Para o doutor Fernando
Magano, o ilhavense ilustre cuja alma, compreensivamente, sabe viver e sentir estes escritos.
MUITOS têm sido os motivos porque
quase desapareceram das paredes enegrecidas dos prédios antigos, das encruzilhadas tortuosas dos caminhos e das margens alagadiças dos nossos rios,
esses curiosos, e já hoje raros, exemplares da iconografia popular, de
tão bizarra
e original factura em seus interessantes detalhes, alguns, até,
comoventes nas legendas que os acompanhavam, mas que bem traduziam e
revelavam a índole bondosa do nosso povo, o seu respeito absoluto pelos
ingénuos símbolos das misérias alheias e tragédias humanas, e, mais do
que tudo, o seu acrisolado sentimento religioso, que lhe iluminava os
espíritos, afervorava as almas e dulcificava os corações sem mácula,
puros, e sãos.
Quase todos aqueles se perderam na voragem dos tempos e reforma dos
costumes, que fizeram diluir no ingrato esquecimento da gente de hoje os
ecos da tradição popular, quiçá apagando até, com indiferença
lamentável, os vestígios de tanta coisa linda e curiosa de que éramos detentores, e que os nossos
avós haviam guardado com avareza e carinho.
Infelizmente, assim tem sucedido, e o mal já sem remédio,
cada vez mais se há-de avolumar.
A mim, confesso-o com amargura e tristeza, doe-me
esse criminoso
alheamento de muitos pelos usos, costumes e dizeres de outrora, tantos
deles que eu ainda conheci e observei, e que, talvez por isso mesmo,
tenho recordado nos meus escritos, procurando salvá-los dum esquecimento
mais do que certo, e para que assim possa ficar um registo insuspeito
que sirva de
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elemento subsidiário para trabalho de maior fôlego, e tentando,
mesmo, dar à gente moça da minha terra uma visão, mais ou menos nítida,
das velhas e caducas usanças caseiras, de tão pronunciado sabor local.
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De sobra eu sei que a
leitura dos meus propósitos representa, o mais das vezes, uma dura penitência, e não menor
sacrifício, para os novos deste
tempo que, possivelmente, me leiam.
Mas que importa isso?
Já agora, hei-de morrer com este jeito e feitio. É que,
para mim, recordar o que já
lá vai, resulta sempre num
refrigério consolador para
os meus aborrecimentos e
dissabores, porque isso me
alaga o coração, entrementes deprimido, de saudosas lembranças por tanta coisa interessante que
os meus
olhos viram e o meu espírito sentiu com alegria.
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«ALMINHAS» - Baixo-relevo de
madeira policromada |
Coisas há, até, que eu
em verdes anos presenciei,
e que a cada passo me surgem no pensamento, sentindo
um grande prazer espiritual
quando delas falo ou escrevo.
E vem-me, então, à baila,
pessoas, acontecimentos e
anedotas doutros tempos,
ignorados por muitos, que eu descrevo como posso e sei.
Ainda há pouco, em conversa, contei, por acaso, o que
eram as populares e ruidosas festas a S. Pedro, que outrora se
realizavam em Ílhavo, pelos pescadores das companhas da Costa
Nova e S. Jacinto, afamadas pelos seus arraiais barulhentos, com seus bailes de roda:
− a Caninha verde, o Triste Malhão, a Ciranda, o Regadinho, o
Verde Gaio, e tantas outras, ali dançadas, numa alegria doida, por vários ranchos de pescadeiras de
carnes rijas e olhos em brasa, chapelinhos de veludo presos à
nuca por garridos lenços de merino, chambres brancos de
pregas bem afogados aos colos, e rodados saiotes de baeta vermelha,
rentinhos ao artelho.
No dia da festa, realizava-se a falada procissão, que enchia
as ruas de gente a ver os pitorescos e originais andores, com
pequenas reproduções de barcos do mar, de tão caprichoso
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feitio e decoração, levando dentro, em minúsculas esculturas,
os santos Apóstolos por campanha, e o calvo S. Pedro, em jeito
de lançar a rede ao mar, presa à bica da ré pela corda do roçoeiro.
Que de bulício e alegria se espalhava por aí, e que satisfação e azáfama não ia em casa dos mordamos, a cujas portas, por insígnia, se erguiam
grandes mastros ornamentados a ramos de buxo e
tramagueiras, encimados por enormes bandeiras de mariato, todo o chão,
em redor, juncado de espadana verde e erva doce florida e cheirosa; a
casa, bem aberta e
franqueada para todos. Lá dentro, as sacadas de pão de coroa do Vale de
Ílhavo, por ali à revelia; sobre a
tampa larga do escabelo de castanho, grandes picheiras de vinho maduro,
de cor baça que nem a tinta grossa
do campeche de encascar as redes na borda do mar, e que todos bebiam à
tripa forra, por grandes canecas da olaria churra e barata, de Ovar. |
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«ALMINHAS» - Esculpidas em madeira |
E que de abraços e vivas rasgados aos briosos mordomos, aos senhores arrais,
aos escrivães das campanhas e, até, aos revezeiros da proa!
Pois então?
Era assim mesmo.
Eu lembro-me muito bem de tudo isso, dessas bacanais
inconcebíveis, semi-pagãs, que davam brado na terra, e não poucas vezes
rija pancadaria.
E ainda me recordo, também − os anos que já lá vão!
−
das frias noites de inverno em que, por horas mortas, se acordava
estremunhado ao ouvir o canto monótono dos que lá fora
na rua, e junto às casas em silêncio, discretamente alumiados
por uma mortiça lanterna, andavam em seu piedoso voto praticando o velho costume de lamentar as almas, entoando uma ladainha arrastada e chorosa, rogando a Deus misericórdia para com as
almas em sofrimento no fogo do Purgatório.
Naquele triste e penoso fadário, que uma grande devoção
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animava, calcorreavam as ruas e becos tortuosos e lamacentos
da vila, de pés descalços e em cabelo, embrulhados nos seus
coçados gabões de áspero burel, deslizando como sombras, e
rezando como monges ou freiras em oração e êxtase divino.
Dentro das casas, dessas casitas velhas e acanhadas, mas
sempre limpas e caiadinhas de branco, acendiam-se à pressa as
candeias de azeite, que se penduravam nos postigos, por devoção e respeito, e todos ali respondiam às rezas dos de cá de fora.
A lamentação extinguia-se por fim, ante o tilintar discreto
duma campainha, e os da confraria retiravam lentamente,
murmurando rezas baixinho.
A dolorosa impressão que aquilo me causou, certa noite,
quando, por curiosidade, quis seguir aqueles homens nos seus
passos, para ver os seus rostos, ouvir os seus cânticos, ajoelhar,
como eles, no chão frio e húmido, e acompanhá-los, comovido,
em suas rezas!
Ainda bem que assim foi, de contrário eu não poderia contar-vos o que aí fica.
O que não posso já é reproduzir aqui o texto das suas litanias..
A música, essa, sei-a, porque nunca mais a esqueci. Era assim:
Não menos interessante, e muito típico, era o velho e piedoso costume do rezar do
terço, em coro, pelo tempo santo,
que, em Ílhavo, se praticava todos os anos e em diferentes
locais da vila, de preferência nos bairros mais populosos, como
sejam o Arnal, o Pedaço, a Malhada, e outros, onde só habitavam famílias que viviam da faina do mar.
Nesses actos, tomavam parte somente mulheres, e
quase todas pescadeiras.
A reza do terço fazia-se ao ar livre, já noite fechada, e em
pequenos largos, ou nos becos mais desafogados da terra, com
o mulherio acocorado sobre os rebates e poiais de pedra vermelha, saliências de alicerces das casas velhas, de telha valadia,
com seus postigos de gonzos sem vidros.
Eram poucas? Eram muitas? Eram todas aquelas do sítio,
com propósito e devoção que quisessem tomar parte na oração
de resgate.
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Formavam, então, dois numerosos grupos, um de cada lado do recinto, bem
embrulhadas em seus mantéus de pano fraldilha, por muitas delas
habilidosamente tecido nos seus rangedores teares.
Certas havia, pobres de Cristo, que, para aproveitarem o tempo, para ali
traziam as canastras da rede das artes e das chinchas, e nelas
trabalhavam, mesmo às escuras, com grande desembaraço, fazendo cantar a
agulha de rijo buxo no estreito muro que regula a malha, polido e
lustroso pelo uso constante de largos anos.
Pois se elas, as pobrezinhas
sem eira nem beira, e, quantas e quantas, viúvas sem arrimo algum, tanto
precisavam de trabalhar...
Outras, com invejável ligeireza, fiavam a lã churra e trigueira que, haviam comprado na feira do bispo, da Vista Alegre, para depois tecerem as mantas de farrapos, às listas, os seus
cobertores de inverno, e fazerem as meias grossas de agasalho
para os seus homes.
Ó admiráveis e simpáticas mulheres da minha terra! Como eu vos admiro na
constância perene da vossa virtude, que vos dignifica e exalta; no
vosso amor e dedicação pelo trabalho, que vos alenta e engrandece; na
vossa indómita coragem
perante tantas desgraças que, às vezes, vos ferem! Ó vítimas
sofredoras e resignadas dessas horríveis e pavorosas tragédias
marítimas, que vos acabrunham e envelhecem prematuramente, que vos ferem
e desgraçam, roubando-vos os homens e os filhos, únicos amparos e
riquezas, e vós tudo sofrendo e chorando sem uma blasfêmia de revolta,
sem um anátema de protesto
nos lábios vincados pela dor, e tantas vezes mirrados pela fome!
Como eu vos admiro!
O que diziam, então, essas piedosas mulheres de há
quase
meio século, quando pelas noites frias e nevoeirentas do tempo santo,
desferiam os seus cânticos religiosos tão magoados e
sentimentais? O que diziam elas?
Também já não me lembro. Do estribilho, recordo-me
ainda bem. Era este:
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Quem souber ler esses breves compassos, há-de achar-lhes, estou certo
disso, bucolismo e encanto. Os leigos em música podem acreditar em mim.
Aquilo era incontestavelmente lindo e enternecedor, lembrando cânticos
litúrgicos de igreja ou salmos religiosos de claustro.
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Eu não os esquecerei jamais, velhinho que eu chegue a
ser, porque a sua ressonância vive a cada instante nos meus ouvidos,
como se fora o marulho embalador das ondas nas
entranhas vibratórias dum búzio ou concha do mar, acordando o meu
sentimento, robustecendo a minha inspiração, e parecendo dizer-me num
anseio atribulado, que não os esqueça... que não os esqueça...
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«ALMINHAS» - Modeladas em barro vermelho e policromadas |
Estas saudosas recordações, sempre tão agradáveis
para mim, porque de Ílhavo
sou e aqui desejo findar meus dias, fizeram-me desviar, sobremodo, do
principal
assunto desta crónica, − as Alminhas da devoção popular, que dantes se encontravam por aí com frequência, assinalando desastres, tragédias, e até crimes praticados
nos locais em que elas se mostravam.
Em Ílhavo, terra de gente bastante supersticiosa,
mas crente, que roga pragas
e injúrias no mar, mas reza a Deus com devoção quando em terra, que crê
em bruxas e duendes, mas exalta e agradece generosamente os milagres dos
santos; em Ílhavo, existiam muitos desses retábulos, uns pintados a
óleo, outros entalhados em madeira; outros, modelados com certo jeito em
barro vermelho da região.
Perderam-se muitos deles, mas, felizmente, foi possível recolher alguns,
que reproduzimos aqui pela gravura, no Museu Municipal desta terra,
salvando-os da fúria demolidora dos maus,
e dos insultos irreverentes dos ignorantes.
Ainda bem!
Ílhavo,
Julho de 1940.
DENIZ GOMES
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