzidos por um
incêndio que teve lugar em a noite de 11 de Janeiro de 1882, destruídos
os tabiques divisórios das celas, soalhado e estucado, ficava um
edifício muito aproveitável para qualquer fim de pública utilidade, para
que o Governo facilmente o concederia, e a freira pouca duração
prometia, pois que a sua idade era já muito avançada. Por esta forma
ficaria a cidade com dois grandes edifícios, em lugar de um só, − o
quartel −, evitavam-se as avultadas despesas da demolição do convento,
da remoção e depósito de materiais e entulhos, aterros e desaterros, a
que obrigava a irregularidade do terreno, a construção de alicerces
profundíssimos, o encanamento subterrâneo das águas que a ele afluíam, a
compra de uma propriedade ao norte, por ser insuficiente a área do
convento e cerca respectiva, e a construção da grande muralha de suporte
pelo norte da parede. Isto, sem falarmos nos desvios e subtracções de
materiais e irregularidades que, segundo se diz, não foram de pequena
importância.
Em qualquer outro dos muitos locais que havia a escolher,
ficava o quartel muito menos dispendioso e sem o defeito de estar a sua
frente em parte soterrada, o que lhe prejudica o aspecto e torna
necessária a despesa a fazer com o rebaixamento do pavimento da rua.
/
270 /
Foi suprimido o convento por despacho do Ministério da Justiça, de 7 de
Fevereiro de 1885. À freira teve o Governo de conceder uma prestação que
todavia ela pouco tempo gozou, porque tendo-se retirado para Fermelã com algumas das recolhidas que
quiseram acompanhá-la, aí faleceu em 1889; tendo saído do convento em 15
de Fevereiro de 1885, chamava-se Ana Benedita de S. José, e tinha sido
por alguns anos a única, e, por isso, abadessa de si mesma.
A penúltima abadessa foi D. Inocência do Céu, tia do Sr.
Francisco Manuel Couceiro da Costa; faleceu com 98 anos de idade, em 11
de Setembro de 1880. Era natural de Ílhavo, e teve uma irmã freira do
mesmo convento, falecida muitos anos antes em casa de seus parentes.
Chegou a esta cidade o novo Regimento de Cavalaria N.º
10, em 18 de Janeiro de 1885, indo aquartelar-se no convento que foi de
frades antoninhos, por não estar ainda o quartel de Sá nos termos de o
alojar. E porque o convento não era suficiente, foi alugada parte da
quinta contígua da família Rebocho, onde se fizeram as cavalariças em
barracões, empregando-se neles algumas madeiras aproveitáveis do
convento de Sá, já então demolido.
Recolheu o corpo ao seu quartel em 8 de Setembro de 1888.
Pelas senhoras de Aveiro lhe foi oferecida a bandeira ou estandarte, e a
festa do oferecimento e bênção teve lugar em 4 de Abril de 1886, dando à
noite a oficialidade um baile em obséquio ao infante D. Augusto que
tinha vindo inspeccionar o regimento.
Em 1 de Fevereiro de 1885, a sociedade do Clube ou Grémio
recreativo desta cidade tinha dado um baile em obséquio à oficialidade
do regimento.
O SENHOR DAS BARROCAS
O local onde se acha a capela desta invocação, fechado a
sul e nascente por grossos vaIados de silvas, conservando no largo
existente entre a estrada e a capela as paredes meio derrocadas da casa
da novena, e no sítio onde se acham, à esquerda de quem vai da estrada
para a mesma capela, únicas casas modestas mas alegres, as ruínas da
antiga casa, talvez a residência do ermitão ou sacristão da capela,
apresentava um aspecto tristonho, lúgubre até, sendo geralmente
considerado como sítio pesado, isto é, daqueles em que a supersticiosa
ignorância dos povos piamente acreditavam que se reuniam à meia noite as
bruxas e lobisomens. Era pelo menos perigoso, próprio para esperas e
roubos, por ser inteiramente desabitado, não
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havendo casa alguma da capela da Alegria até Esgueira. Todas as que
existem são de construção posterior à da estrada; e esta, decorridos
mais alguns anos será não estrada, mas uma rua, se o não é já, que há-de
ligar Esgueira a Aveiro.
Digamos agora alguma coisa da casa da novena. Nos tempos
áureos desta capela concorriam ali muitos romeiros, alguns de terras mui
distantes; vinham cumprir os seus votos ou oferendas e exercícios de
piedade, os quais costumavam durar por nove dias seguidos. Daí o
chamar-se-lhes novenas. E como o local era desabitado e deserto,
resolveram os administradores deste santuário edificar a casa que
ocupava a maior parte do largo entre a capela e a estrada, para nela se
abrigarem os romeiros. Não sei que divisões tinha, porque só lhe conheci
as paredes exteriores mas já derrocadas e abrigando um silvado. Tendo
esfriado esta devoção, foi a casa caindo em ruínas, assim como a do
ermitão; os fundos da capela, produto das esmolas dos devotos e que eram
avultadas, desapareceram pela forma por que outro tanto tem sucedido a
muitos estabelecimentos pios e de beneficência, e a capela teria tido a
sorte das casas se a Junta de Paróquia da Vera Cruz não houvesse tomado
a louvável resolução de olhar por ela, provendo à sua conservação. Pena
é que se não trate de restaurar os ornatos da porta principal; muito
deteriorados pela acção do tempo.
Consta que além desta romagem outra havia da qual era
objecto a imagem de Nossa Senhora das Areias, na costa de S. Jacinto.
Não me foi possível averiguar se a concorrência dos romeiros à capela do
areal era um anexo ou complemento da do Senhor das Barrocas, ou se era
diferente, isto é, sem ligação ou relação alguma com esta; mas que
existiu é de tradição, assim como que por essa ocasião todos os romeiros
costumavam banhar-se na ria, atribuindo a esse banho certas virtudes,
como ainda hoje acontece ao banho santo da noite de S. João no local do
Farol, Costa Nova, etc. Actualmente, porém, o banho santo é no mar,
enquanto o antigo era, como já disse, na ria, e no sítio chamado praia
de Lavacos, mas que eu ainda ouvi por muitos anos nomear com o acento
agudo na última sílaba.
Eis o que era o sítio das Barrocas; o que ele é hoje,
vê-se, escusando, portanto, encarecê-lo.
O que, porém, mais poderosamente contribuiu para os
melhoramentos de Esgueira, assim como para os do lugar de Sá, que era o
que já se disse, e que é hoje o que se vê, foram as obras públicas:
primeiramente a estrada de Aveiro a Esgueira, a primeira que se abriu
nos subúrbios desta cidade, depois de 1834; a sua construção e plantio
de oliveiras dos lados foi concluída em 18... Essas oliveiras, que aliás
produziram abundantemente nos primeiros anos, já não existem, tendo sido
arrancadas pela construção dos edifícios que hoje ornam aquela rua.
/
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Seguiram-se depois a estrada de Esgueira a Águeda, e de Esgueira a
Albergaria-a-Velha, ramificando-se em Angeja
para a vila de Estarreja. Veio finalmente o caminho de ferro, dando
lugar à construção da Estação e às três avenidas que dela partem, uma em
direcção ao quartel, que foi a primeira construída, outra por Arnelas,
afim de completar a estrada aberta desde o Rossio na cidade, até à
Estação, da qual já falámos, e a terceira, que vai da Estação ao passo
de nível na estrada de Esgueira.
Todas estas obras empregaram muitos braços, muitos
carros, e pagaram-se expropriações, e para o caminho de ferro algumas
bem caras, espalhando-se assim muito dinheiro, e animando-se os pequenos
cultivadores a adquirir gado e carros para o serviço de transportes, que
nunca lhes faltaram por alguns [anos] e que ainda hoje constituem um
auxílio valioso para esta classe de gente. Acresceu a isto tornar-se
geral o uso do leite, pois que eu ainda conheci por alguns anos haver em
Aveiro um único leiteiro, por alcunha o cabreiro da Quinta do Picado,
que vinha todos os dias a Aveiro, pela manhã, trazendo uma bilha de
folha, com algum leite que vendia a pouco mais de uma dúzia de
fregueses. E nem havia mais leite, nem quem o procurasse. Este homem,
sendo já de idade, aí pelo meado do século décimo nono, forneceu de
leite todos os seus fregueses durante um ano, gratuitamente, sem dar
razão do seu procedimento, atribuindo-se, porém, geralmente a
restituição imposta pelo seu confessor, em restituição da água com que o
leite vendido era baptizado. Pouco depois faleceu. Mas voltando a Sá e a
Esgueira, hoje não tem ali vacas de leite quem de todo as não pode ter.
E todo se gasta.
Além desta indústria, contribuiu também a da construção
de adobes em um areal pertencente à Junta da Paróquia de Esgueira, e bem
assim a outros proprietários. Neste trabalho não só se empregam muitos
braços, mas também muitos carros de bois, conduzindo adobes para esta
cidade e povoações vizinhas, e também para a Murtosa, sendo ali
fabricados todos os que têm sido empregados nas obras efectuadas nestas
localidades. Acresce a isto a condução de volumes que da Estação do
caminho de ferro vêm para a cidade, e a do sal, louças e outros produtos
que da cidade vão para a Estação, entre os quais não são menos
importantes os de peixe fresco que daqui se exporta e o salgado que se
importa quando há falta nas nossas costas.
É, pois, a José Estêvão Coelho de Magalhães que a cidade
deve o importantíssimo melhoramento de o caminho de ferro se aproximar
dela e não seguir pela linha que primitivamente lhe tinha sido marcada.
E, com efeito, ao caminho de ferro e à sua Estação às portas da cidade
que Aveiro e Esgueira devem a transformação completa pela qual têm
passado nestes últimos anos.
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Algumas famílias, assim de empregados públicos, assim como
principalmente de oficiais militares, pela proximidade em que lhes fica
o quartel, têm preferido viver em Esgueira, contribuindo assim para o
aumento da povoação pela construção de novas casas e melhoramentos de
algumas existentes.
Esgueira podia já considerar-se como parte da cidade; só
há a lamentar que não tenha sido ali introduzido o gás, assim como pela
estrada que de Aveiro a ela conduz, feito o que, entendemos que nada
faltaria para que aquela povoação fizesse parte da cidade para todos os
efeitos.
NOTÍCIA RESUMIDA DOS CONVENTOS, ETC.
Havia ou tinha a cidade, de freiras professas, o convento
de Jesus, (dominicanas); o convento das carmelitas descalças, com o
título de S. João Evangelista; e o da Madre de Deus, de Sá, de
fransciscanas da terceira Ordem. E de frades, tinha a cidade o convento
de S. Domingos cuja igreja é hoje paroquial; de franciscanos antoninhos
da província da Piedade, orago Santo António; e o de carmelitas
descalços, do título de Nossa Senhora do Carmo, cuja igreja é hoje do
Senhor dos Passos. Mais detidamente nos ocuparemos deles todos.
O orago do de S. Domingos era Nossa Senhora da
Misericórdia, cuja capela é do lado esquerdo, quem entra, a primeira. O
convento de S. Domingos percebia bens de raiz, além da quinta, na Fonte
Nova, chamada a Agra dos Frades, doação de um fulano Albuquerque, cujos
restos mortais se acham em um túmulo de pedra existente na igreja da
Glória, actualmente no primeiro altar da esquerda, quem entra. Percebiam
vinhas na Bairrada, marinhas de sal e outros bens, cujo rendimento lhes
proporcionava meios para viverem em abastança e ao mesmo tempo exercerem
a virtude da caridade. Este é o convento onde os frades gozavam de mais
liberdade; como só usavam das capas ou no coro nos dias em que a
liturgia assim o mandava, ou em actos solenes fora da igreja, saíam a
seus passeios ou visitas com um capote como os dos seculares e chapéu de
copa alta.
Os frades de Santo António e Carmo, e principalmente
estes, viviam mais recolhidos, menos quando saíam para pregar ou ao
peditório. No convento do Carmo era a disciplina mais rigorosa, o que
fazia com que os frades fossem muito menos comunicativos.
Esta solenidade que hoje se faz na igreja da Apresentação
pela irmandade do Senhor do Bendito, era feita naquele tempo no convento
do Carmo; era daqui que saía a procissão dos Passos, recebendo-se na
igreja de S. Miguel, da qual tinha ido dois dias antes para o Carmo a
imagem do Senhor em camarim
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cerrado. Em S. Domingos e Santo António eram convidadas a jantar nos
dias de festa dos respectivos patriarcas algumas pessoas da cidade,
entre as principais dela; no Carmo, porém, não havia isto.
No convento de S. Domingos havia sermões nos domingos de
Quaresma, Advento, além dos das festas da Ordem.
De freiras, o convento de disciplina mais rigorosa era o
das carmelitas; nem no coro se deixavam ver, pois que as ocultava um
cortinado junto das grades. Nas raras visitas que recebiam na grade, não
eram admitidas pessoas do sexo masculino, e havia uma freira que, oculta
aos visitantes, escutava toda a conversação entre estes e a freira ou
freiras visitadas, do que dava parte à Prelada. Era um cargo como
qualquer outro da casa, e chamado a escuta.
No convento de Jesus e no de Sá não havia estes
escrúpulos; não só recebiam as suas visitas nas grades, mas serviam de
chá e doce, tocava-se e cantavam-se modinhas à moda do tempo. O convento
de Sá, pela admissão de educandas, ou parentes ou estranhas, havia mais
relações com a cidade e a disciplina mais fácil, pois tendo janelas para
a rua, o que os outros conventos não tinham, a elas vinham com
frequência, demorando-se até a fazer algum trabalho ou leitura. Na
igreja de Sá fazia-se com todo o primor possível o ofício de trevas de
sexta-feira santa, concorrendo aí as principais famílias da cidade. Em
Jesus também se celebravam com grandeza os ofícios da semana santa, mas
a festa mais pomposa era a de Santa Joana Princesa, havendo tríduo,
constando de missa solene, com exposição do Santíssimo Sacramento,
sermões para os quais eram convidados os oradores de maior fama de
terras ainda as mais distantes, havendo enfim a procissão no terceiro
dia, à qual, assim como às festas precedentes, não faltavam as
principais pessoas da cidade e todas as autoridades. Os paramentos que
ainda se conservam e a rica armação de damasco de seda e outras
tapeçarias antigas e de valor eram objectos, como hoje são, que só
serviam naqueles dias.
Os frades de Santo António e os do Carmo, apesar de não
terem bens, viviam com abastança, em virtude das muitas esmolas que
recebiam, pão, vinho, carne de porco.
As comunidades de S. Domingos e Santo António davam-se
bem, visitavam-se, passeavam juntas e concorriam às festividades umas
das outras. Conviviam com a maior parte das pessoas e famílias da
cidade, com as quais trocavam presentes, aceitando-as nas suas celas e
obsequiando aí os parentes e amigos que as procuravam. Os prelados dos
dois conventos costumavam também presentear as autoridades e alguns
funcionários públicos e as pessoas amigas do convento, com travessas de
arroz doce nos dias festivos da casa, S. Domingos, S. Tomás, e outros.
Do mesmo modo procediam os frades de Santo António,
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mas os seus presentes consistiam em pés de porco, que colhiam no
peditório em abundância, pois que ninguém que matasse porco deixava de
reservar para os frades de Santo António ao menos um pé de porco ou uma
orelheira.
Em todos os conventos o tratamento era abundante, mas em
S. Domingos excedia as necessidades da alimentação. Aí, os frades tinham
cada um a sua mesa, não lhes eram apresentados os pratos para eles se
servirem, mas sobre ela se depunham diversos pratos em que eles de
ordinário não venciam, sendo os sobejos para os pobres, além da comida
que para eles especialmente se fazia, e para toda aquela gente das ruas
de Jesus, Rato e Fonte Nova, que quase toda vivia à custa dos dois
conventos dominicanos. Com efeito, ali havia o alfaiate, o barbeiro, o
sapateiro, a lavadeira, a engomadeira, e enfim as serventes do convento
das freiras e criados dos frades, havendo pessoas que eram
exclusivamente sustentadas por uma daquelas casas religiosas.
Em S. Domingos, quando havia doce de prato, o que era
frequente, ministrava-se a cada frade em uma tigela nova de barro
vermelho, de Ovar, contando-se já que o não comeria, para assim poder
dispor dele. Se havia frutas, tinha cada um deles um prato com três ou
quatro maçãs, peras, etc. E assim o mais, de maneira que o frade, a
sobremesa que não comia, recolhia-a para a gaveta da mesa, donde ia ter
à cela, e com isso brindava o rapaz que lhe engraxava os sapatos, que
lhe fazia recados, ou a dava de esmola a quem queria.
Se um frade tinha hóspedes, ou se por ocasião do jantar
tinha visitas de alguns parentes ou amigos, oferecia-lhes de jantar, e
aceito que fosse este oferecimento, não tinha mais que dar parte ao
prior do convento do motivo por que não ia ao refeitório, e, ao
dispenseiro, para pôr o jantar no refeitório dos hóspedes. Por dúvida,
seria preciso acrescentar para duas pessoas a quantidade que ao frade
tinha de ser reservada. Na quinta-feira, o jantar era um banquete; ao
contrário, no dia imediato apenas se encontrava no refeitório um pão, um
copo de água, e um prato com um ramo de funcho, que era de costume
trilhar entre os dentes. Alguns havia que observavam este jejum; outros
porém, lá tinham na cela o jantar que mandavam preparar fora do
convento, especialmente os que tinham de pregar ou cantar, porque os
ofícios de sexta-feira santa eram ali celebrados com o maior luzimento,
havendo procissão do enterro do Senhor que apenas percorria a rua de
Jesus, voltando pela rua do Rato.
Nos outros dois conventos de frades apenas havia na
quinta-feira santa a exposição do Santíssimo Sacramento, porque além do
prelado e de algum frade velho, todos os mais se achavam ausentes pelas
diversas freguesias da comarca, como pregadores, cantores ou
professores, pois que naquele tempo era
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uma raridade subir ao púlpito um clérigo secular. Eram os frades que
pregavam todos os sermões, cujas esmolas, assim como a das missas que
diziam, eram todas para o convento, isto no Carmo e Santo António,
enquanto em S. Domingos só havia a obrigação dos sermões da casa e das
missas de legados a que ela era obrigada. Das mais missas que dissessem
e dos sermões que por fora pregassem, nada eram obrigados a dar ao
convento.
Na igreja de S. Domingos havia todos os dias, ao romper
da alva, a missa do Rosário, cantando o povo alternadamente o terço. Em
Santo António um frade fazia exorcismos à porta do convento, aos quais
concorriam as mulheres doentes ou que como tais se julgavam; poucos
homens, sendo a maioria principalmente de mulheres das freguesias da
Murtosa, Bunheiro, Veiros, etc. Este serviço era feito gratuitamente,
recebendo somente as esmolas voluntárias de quem queria dar-lhas.
A todos os frades dava a casa tabaco ou rapé, e não havia
um só que não trouxesse na manga a sua caixa para oferecer, donde nasceu
o aforismo de se chamar a uma pitada de rapé pêga de frade.
Além das esmolas que nos tempos próprios pediam pelas
terras até onde iam em peditório, tiravam os conventos do Carmo e de
Santo António esmola pela cidade, um dia por semana, aceitando dinheiro,
pão, enfim tudo o que lhes dessem, e um leigo de Santo António, recebida
a esmola, apresentava logo a caixa a oferecer rapé a quem lha dava,
dizendo: − agora uma pitadinha, donde lhes resultou o nome de freires
pitadinhas.
Os frades do Carmo não eram tão populares nem tão
relacionados com as pessoas da cidade nem tão liberais; viviam mais
concentrados, e com efeito, a regra era ali mais rigorosamente
observada; não saíam senão a dois, excepto quando iam fora da terra,
tendo cavalgaduras que os conduzissem, mas os de Santo António andavam
sempre a pé.
Como já temos dito, a igreja do convento de S. Domingos é
hoje paroquial, Nossa Senhora da Glória; a igreja do Carmo é hoje sede
da antiga irmandade de Nosso Senhor dos Passos; e finalmente, a igreja
de Santo António ainda hoje existe, unida hoje à capela dos Terceiros da
mesma Ordem.
O convento de S. Domingos e a respectiva cerca, parte da
qual é hoje cemitério público desde 1835, abrangia um quarteirão,
formado a norte e nascente por uma rua sem casas, que partindo do ponto
onde hoje está o portão para o cemitério, ia sair no largo da Fonte
Nova, achando-se por nascente ocupada parte desta rua pelos jazigos do
cemitério, a poente pela Corredoura, e a sul pela rua e largo da Fonte
Nova, por onde havia umas pequenas casas que não pertenciam ao convento.
O convento do Carmo, contíguo à igreja pelo lado do
nascente e sul, era de todos o mais acanhado, existindo dele apenas
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[Vol. VI − N.º 24 – 1940] a sacristia e algumas casas de
arrecadações da irmandade a que já nos referimos.
O de Santo António ainda existe quase todo, como no tempo
em que era habitado pelos frades, porque não foi vendido como o foram os
outros dois, sendo entregue ao Ministério da Guerra para hospital
militar.
Adiante se juntarão memórias relativas ao nome e número
dos frades que habitavam nestes conventos, aos seus respectivos
rendimentos, com outras notícias que lhes digam respeito.
Constava que a cerca do convento de S. Domingos fora
antigamente um largo público, chamado o Campo, onde se faziam os alardos
da milícia popular (interinamente ordenanças), e que os frades obtiveram
este largo da Câmara, com obrigações de terem sempre no seu convento um
professor de Filosofia, como efectivamente tiveram até aos fins do
século XVIII, rareando e acabando por fim a frequência pela criação das
escolas de Latim, Lógica, e Retórica no tempo do marquês de Pombal. O
último frade professor desta cadeira foi o padre mestre frei João Pinto
de Queiroz, tio de quem isto dita, assim como de quem isto escreve, e
ele mesmo sobrinho de outros dois frades da Ordem, muito considerados,
frei João e frei Francisco Pinheiro de Queiroz.
CAPITANIA-MOR DE ORDENANÇAS
Tinha a cidade capitania-mor de ordenanças com quatro
companhias correspondentes às quatro freguesias: uma em S. João de Loure,
outra em Albergaria-a-Velha, outra em Lamas do Vouga, havendo mais a
anomalia de pertencer à companhia de S. Miguel, de Aveiro, o lugar da
Taipa, freguesia de Eirol ou Requeixo (Fim
do texto manuscrito).
JOSÉ FERREIRA DA CUNHA E SOUSA
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