I
PELA
sua área, fertilidade e tradições históricas, Fermedo − a velha
terra do godo Faramundo, segundo alguns
antiquários - é uma das primeiras freguesias do concelho de Arouca, um dos mais vastos e pitorescos do
distrito. Outrora concelho e hoje simples freguesia, merece ser visitada
e estudada, pois não lhe faltam belezas, nem monumentos, nem
pergaminhos. Situada num dos extremos do concelho, a penúltima na
direcção Noroeste, o seu terreno é acidentado, montanhoso, embora a sua
altitude não ultrapasse
quinhentos metros. A sua orografia é constituída pelos montes
de Curuto, Borralhoso, e Carvalhal Redondo, pequenos acidentes
do maciço da Gralheira, nome por que mais vulgarmente é conhecido o
grande relevo de entre o Vouga e o Douro, limitado a Leste pelo Paiva,
estendendo-se em diversos sentidos e
com infinitas designações, tendo a altitude máxima na serra da Arada
(1.166 metros) e seguindo-se-lhe a Freita, com 1.085 metros.
Fermedo tem por limites naturais: a Leste, o rio Arda, e a Oeste, o Inha
− um e outro afluentes inavegáveis do Douro, de importância diminuta.
Os montes de Carvalhal Redondo
− onde assenta o lugar do mesmo nome,
comum a esta freguesia e à de S. Miguel do
Mato − prolongam-se numa extensão de mais de dois milhões
de metros quadrados de superfície e a natureza do seu solo
pode permitir a cultura do pinheiro, do eucalipto e, até mesmo,
da oliveira e da vinha. Infelizmente, estão incultos em grande parte.
Estes montes, ainda há pouco baldios, deram origem a um intrincado e
longo pleito judicial entre os povos da região,
representados pela Junta de Freguesia de S. Miguel do Mato,
e a Câmara de Arouca, que resolvera aliená-los em hasta
pública, não obstante terem sido divididos amigavelmente pelos
seus moradores e estarem, em parte, arborizados.
A questão levou anos a deslindar, acabando pelo triunfo da
Câmara. Houve grande descontentamento por parte das populações desses montes, desobediências à lei, etc., chegando a estar
presas em Arouca, por esse motivo, só de uma vez, mais de
trinta pessoas de Borralhoso e Carvalhal Redondo.
Os baldios foram vendidos em hasta pública, por preços irrisórios, a
indivíduos de longe, muitos deles do Porto, pois os
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seus moradores, mal orientados, em sinal de protesto, resolveram não aparecer a licitar.
Sobre a questão da venda destes montes escreveram-se
vários artigos nos jornais, pró e contra, e o Sr. Dr. ALFREDO PERES, de
Arouca, chegou a publicar um folheto versando o
assunto Tribunal e Paços do Concelho e Baldios de Carvalhal
Redondo, carta ao Sr. Governador Civil de Aveiro (12 de Maio de
1930).
A título de curiosidade, diremos que, segundo as antigas
Ordenações, «baldios eram terras incultas, matos maninhos ou
matos e maninhos que nunca foram aproveitados ou não há
memória de homens que o fossem, e que não tendo sido coutados, nem reservados pelos reis, passaram geralmente, pelos
forais, com as outras terras, aos povoadores delas para os haverem por
seus... em proveito dos pastos, criações e logramentos qqe lhes pertencem.»
No opúsculo atrás citado, o Dr. ALFREDO PERES escreveu o seguinte: «A
propriedade colectiva, de que os baldios são uma
reminiscência, está, desde há muito, economicamente condenada.
Só no regímen de propriedade individual é que é possível desenvolver-se a riqueza.»
Os montes de Borralhoso, onde assenta o lugar do mesmo
nome, não são muito elevados mas são bastante extensos. Estão
ligados aos montes de Carvalhal Redondo e Curuto, e à serra da Cana.
Estes montes, bem como os de Carvalhal Redondo, são de
natureza xistosa e constituem a chamada região das rochas,
(designação local) onde se cria excelente e típico vinho verde.
Nos montes de Borralhoso aparece grande número de
pedras denominadas staurótidos, − incrustados em rochedos
xistosos, com os cristais em forma de cruz − que também se
encontram na serra da Freita.
Em Borralhoso há um dólmen, que vem citado nos diversos
dicionários histórico-geográficos.
O rio Arda, que limita Fermedo por Leste, é o Alarda dos
documentos medievais, sendo conhecido por outros nomes:
Alardo, Pedonde, Arnaldo, Anarda, Pedorido, ribeiro de Moldes, rio de Arouca, etc. Tem o percurso aproximado de seis
léguas e a sua foz na pitoresca povoação de Pedorido (ao pé do
rio?), separando o concelho de Castelo de Paiva do de Arouca
e, por último, do da Feira. Era o limite oriental das antigas Terras de
Santa Maria, que tiveram por cabeça a actual Vila
da Feira − sucedânea de Lancóbriga no predomínio territorial −,
notável pelas suas tradições e pelo seu formosíssimo castelo, verdadeira
jóia de arquitectura militar. A título de curiosidade,
diremos que na Turquia europeia há também um rio chamado
Arda, que se lança no Maritza, próximo de Andronópolis, com
um curso aproximado de cento e oitenta quilómetros; e que na
Itália há outro rio com o mesmo nome, que é afluente do Pó.
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No rio acima referido, nas proximidades da Quinta do Arda,há uma enorme ponte de granito, que liga Fermedo à freguesia de S. Pedra
do Paraíso (Castelo de Paiva). Sítio deserto, mas muito pitoresco. Na
margem direita deste rio, a poucos metros de distância, fica, o curioso
lugarejo de Almansor, cujo nome nos lembra, talvez, a passagem do
célebre guerreiro árabe AI-Mansur ou AI-Mansor, que no século X
assolou o nosso país.
Na margem esquerda do Arda, relativamente perto de Almansor,
fica também a freguesia de Mansores, cujo nome deve ter tido a mesma procedência. As serras desta região devem ter sido
atravessadas pelas hordas ferozes desse guerreiro muçulmano − destruidor
como Átila −, que deixou o seu nome bem vincado na história da
Península.
O Inha, ribeiro humilde que limita Fermedo por Oeste, nasce em Escariz
(Arouca), na serra do Castelo, atravessa o
vale do seu nome, de bastante fertilidade, contornando os montes de S.
Marcos e Cardal; passa em Oliveira, Reguenga, Cedofeita, Serralva e
desagua no Douro, na Foz do Inha.
É o Ignea a que se referem alguns documentos mediévicos dos
Portugaliae Monumenta Historica, como o n.º 870 (ano de 1.098), que
reza: «...in territorio castro portella
(1)
et ciuitas sancta
maria prope litore maris discurrente ribulo ignea», ou seja «no
território do castro da Portela e circunscrição de Santa Maria,
perto do litoral marítimo, onde corre o ribeiro Inha.»
Rio Ignea... rio do fogo? do amor?... O amor é realmente um fogo lento...
O rio Inha é pouco caudaloso, mas as suas margens verdejantes, orladas
de choupos, amieiros e salgueiros,
onde cantam rouxinóis e melros ribeirinhos, são propícias a idílios...
Rio do Couto
(2), Ó rio dos idílios,
Que será feito da mocinha alegre,
Cantando, à tua beira, ao pôr do sol?
Viverá ainda o coração de estrela,
Dando alegria aos corações sombrios?
Rio pobre, chorando entre amieiros,
Do meu exílio leva-lhe saudades.
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Isto escreveu um ignorado poeta do século vinte, que não
saboreou as águas de Hipocrene, mas apenas conheceu as
humildes e cristalinas águas do Inha.
O ponto mais fecundo da freguesia
− por assim dizer, o
coração − é o ubérrimo vale de Fermedo, circundado de montes, entre eles o de Curuto, notável pelo mamilo que lhe deu
o nome, o qual se estende na direcção N-S e foi outrora um
viveiro de dólmens, mamoas, antas e outros monumentos da
idade neolítica, que a ignorância dos povos − que não a sua fúria vandálica,
− foi destruindo através dos tempos, obliterando essas pedras milenárias, que eram verdadeiros documentos sem caracteres.
«Nunca vi tantas mamoas como no monte de Curuto da
freguesia de Fermedo», escreveu PINHO LEAL, que ali viveu, no seu
Portugal Antigo e Moderno. Todas essas relíquias arqueológicas
desapareceram. Os canteiros, na sua ignorância, tudo
destruíram, deixando apenas insignificantes vestígios. Como esse monte seria belo e visitado por curiosos e cientistas, se ainda ali existissem hoje
esses monumentos megalíticos, rudes
mas históricos!
Celtas, iberos, romanos, visigodos, francos e árabes
− não
houve povo que não chorasse pelo solo de Fermedo, diria TOMÁS RIBEIRO,
em linguagem poética. Quase todos, mais ou
menos, ali deixaram rastos das suas pegadas, impressas em
vários monumentos arqueológicos, alguns dos quais ainda
existem.
Donde viria a etimologia de Fermedo? De positivo nada
se sabe. PINHO LEAL e outros rebuscadores de velharias afirmam
que Fermedo derivou de Faramundo, senhor godo que o povoou
e ali teve um castelo. Com o tempo, Faramundo ir-se-ia corrompendo, até dar em Fermedo. Isto, porém, não tem fundamento histórico e é mesmo provável que não passe de
imaginativa.
O único Faramundo (Pharamundo) de que nos fala a História
− e mesmo assim como personagem lendária − viveu no
primeiro cartel do século V, sendo chefe dos francos, reinando
em Treves em 420, aproximadamente. Dizem-no filho de
Marcomiro, sucedendo-lhe seu filho Cledion, A sua existência, porém, é muito contestada por alguns escritores.
Quanto ao castelo, há realmente na freguesia um lugar
com este nome, onde existe um solar, de construção relativamente moderna, que pertenceu aos Camisões. Fica num alto,
sobranceiro ao vale de Fermedo, donde se avista um majestoso
panorama. Nas Inquirições de D. Dinis, realizadas em 1284 no
Julgado de Fermedo, lê-se «no sítio hu dizem do Castelo há uma
vinha». Existiria ali, de facto, um castelo, ou não seria, apenas,
um castro fortificado, onde se edificou, séculos mais tarde, o
/
153 / rude
solar? Esta última hipótese é a que nos parece mais verosímil.
Alguns escritores, seguindo na rota de PINHO LEAL
− que, apesar do seu
talento e da grande obra que nos legou, reeditou e forjou muita
patranha − querem dizer que Fermedo foi em tempos remotos Avióbriga, a
que parece referir-se uma lápide sepulcral existente na capela-mor da
igreja matriz, e de que trataremos mais adiante.
Avióbriga ficaria em Fermedo? Eis outro mistério, outro problema a
desvendar. A sua solução é apenas um caso de curiosidade intelectual,
que nada pode trazer à paz do mundo ou à felicidade dos povos. Mas a
inteligência humana é insaciável e deseja saber o como e o porquê
de todas as coisas...
Não obstante o grande esforço dos arqueólogos, ainda hoje se ignora a
verdadeira localização de algumas povoações de origem celta, como
Talábriga e Lancóbriga. E é bem provável que jamais se descubra a chave
desses enigmas, a não ser que a esclareça alguma pedra soterrada que o
acaso ponha a descoberto.
Se a Vila da Feira se ufana
em ter sido a velha Lancóbriga (o que é
ainda problemático), também Fermedo se orgulharia em ter sido Avióbriga,
nome celta, que igualmente concede foros de remota antiguidade.
Mas os tempos pré-históricos são verdadeira noite escura. Quem neles
tenta penetrar caminha às cegas, às apalpadelas, e não admira que perca
a tramontana. Avióbriga, povoação celta (mais uma irmã de Talábriga e de
Lancóbriga?), se existiu e não é uma má interpretação, feita por PINHO
LEAL, da lápide romana da igreja de Fermedo, está ainda por identificar.
Segundo A. STRECHT DE VASCONCELOS, significaria povoação (briga) privada
de caminhos (ávià); isto é, região pouco acessível, como Fermedo é.
Mas parece que PINHO LEAL se equivocou. Que saibamos o
opidum Avióbriga
não aparece nas velhas crónicas, como Talábriga, Lancóbriga, Cetóbriga,
etc.
No campo etimológico, os escritores antigos, para se livrarem de
dificuldades, recorriam muitas vezes à lenda, soltando as rédeas à
imaginação. Mas os processos modernos são diferentes. Uma coisa é a
história e outra é a lenda; a ciência não pode estribar-se na fantasia.
Por isso mesmo, é-nos impossível apresentar com segurança a etimologia
de Fermedo. O que sobre o assunto se tem escrito não assenta em bases
sólidas. É verdadeiramente impenetrável a origem da maioria dos nossos
nomes toponímicos.
Apesar disso, os nossos distintos arqueólogos, em trabalhos conscienciosos, alguns mistérios têm desvendado.
À frente
de todos, pela sua longa vida de estudo e labor probo e notável, está o
venerando doutor LEITE DE VASCONCELOS, entre nós,
autoridade máxima em assuntos de arqueologia. A obra do
grande mestre é um verdadeiro monumento de ciência, inteligência e persistência, que honra a cultura nacional e a faz ser
respeitada além-fronteiras.
Fermedo é citado na doação que
Ordonho II de Leão, em
homenagem ao bispo D. Gomado, fez ao mosteiro de Castromire (Crestuma), em 922 da nossa era. O documento que a
isso se refere é o n.º 25 dos P. M. H. (Dipl. et Chart.). Ali se
fala em villam de fermeto ler suas terminas antiquos.
No inventário das herdades e igrejas do mosteiro de Guimarães, no ano de 1059, na identificação de propriedades, há
também referências a Fermedo: «ad monte de meda inter fermedo et mellares», «até ao monte da Meda, entre Fermedo e
Melres».
Diz erradamente PINHO LEAL que nos primeiros séculos da
monarquia Faramundo se corrompera em Fermudo, quando já
em 922 aparece fermeto num documento e em 1059, Fermedo.
Quando o moço Afonso Henriques, num gesto de audácia cavalheiresca,
assumiu, pelas armas, o governo do Condado
Portucalense − embrião de Portugal −, já o nome de Fermedo
era pronunciado na nossa terra.
Nas Inquirições de Afonso lI, realizadas em 1220 na Terra
de Santa Maria, aparece Fermedo: In frigisia de Fermedo habet Palaçoo lI
j casalia, et Petrosso j, et Ospital j.
...Mas, fosse ou não Avióbriga, tenha ou não sido fundada
e baptizada por Faramundo, pela topografia dos seus montes e
pela grande fertilidade do seu vale, Fermedo é terra antiquíssima,
habitada desde os tempos mais remotos.
Em artigos subsequentes, contaremos algo do seu concelho
e apresentaremos aos leitores do Arquivo os monumentos valiosos que os séculos, o vandalismo e a ignorância (esta sobretudo)
não conseguiram destruir.
ÁLVARO FERNANDES
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