André dos Reis, Costumes de Aveiro. As Entregas, Vol. VI, pp. 155-159..

 

COSTUMES DE AVEIRO

 

AS ENTREGAS

SOPRA, lá fora, agreste ventania...

De quando em quando, grossas bátegas fustigam impiedosamente as janelas de nosso gabinete de trabalho, através das quais gozamos, diariamente, o panorama vastíssimo da Ria, tão linda, tão majestosa; habitualmente calma, serena, mas que, nesta hora, se agita e encrespa.

As ribeiras avolumam-se; os rios, avançando caudalosos, em ziguezagues, por entre as fragas e penedias, defluem vertiginosos e, trasbordando, alagam os campos e as marinhas.

Diz um velho adágio que mal vai a Portugal, se não há duas cheias, antes do Natal.

No presente inverno, não houve qualquer cheia durante aquele período, mas uma veio depois e muito a tempo...

O ano de 1939 foi pródigo em chuvas, e, se o rifão verdadeiro é, esperar devemos que o de 1940 − o dos centenários − seja farto e abundante.

De frio, por cá, algum temos sentido.

Mas em Aveiro − oh, torrão bendito! − nem calores excessivos, nem frio de enregelar.

Nesta quadra, se não fruímos uma temperatura, que classificar-se possa de amorável e doce, também não lhe podemos aplicar o qualificativo de arrepiante.

Embora não soframos as asperezas do enregelamento que faz tremer o frio em cada membro, quem nos dera já naquela estação em que

«As aves namoradas
dos floridos ramos penduradas
saltitam contentes pelas campinas
e veigas, quando
já abre a bela Aurora
com nova luz, as portas do Oriente
e mostra a linda Flora
o prado mais contente,
vestido de boninas
aljofradas de gotas cristalinas.»

/ 156 /

No momento, em que esta começámos a rabiscar aqui, estralejava o foguetório em diversos pontos citadinos.

Foi pela temporada natalícia que, em Aveiro, é muito festiva.

Na verdade, desde o Natal até a Epifania, o nosso povo vive dias felizes; dias plenos duma alegria sã − essa alegria tão característica da alma portuguesa.

É o tempo das tradicionais entregas.

Os leitores, que nunca estiveram neste rincão da Beira-Mar durante a época do Natal, perguntarão o que é uma entrega.

Cumpre-nos, pois, elucidá-los e a isso não nos furtaremos para que fiquem conhecendo uma velha e típica usança local:

Em Aveiro, terra genuinamente patriótica e nitidamente democrática, o que não briga com a religiosidade, existem legalmente erectas, entre outras, as irmandades do S. S. das freguesias de Vera-Cruz e da Glória; a do Senhor do Bendito, muito querida dos nossos pescadores, e a do Senhor Jesus Crucificado.

A estas quatro confrarias incumbe a celebração das principais festividades litúrgicas do ano, as quais, como é fama, aqui se realizam com desusada imponência.

Compõe-se cada uma das citadas irmandades do S. S. de oito mordomos; a do Senhor do Bendito dum número variável, nunca inferior a 16, e a última de 20. Em todas elas há, além dos falados mordomos, quatro cargos... − o de juiz ou cargo maior e os três menores que, por ordem de precedência, são o de escrivão, tesoureiro e mordomo do altar.

Segundo as leis estatutárias destas agremiações, para que delas se possa fazer parte, é necessário receber o ramo e só pode receber o de cargo maior quem já tiver servido de escrivão, tesoureiro ou mordomo do altar e, por sua vez, para o exercício de qualquer dos cargos menores, imprescindível é haver recebido o ramo de simples mordomo.

A antiguidade da inscrição na confraria constitui preferência para o desempenho de qualquer cargo.

A renovação das mencionadas irmandades é feita, respectivamente, em 26 e 27 de Dezembro; no dia de Ano-Bom e no primeiro domingo depois do 1º de Janeiro.

É nestes dias que se efectuam as entregas.

A entrega é um cortejo misto de religioso e de profano.

Terminada a missa solene, a grande instrumental, os mordomos e cargos, que nos indicados dias terminam a sua missão, enfileiram-se a dois e dois, revestidos de suas opas de seda encarnada e borlas de ouro, e vão, a passo ordinário, empunhando ramos, que têm laços de fitas pendentes, também de seda e cores variadas, percorrer processionalmente as ruas da cidade, acompanhados duma banda de música e de muito povo.

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A Irmandade do «Senhor Jesus Bendito», com sede na igreja paroquial da freguesia da Vera-Cruz, saindo do templo, em 1 de Janeiro de 1921, e preparando-se para, incorporada, ir proceder à entrega dos ramos. (pág. 157)

/ 157 / Dirigem-se das igrejas paroquiais a outros templos ou à porta de certa residência, onde a pessoa, que tem de receber o ramo, aguarda, com a família e amigos, o alegre cortejo e o instante da cerimónia. Na dianteira da florida procissão, a garotada, aos / 158 / pulos, conduz acesos alguns morrões, feitos de trapo, e com o seu assobiar estridulante acompanha a peça, que a filarmónica executa, quase sempre uma composição tirada das revistas teatrais mais em voga.

Quer o ramo seja aceito na igreja, quer à porta, a cerimónia é sempre a mesma.

Chegada a irmandade, o parceiro entregador avança e ajoelha sobre uma almofada de cetim, seda ou veludo, e, beijando a passadeira do laço de fita pendente, depõe o ramo nas mãos do aceitante que, também ajoelhado, por sua vez beija aquela, passando, em seguida, o ramo entregue, à mulher, filha ou irmã que, muito de propósito, ficou colocada a seu lado para suster aquele, enquanto o marido ou irmão, já de pé, abraça todos os confrades cessantes.

Grandes e pequenos; nobres e plebeus; ricos e pobres se confundem, por instantes, num apertado amplexo.

A fina mão aristocrática não se envergonha de sentir então, junto da sua epiderme impressionável, a mão calosa do trabalhador de enxada.

É o lado democrático da festa. Durante a cena, a música não tem cessado de tocar; por momentos o templo, se o ramo é entregue na igreja, transformou-se em praça pública...; o aranzel e balbúrdia, que nela vão, são enormes e, cá fora, entram a funcionar os morrões do rapazio, atiçando a foguetada com que os amigos do aceitante atroam os ares.

Outros rapazitos, sempre de nariz no ar, andam em correrias, dum lado para o outro, afim de apanharem os rabos que vão caindo. Não raro se engalfinham, saindo os mais fracos com as ventas esmurradas, em consequência da luta.

Terminado nesta igreja o cerimonial da entrega, reorganiza-se o préstito, indo a mesma cena repetir-se em outros templos até estarem entregues todos os ramos. Em casa do parceiro, que aceitou, está preparado um altarzinho onde, ao lado da imagem do Crucificado e entre flores e luzes, é posto numa jarra o ramo recebido.

Quando a entrega se faz à porta − o que presentemente é raríssimo − o limiar desta é juncado e tapetado e toda a casa do novo parceiro encontra-se enfeitada com palmeiras e outras plantas ornamentais.

Entre parêntesis: − É do estilo enviar o parceiro, que entrega ao que recebe, um presente de doce e, na véspera à noite, ir queimar-lhe uma ou duas dúzias de foguetes, em frente da casa de habitação, depois do que entra e ceia com ele e com a família.

O novo parceiro deve, segundo a praxe, oferecer um banquete ao que lhe entregou o ramo, bem como a todas as pessoas que lhe enviaram presentes por motivo da recepção.
/ 159 / Fechado o parêntesis, prossigamos: Pelas três horas da tarde, terminou a entrega.

Às seis, os antigos mordomos reúnem-se, de novo, no adro da igreja matriz e, enfiados nos seus gabões, faixas brancas à cintura, e barretes encarnados nas cabeças, aí se vão à luz dos archotes, que a garotada conduz, acompanhados de muitos populares e da filarmónica, cumprimentar os novos confrades. Cada um sobraça, pelo menos, a sua dúzia de foguetes que são queimados às portas daqueles a quem os ramos foram entregues. Em seguida, mordomos e filarmónicos são convidados a entrar.

O parceiro, que aceitou, tem disposta na sala principal a mesa dos mordomos sobre a qual, coberta de fina toalha, se encontram os belos manjares brancos; lampreias-doces; ovos-moles e em fio; pão-de-ló e pasteis de nata; queijadinhas de Sintra; belharacos; rabanadas; travessas de leite creme, aletria e arroz-doce, etc., etc., à mistura com vinhos generosos e finos licores.

Lá dentro, em outra sala, fumegam nas travessas o fiel-amigo cozido com batatas, o saboroso arroz de capatão ou a bela pescada, tudo pronto a ser regado com o trepador bairrada.

É a mesa da música, que come e bebe à tripa forra.

De vez em quando, a filarmónica rompe com qualquer trecho popular e tudo, ainda os mais sisudos, ri, folga, brinca e dança. A certa altura, escusado será dizê-lo, ninguém se entende. Os amigos do novo mordomo vêm cumprimentá-lo, queimando até à madrugada dúzias e dúzias de foguetes em frente da casa e, invadindo-a, lá se pregam à mesa, comendo e bebendo como verdadeiros alarves.

menino que por si destrói o que daria para dez.

No dia do recebimento do ramo, quem menos governa em casa é o dono dela.

Imagine-se, pelo que dizemos, o lindo estado em que se encontrarão os velhos mordomos e os filarmónicos, depois de terem percorrido todas as casas.

Os executantes musicais hão perdido a embocadura e a irmandade, essa, por sua vez, já tem mudado de nome... é a confraria de S. Martinho.

A apresentação das mesas dos mordomos, como atrás descrevemos, dava-se no tempo em que a libra ouro corria no mercado a 4$500 e o ramo era entregue à porta, o que arruinou muitas casas mais modestas, com sucessivos recebimentos de ramos e correspondentes despesas. A desvalorização da moeda, o encarecimento da vida e os abusos dos comilões fizeram com que, hoje, os ramos sejam quase todos recebidos na igreja, o que sempre dispensou e dispensa maiores encargos.

As entregas de ramos, actualmente, porém, não são mais do que um pálido reflexo do que foram em áureos tempos.

ANDRÉ DOS REIS

 

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