SOPRA, lá fora, agreste
ventania...
De quando em quando, grossas
bátegas fustigam impiedosamente as janelas de nosso gabinete de
trabalho, através das quais gozamos, diariamente, o panorama vastíssimo
da Ria, tão linda, tão majestosa; habitualmente calma, serena, mas que,
nesta hora, se agita e encrespa.
As ribeiras avolumam-se; os
rios, avançando caudalosos, em ziguezagues, por entre as fragas e
penedias, defluem vertiginosos e, trasbordando, alagam os campos e as
marinhas.
Diz um velho adágio que mal
vai a Portugal, se não há duas cheias, antes do Natal.
No presente inverno, não
houve qualquer cheia durante aquele período, mas uma veio depois e muito
a tempo...
O ano de 1939 foi pródigo em
chuvas, e, se o rifão verdadeiro é, esperar devemos que o de 1940 − o
dos centenários − seja farto e abundante.
De frio, por cá, algum temos
sentido.
Mas em Aveiro − oh, torrão
bendito! − nem calores excessivos, nem frio de enregelar.
Nesta quadra, se não fruímos
uma temperatura, que classificar-se possa de amorável e doce, também não
lhe podemos aplicar o qualificativo de arrepiante.
Embora não soframos as
asperezas do enregelamento que faz tremer o frio em cada membro, quem
nos dera já naquela estação em que
«As aves namoradas
dos floridos ramos penduradas
saltitam contentes pelas campinas
e veigas, quando
já abre a bela Aurora
com nova luz, as portas do Oriente
e mostra a linda Flora
o prado mais contente,
vestido de boninas
aljofradas de gotas cristalinas.»
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No momento, em que esta
começámos a rabiscar aqui, estralejava o foguetório em diversos pontos
citadinos.
Foi pela temporada natalícia
que, em Aveiro, é muito festiva.
Na verdade, desde o Natal
até a Epifania, o nosso povo vive dias felizes; dias plenos duma alegria
sã − essa alegria tão característica da alma portuguesa.
É o tempo das tradicionais
entregas.
Os leitores, que nunca
estiveram neste rincão da Beira-Mar durante a época do Natal,
perguntarão o que é uma entrega.
Cumpre-nos, pois,
elucidá-los e a isso não nos furtaremos para que fiquem conhecendo uma
velha e típica usança local:
Em Aveiro, terra
genuinamente patriótica e nitidamente democrática, o que não briga com a
religiosidade, existem legalmente erectas, entre outras, as irmandades
do S. S. das freguesias de Vera-Cruz e da Glória; a do Senhor do
Bendito, muito querida dos nossos pescadores, e a do Senhor Jesus
Crucificado.
A estas quatro confrarias
incumbe a celebração das principais festividades litúrgicas do ano, as
quais, como é fama, aqui se realizam com desusada imponência.
Compõe-se cada uma das
citadas irmandades do S. S. de oito mordomos; a do Senhor do Bendito dum
número variável, nunca inferior a 16, e a última de 20. Em todas elas
há, além dos falados mordomos, quatro cargos... − o de juiz ou cargo
maior e os três menores que, por ordem de precedência, são o de
escrivão, tesoureiro e mordomo do altar.
Segundo as leis estatutárias
destas agremiações, para que delas se possa fazer parte, é necessário
receber o ramo e só pode receber o de cargo maior quem já tiver servido
de escrivão, tesoureiro ou mordomo do altar e, por sua vez, para o
exercício de qualquer dos cargos menores, imprescindível é haver
recebido o ramo de simples mordomo.
A antiguidade da inscrição
na confraria constitui preferência para o desempenho de qualquer cargo.
A renovação das mencionadas
irmandades é feita, respectivamente, em 26 e 27 de Dezembro; no dia de
Ano-Bom e no primeiro domingo depois do 1º de Janeiro.
É nestes dias que se
efectuam as entregas.
A entrega é um cortejo misto
de religioso e de profano.
Terminada a missa solene, a
grande instrumental, os mordomos e cargos, que nos indicados dias
terminam a sua missão, enfileiram-se a dois e dois, revestidos de suas
opas de seda encarnada e borlas de ouro, e vão, a passo ordinário,
empunhando ramos, que têm laços de fitas pendentes, também de seda e
cores variadas, percorrer processionalmente as ruas da cidade,
acompanhados duma banda de música e de muito povo.
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A
Irmandade do «Senhor Jesus Bendito», com sede na igreja paroquial da
freguesia da Vera-Cruz, saindo do templo, em 1 de Janeiro de 1921, e
preparando-se para, incorporada, ir proceder à entrega dos ramos.
(pág. 157) |
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Dirigem-se das igrejas paroquiais a outros templos ou à porta de certa
residência, onde a pessoa, que tem de receber o ramo, aguarda, com a
família e amigos, o alegre cortejo e o instante da cerimónia. Na
dianteira da florida procissão, a garotada, aos
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pulos, conduz acesos alguns morrões, feitos de trapo, e com o seu
assobiar estridulante acompanha a peça, que a filarmónica executa, quase
sempre uma composição tirada das revistas teatrais mais em voga.
Quer o ramo seja aceito na
igreja, quer à porta, a cerimónia é sempre a mesma.
Chegada a irmandade, o
parceiro entregador avança e ajoelha sobre uma almofada de cetim, seda
ou veludo, e, beijando a passadeira do laço de fita pendente, depõe o
ramo nas mãos do aceitante que, também ajoelhado, por sua vez beija
aquela, passando, em seguida, o ramo entregue, à mulher, filha ou irmã
que, muito de propósito, ficou colocada a seu lado para suster aquele,
enquanto o marido ou irmão, já de pé, abraça todos os confrades
cessantes.
Grandes e pequenos; nobres e
plebeus; ricos e pobres se confundem, por instantes, num apertado
amplexo.
A fina mão aristocrática não
se envergonha de sentir então, junto da sua epiderme impressionável, a
mão calosa do trabalhador de enxada.
É o lado democrático da
festa. Durante a cena, a música não tem cessado de tocar; por momentos o
templo, se o ramo é entregue na igreja, transformou-se em praça
pública...; o aranzel e balbúrdia, que nela vão, são enormes e, cá fora,
entram a funcionar os morrões do rapazio, atiçando a foguetada com que
os amigos do aceitante atroam os ares.
Outros rapazitos, sempre de
nariz no ar, andam em correrias, dum lado para o outro, afim de
apanharem os rabos que vão caindo. Não raro se engalfinham, saindo os
mais fracos com as ventas esmurradas, em consequência da luta.
Terminado nesta igreja o
cerimonial da entrega, reorganiza-se o préstito, indo a mesma cena
repetir-se em outros templos até estarem entregues todos os ramos. Em
casa do parceiro, que aceitou, está preparado um altarzinho onde, ao
lado da imagem do Crucificado e entre flores e luzes, é posto numa jarra
o ramo recebido.
Quando a entrega se faz à
porta − o que presentemente é raríssimo − o limiar desta é juncado e
tapetado e toda a casa do novo parceiro encontra-se enfeitada com
palmeiras e outras plantas ornamentais.
Entre parêntesis: − É do
estilo enviar o parceiro, que entrega ao que recebe, um presente de doce
e, na véspera à noite, ir queimar-lhe uma ou duas dúzias de foguetes, em
frente da casa de habitação, depois do que entra e ceia com ele e com a
família.
O novo parceiro deve,
segundo a praxe, oferecer um banquete ao que lhe entregou o ramo, bem
como a todas as pessoas que lhe enviaram presentes por motivo da
recepção.
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Fechado o parêntesis, prossigamos: Pelas três horas da tarde, terminou a
entrega.
Às seis, os antigos mordomos
reúnem-se, de novo, no adro da igreja matriz e, enfiados nos seus
gabões, faixas brancas à cintura, e barretes encarnados nas cabeças, aí
se vão à luz dos archotes, que a garotada conduz, acompanhados de muitos
populares e da filarmónica, cumprimentar os novos confrades. Cada um
sobraça, pelo menos, a sua dúzia de foguetes que são queimados às portas
daqueles a quem os ramos foram entregues. Em seguida, mordomos e
filarmónicos são convidados a entrar.
O parceiro, que aceitou, tem
disposta na sala principal a mesa dos mordomos sobre a qual,
coberta de fina toalha, se encontram os belos manjares brancos;
lampreias-doces; ovos-moles e em fio; pão-de-ló e pasteis de nata;
queijadinhas de Sintra; belharacos; rabanadas; travessas de leite creme,
aletria e arroz-doce, etc., etc., à mistura com vinhos generosos e finos
licores.
Lá dentro, em outra sala,
fumegam nas travessas o fiel-amigo cozido com batatas, o saboroso
arroz de capatão ou a bela pescada, tudo pronto a ser regado com o
trepador bairrada.
É a mesa da música, que come
e bebe à tripa forra.
De vez em quando, a
filarmónica rompe com qualquer trecho popular e tudo, ainda os mais
sisudos, ri, folga, brinca e dança. A certa altura, escusado será
dizê-lo, ninguém se entende. Os amigos do novo mordomo vêm
cumprimentá-lo, queimando até à madrugada dúzias e dúzias de foguetes em
frente da casa e, invadindo-a, lá se pregam à mesa, comendo e bebendo
como verdadeiros alarves.
Há menino que por si
destrói o que daria para dez.
No dia do recebimento do
ramo, quem menos governa em casa é o dono dela.
Imagine-se, pelo que
dizemos, o lindo estado em que se encontrarão os velhos mordomos e os
filarmónicos, depois de terem percorrido todas as casas.
Os executantes musicais hão
perdido a embocadura e a irmandade, essa, por sua vez, já tem mudado de
nome... é a confraria de S. Martinho.
A apresentação das mesas
dos mordomos, como atrás descrevemos, dava-se no tempo em que a
libra ouro corria no mercado a 4$500 e o ramo era entregue à porta, o
que arruinou muitas casas mais modestas, com sucessivos recebimentos de
ramos e correspondentes despesas. A desvalorização da moeda, o
encarecimento da vida e os abusos dos comilões fizeram com que, hoje, os
ramos sejam quase todos recebidos na igreja, o que sempre dispensou e
dispensa maiores encargos.
As entregas de ramos,
actualmente, porém, não são mais do que um pálido reflexo do que foram
em áureos tempos.
ANDRÉ DOS REIS
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