Álvaro Fernandes, Notas sobre Fermedo, Vol. VI, pp. 149-154.

 

NOTAS SOBRE FERMEDO

I

PELA sua área, fertilidade e tradições históricas, Fermedo − a velha terra do godo Faramundo, segundo alguns antiquários - é uma das primeiras freguesias do concelho de Arouca, um dos mais vastos e pitorescos do distrito. Outrora concelho e hoje simples freguesia, merece ser visitada e estudada, pois não lhe faltam belezas, nem monumentos, nem pergaminhos. Situada num dos extremos do concelho, a penúltima na direcção Noroeste, o seu terreno é acidentado, montanhoso, embora a sua altitude não ultrapasse
quinhentos metros. A sua orografia é constituída pelos montes de Curuto, Borralhoso, e Carvalhal Redondo, pequenos acidentes do maciço da Gralheira, nome por que mais vulgarmente é conhecido o grande relevo de entre o Vouga e o Douro, limitado a Leste pelo Paiva, estendendo-se em diversos sentidos e com infinitas designações, tendo a altitude máxima na serra da Arada (1.166 metros) e seguindo-se-lhe a Freita, com 1.085 metros.

Fermedo tem por limites naturais: a Leste, o rio Arda, e a Oeste, o Inha − um e outro afluentes inavegáveis do Douro, de importância diminuta.

Os montes de Carvalhal Redondo − onde assenta o lugar do mesmo nome, comum a esta freguesia e à de S. Miguel do Mato − prolongam-se numa extensão de mais de dois milhões de metros quadrados de superfície e a natureza do seu solo pode permitir a cultura do pinheiro, do eucalipto e, até mesmo, da oliveira e da vinha. Infelizmente, estão incultos em grande parte.

Estes montes, ainda há pouco baldios, deram origem a um intrincado e longo pleito judicial entre os povos da região, representados pela Junta de Freguesia de S. Miguel do Mato, e a Câmara de Arouca, que resolvera aliená-los em hasta pública, não obstante terem sido divididos amigavelmente pelos seus moradores e estarem, em parte, arborizados.

A questão levou anos a deslindar, acabando pelo triunfo da Câmara. Houve grande descontentamento por parte das populações desses montes, desobediências à lei, etc., chegando a estar presas em Arouca, por esse motivo, só de uma vez, mais de trinta pessoas de Borralhoso e Carvalhal Redondo.

Os baldios foram vendidos em hasta pública, por preços irrisórios, a indivíduos de longe, muitos deles do Porto, pois os / 149 / seus moradores, mal orientados, em sinal de protesto, resolveram não aparecer a licitar.

Sobre a questão da venda destes montes escreveram-se vários artigos nos jornais, pró e contra, e o Sr. Dr. ALFREDO PERES, de Arouca, chegou a publicar um folheto versando o assunto Tribunal e Paços do Concelho e Baldios de Carvalhal Redondo, carta ao Sr. Governador Civil de Aveiro (12 de Maio de 1930).

A título de curiosidade, diremos que, segundo as antigas Ordenações, «baldios eram terras incultas, matos maninhos ou matos e maninhos que nunca foram aproveitados ou não há memória de homens que o fossem, e que não tendo sido coutados, nem reservados pelos reis, passaram geralmente, pelos forais, com as outras terras, aos povoadores delas para os haverem por seus... em proveito dos pastos, criações e logramentos qqe lhes pertencem.»

No opúsculo atrás citado, o Dr. ALFREDO PERES escreveu o seguinte: «A propriedade colectiva, de que os baldios são uma reminiscência, está, desde há muito, economicamente condenada. Só no regímen de propriedade individual é que é possível desenvolver-se a riqueza.»

Os montes de Borralhoso, onde assenta o lugar do mesmo nome, não são muito elevados mas são bastante extensos. Estão ligados aos montes de Carvalhal Redondo e Curuto, e à serra da Cana.

Estes montes, bem como os de Carvalhal Redondo, são de natureza xistosa e constituem a chamada região das rochas, (designação local) onde se cria excelente e típico vinho verde.

Nos montes de Borralhoso aparece grande número de pedras denominadas staurótidos, − incrustados em rochedos xistosos, com os cristais em forma de cruz − que também se encontram na serra da Freita.

Em Borralhoso há um dólmen, que vem citado nos diversos dicionários histórico-geográficos.

O rio Arda, que limita Fermedo por Leste, é o Alarda dos documentos medievais, sendo conhecido por outros nomes: Alardo, Pedonde, Arnaldo, Anarda, Pedorido, ribeiro de Moldes, rio de Arouca, etc. Tem o percurso aproximado de seis léguas e a sua foz na pitoresca povoação de Pedorido (ao pé do rio?), separando o concelho de Castelo de Paiva do de Arouca e, por último, do da Feira. Era o limite oriental das antigas Terras de Santa Maria, que tiveram por cabeça a actual Vila da Feira − sucedânea de Lancóbriga no predomínio territorial −, notável pelas suas tradições e pelo seu formosíssimo castelo, verdadeira jóia de arquitectura militar. A título de curiosidade, diremos que na Turquia europeia há também um rio chamado Arda, que se lança no Maritza, próximo de Andronópolis, com um curso aproximado de cento e oitenta quilómetros; e que na Itália há outro rio com o mesmo nome, que é afluente do Pó.

/ 151 / No rio acima referido, nas proximidades da Quinta do Arda,há uma enorme ponte de granito, que liga Fermedo à freguesia de S. Pedra do Paraíso (Castelo de Paiva). Sítio deserto, mas muito pitoresco. Na margem direita deste rio, a poucos metros de distância, fica, o curioso lugarejo de Almansor, cujo nome nos lembra, talvez, a passagem do célebre guerreiro árabe AI-Mansur ou AI-Mansor, que no século X assolou o nosso país. Na margem esquerda do Arda, relativamente perto de Almansor, fica também a freguesia de Mansores, cujo nome deve ter tido a mesma procedência. As serras desta região devem ter sido atravessadas pelas hordas ferozes desse guerreiro muçulmano − destruidor como Átila −, que deixou o seu nome bem vincado na história da Península.

O Inha, ribeiro humilde que limita Fermedo por Oeste, nasce em Escariz (Arouca), na serra do Castelo, atravessa o vale do seu nome, de bastante fertilidade, contornando os montes de S. Marcos e Cardal; passa em Oliveira, Reguenga, Cedofeita, Serralva e desagua no Douro, na Foz do Inha.

É o Ignea a que se referem alguns documentos mediévicos dos Portugaliae Monumenta Historica, como o n.º 870 (ano de 1.098), que reza: «...in territorio castro portella (1) et ciuitas sancta maria prope litore maris discurrente ribulo ignea», ou seja «no território do castro da Portela e circunscrição de Santa Maria, perto do litoral marítimo, onde corre o ribeiro Inha.»

Rio Ignea... rio do fogo? do amor?... O amor é realmente um fogo lento... O rio Inha é pouco caudaloso, mas as suas margens verdejantes, orladas de choupos, amieiros e salgueiros, onde cantam rouxinóis e melros ribeirinhos, são propícias a idílios...

Rio do Couto (2), Ó rio dos idílios,
Que será feito da mocinha alegre,
Cantando, à tua beira, ao pôr do sol?
Viverá ainda o coração de estrela,
Dando alegria aos corações sombrios?
Rio pobre, chorando entre amieiros,
Do meu exílio leva-lhe saudades.

/ 152 / Isto escreveu um ignorado poeta do século vinte, que não saboreou as águas de Hipocrene, mas apenas conheceu as humildes e cristalinas águas do Inha.

O ponto mais fecundo da freguesia − por assim dizer, o coração − é o ubérrimo vale de Fermedo, circundado de montes, entre eles o de Curuto, notável pelo mamilo que lhe deu o nome, o qual se estende na direcção N-S e foi outrora um viveiro de dólmens, mamoas, antas e outros monumentos da idade neolítica, que a ignorância dos povos − que não a sua fúria vandálica, − foi destruindo através dos tempos, obliterando essas pedras milenárias, que eram verdadeiros documentos sem caracteres.

«Nunca vi tantas mamoas como no monte de Curuto da freguesia de Fermedo», escreveu PINHO LEAL, que ali viveu, no seu Portugal Antigo e Moderno. Todas essas relíquias arqueológicas desapareceram. Os canteiros, na sua ignorância, tudo destruíram, deixando apenas insignificantes vestígios. Como esse monte seria belo e visitado por curiosos e cientistas, se ainda ali existissem hoje esses monumentos megalíticos, rudes mas históricos!

Celtas, iberos, romanos, visigodos, francos e árabes − não houve povo que não chorasse pelo solo de Fermedo, diria TOMÁS RIBEIRO, em linguagem poética. Quase todos, mais ou menos, ali deixaram rastos das suas pegadas, impressas em vários monumentos arqueológicos, alguns dos quais ainda existem.

Donde viria a etimologia de Fermedo? De positivo nada se sabe. PINHO LEAL e outros rebuscadores de velharias afirmam que Fermedo derivou de Faramundo, senhor godo que o povoou e ali teve um castelo. Com o tempo, Faramundo ir-se-ia corrompendo, até dar em Fermedo. Isto, porém, não tem fundamento histórico e é mesmo provável que não passe de imaginativa.

O único Faramundo (Pharamundo) de que nos fala a História − e mesmo assim como personagem lendária − viveu no primeiro cartel do século V, sendo chefe dos francos, reinando em Treves em 420, aproximadamente. Dizem-no filho de Marcomiro, sucedendo-lhe seu filho Cledion, A sua existência, porém, é muito contestada por alguns escritores.

Quanto ao castelo, há realmente na freguesia um lugar com este nome, onde existe um solar, de construção relativamente moderna, que pertenceu aos Camisões. Fica num alto, sobranceiro ao vale de Fermedo, donde se avista um majestoso panorama. Nas Inquirições de D. Dinis, realizadas em 1284 no Julgado de Fermedo, lê-se «no sítio hu dizem do Castelo há uma vinha». Existiria ali, de facto, um castelo, ou não seria, apenas, um castro fortificado, onde se edificou, séculos mais tarde, o / 153 / rude solar? Esta última hipótese é a que nos parece mais verosímil.

Alguns escritores, seguindo na rota de PINHO LEAL − que, apesar do seu talento e da grande obra que nos legou, reeditou e forjou muita patranha − querem dizer que Fermedo foi em tempos remotos Avióbriga, a que parece referir-se uma lápide sepulcral existente na capela-mor da igreja matriz, e de que trataremos mais adiante.

Avióbriga ficaria em Fermedo? Eis outro mistério, outro problema a desvendar. A sua solução é apenas um caso de curiosidade intelectual, que nada pode trazer à paz do mundo ou à felicidade dos povos. Mas a inteligência humana é insaciável e deseja saber o como e o porquê de todas as coisas...

Não obstante o grande esforço dos arqueólogos, ainda hoje se ignora a verdadeira localização de algumas povoações de origem celta, como Talábriga e Lancóbriga. E é bem provável que jamais se descubra a chave desses enigmas, a não ser que a esclareça alguma pedra soterrada que o acaso ponha a descoberto.

Se a Vila da Feira se ufana em ter sido a velha Lancóbriga (o que é ainda problemático), também Fermedo se orgulharia em ter sido Avióbriga, nome celta, que igualmente concede foros de remota antiguidade.

Mas os tempos pré-históricos são verdadeira noite escura. Quem neles tenta penetrar caminha às cegas, às apalpadelas, e não admira que perca a tramontana. Avióbriga, povoação celta (mais uma irmã de Talábriga e de Lancóbriga?), se existiu e não é uma má interpretação, feita por PINHO LEAL, da lápide romana da igreja de Fermedo, está ainda por identificar. Segundo A. STRECHT DE VASCONCELOS, significaria povoação (briga) privada de caminhos (ávià); isto é, região pouco acessível, como Fermedo é.

Mas parece que PINHO LEAL se equivocou. Que saibamos o opidum Avióbriga não aparece nas velhas crónicas, como Talábriga, Lancóbriga, Cetóbriga, etc.

No campo etimológico, os escritores antigos, para se livrarem de dificuldades, recorriam muitas vezes à lenda, soltando as rédeas à imaginação. Mas os processos modernos são diferentes. Uma coisa é a história e outra é a lenda; a ciência não pode estribar-se na fantasia.

Por isso mesmo, é-nos impossível apresentar com segurança a etimologia de Fermedo. O que sobre o assunto se tem escrito não assenta em bases sólidas. É verdadeiramente impenetrável a origem da maioria dos nossos nomes toponímicos.

Apesar disso, os nossos distintos arqueólogos, em trabalhos conscienciosos, alguns mistérios têm desvendado. À frente de todos, pela sua longa vida de estudo e labor probo e notável, está o venerando doutor LEITE DE VASCONCELOS, entre nós, autoridade máxima em assuntos de arqueologia. A obra do grande mestre é um verdadeiro monumento de ciência, inteligência e persistência, que honra a cultura nacional e a faz ser
respeitada além-fronteiras.

Fermedo é citado na doação que Ordonho II de Leão, em homenagem ao bispo D. Gomado, fez ao mosteiro de Castromire (Crestuma), em 922 da nossa era. O documento que a isso se refere é o n.º 25 dos P. M. H. (Dipl. et Chart.). Ali se fala em villam de fermeto ler suas terminas antiquos.

No inventário das herdades e igrejas do mosteiro de Guimarães, no ano de 1059, na identificação de propriedades, há também referências a Fermedo: «ad monte de meda inter fermedo et mellares», «até ao monte da Meda, entre Fermedo e Melres».

Diz erradamente PINHO LEAL que nos primeiros séculos da monarquia Faramundo se corrompera em Fermudo, quando já em 922 aparece fermeto num documento e em 1059, Fermedo.

Quando o moço Afonso Henriques, num gesto de audácia cavalheiresca, assumiu, pelas armas, o governo do Condado Portucalense − embrião de Portugal −, já o nome de Fermedo era pronunciado na nossa terra.

Nas Inquirições de Afonso lI, realizadas em 1220 na Terra de Santa Maria, aparece Fermedo: In frigisia de Fermedo habet Palaçoo lI j casalia, et Petrosso j, et Ospital j.

...Mas, fosse ou não Avióbriga, tenha ou não sido fundada e baptizada por Faramundo, pela topografia dos seus montes e pela grande fertilidade do seu vale, Fermedo é terra antiquíssima, habitada desde os tempos mais remotos.

Em artigos subsequentes, contaremos algo do seu concelho e apresentaremos aos leitores do Arquivo os monumentos valiosos que os séculos, o vandalismo e a ignorância (esta sobretudo) não conseguiram destruir.

ÁLVARO FERNANDES

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(1) − O castro da PorteIa, no monte do Crasto, de Romariz (Feira) acaba de ser localizado pelas pesquisas arqueológicas do meu antigo mestre Rev.º Manuel Fernandes dos Santos, abade daquela freguesia, que procedeu ali a escavações, encontrando tégulas, mós e alicerces de casas circulares e rectangulares. A citânia do monte do Crasto de Romariz era muito semelhante à de Briteiros. Com o auxílio da Câmara Municipal, aquele reverendo vai prosseguir nas escavações, esperando-se que mais casas sejam descobertas e que Romariz, em breves dias, seja um lugar de turismo... arqueológico, como Briteiros. O exemplo do grande sábio MARTlNS SARMENTO − que, por assim dizer, iniciou entre nós o culto das pedras e das velharias − não caiu no deserto, felizmente. Novos apóstolos vão surgindo e novas relíquias vão aparecendo. E assim se vão reunindo elementos para se escrever, um dia, definitivamente, a verdadeira história do homem, ou seja, a história da Civilização Humana.

(2)Nas proximidades de Cabeçais, o rio Inha é conhecido por rio do Couto, por atravessar o antigo couto dos duques de Aveiro.

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