No
pendor da serra do
Arestal − o formosíssimo miradoiro que domina todo o Distrito e
proporciona ao visitante a grata surpresa de panoramas inolvidáveis,
como dificilmente se encontrarão noutro lugar de Portugal
tem a freguesia de Rocas sabido defender do tempo, e da volubilidade dos homens, antigos tesouros de vário e apreciável
significado.
Na campanha da «Aldeia mais portuguesa de Portugal», de 1938, pude
anotar ali preciosos pormenores de construção, trajos que o meio
geográfico lá impôs, desde todo o sempre, trovas medievais ainda hoje
cantadas, coreografia, vida serrana
sadia, confiada e alegre, com modalidades locais que submeti à
apreciação do júri provincial.
Mas já anteriormente visitara Rocas. Outro fora o motivo
que lá do alto acenara à minha curiosidade e que largamente justificou
tão fatigante jornada para homem das planícies francas, ribeirinho de
nascimento e coração. Levara-me lá o desejo de conhecer de visu a
afamada cruz processional de prata, primor da ourivesaria portuguesa
seiscentista, exibida em 1882 na magnífica exposição distrital de
Aveiro.
Na verdade, meus passos não foram iludidos pelas fotografias que, havia
muito, eu conhecia; trabalho nacional, de grande equilíbrio de forma,
proporção e distinção de linhas, a cruz processional de Rocas é das mais
nobres peças que a arte religiosa no Distrito pode actualmente
apresentar ainda − perdidas para sempre, no cadinho e nas voragens
políticas, as alfaias góticas e do primeiro Renascimento que outrora
possuiu.
Constituída, como é de uso nas cruzes processionais de grande vulto, por
duas partes − a lâmina cruciforme propriamente dita, e a base
cilíndrica (evolução do nó que estilos
/ 209 /
anteriores empregavam) com prolongamento inferior destinado a receber a
vara de suporte − a cruz de Rocas mede, em conjunto, 1,125 m de altura
por 0,43 m de haste transversal.
A lâmina, de 49 mm de largo, toda burilada de ornato característico
do século XVII, muito fino, recebeu em volta, a perfilar, uma
delicadíssima guirlanda do mesmo metal, renda graciosíssima, da maior
distinção e bom gosto; nas três extremidades livres, da cruz, rematam
bem, e aligeiram muito o efeito da peça, ornatos de cartela, camafeus, e
CC burilados, muito usados na ourivesaria seiscentista, reflexo da
decoração arquitectónica da época.
Cristo de boa modelação, medindo 190 x 170
mm, acusando já
repetidas soldagens; três cravos o aparafusam à cruz; o resplendor,
cravado, apresenta na parte anterior da cruz uma moeda de D. Pedro V, de
1861, a segurar o cravo, restauração provinciana que urge' eliminar
quanto antes.
A decoração estende-se à base, sempre no mesmo gosto, mas atingindo
aqui grande relevo; graciosíssimo friso de meios óvulos corre na parte
superior do cilindro; quatro robustos e grandes SS, cinzelados, donde
pendem tintinábulos, ladeiam esse corpo inferior da notável jóia, de que
a nossa gravura não consegue dar suficiente ideia, tal é a delicadeza do
trabalho de buril que por toda ela se encontra distribuído profusamente
e a notabiliza.
Mais rica do que a cruz de prata de S. Pedro das Aradas, também
seiscentista, que mantém com ela grandes afinidades nas suas linhas
gerais, a cruz processional de Rocas não encontra muitas similares nas
colecções de Arte sacra dos museus portugueses; não esteve na exposição
retrospectiva de Arte ornamental portuguesa e espanhola, celebrada em
Lisboa em 1882, mas também nenhuma outra semelhante se apresentou no
memorável mostruário, que a história da Arte em Portugal ainda hoje recorda com a maior gratidão, tão fecundos foram
os seus resultados recenseando objectos e facultando observação e
confrontos normalmente impossíveis.
Apresentou-se, como acima fica dito, na exposição distrital de Aveiro
daquele mesmo ano, onde foi justamente apreciada, classificando-a
JOAQUIM DE VASCONCELOS como belo trabalho do
primeiro terço do século XVII, que exemplifica os diferentes processos da oficina, o lavar de martelo (nó da haste) de lima e de
buril. (Exposição districtal de Aveiro em 1882), A veiro, 1883,
pág. 23).
Pela maneira como JOAQUIM DE VASCONCELOS redigiu a sua breve nota,
depreendo, contudo, que nessa ocasião a cruz andaria sem a imagem de
Cristo, pois a declara sem vulto, em oposição a outra de 1561 que
tinha um Cristo de bronze.
O catálogo propriamente dito, elaborado por MARQUES GOMES,
e publicado também em 1883, omite qualquer referência à imagem;
/
211 / diz apenas, depois de registar as dimensões da cruz(1), que «as
extremidades dos braços e superior da haste terminam em gomos
semicirculares. A ornamentação é de cercadilho tendo por orla um
elegante rendilhado. Assenta sobre uma base de prata batida, de que
pendem quatro campainhas.
Seculo XVII. Junta de Parochia de Rocas
− SEVER».
A cruz de Rocas voltou a A veiro em 1895, à exposição de arte religiosa
inaugurada em 22 de Agosto no colégio de Santa Joana Princesa, em
benefício dos pobres. A sua descrição no catálogo respectivo, também de
MARQUES GOMES, é quase repetição pura da inserta no catálogo de 1883.
Tem agora o N.º 14, entre os objectos apresentados.
Ora a imagem que presentemente completa a cruz mostra ser contemporânea
dela; ter-se-ia desligado da haste, e só muito mais tarde seria reposta
no seu lugar, tanto mais que, conforme
acima notámos, são muito visíveis os sinais de repetidas soldagens.
Inclino-me, portanto, para a hipótese do Cristo fazer parte do primitivo
desenho da cruz; e digo hipótese, porque algumas cruzes processionais
nunca tiveram imagem; há vários exemplos disso, até mesmo do século a
que a de Rocas pertence.
O exame dos punções que por
ventura existam nas diversas partes
componentes da cruz muito pode contribuir, pelas datas a que pertençam,
para o esclarecimento deste e doutros problemas, de grande alcance para
a história da Arte portuguesa.
Importava averiguar como veio para
Rocas tão belo exemplar de ourivesaria, peça necessariamente cara, e qual a sua
proveniência oficinal. Rocas, conquanto de comprovada antiguidade, é
escassa de história escrita. Acresce que a freguesia tem pertencido ao
bispado de Viseu, donde transitou agora para a nova diocese de Aveiro.
De 1180 se encontra notícia de metade pertencer à própria Mitra de
Viseu; corria então demanda entre o Bispo D. João e os herdeiros de
Rocas, a que D. Afonso Henriques pôs termo
ordenando inquirições, nas quais todos concorditer disserunt: quod
tola Villa de Rochas, et omnibus Casalibus, et vineis, et ortis, et
arboribus, et de tota Haereditate, quae jacet inter ipsas duas aquas,
hinc inde currentes: medietas est Episcopi, et
Sedis de Viseo: et alia medietas est suorum Haeredum. Sicut ergo Rex
mandavit, et per veridicas Exquisas dictum fuit, divisa est ipsa Villa per medium...
Acrescenta Fr. JOAQUIM DE SANTA ROSA DE VITERBO,
que extratou o
precioso documento, hoje infelizmente perdido, e do qual nada mais se
conhece, nem sequer em transcrição:
− «Deste modo ficaram seis casaes á cathedral de Viseu,
/
212 / e
outros seis ao mosteiro de Sever, e a outros. Hujus Haereditatis Partitores fuerunt, Alfonsus, Monachus
de Silva Obscura:
Soerius, Monachus Sancti jacobi, etc. Testes hujus Divisionis
omnes homines fere de Sever, et de Rochis: Salvador Petri de
Sever, Petrus Vormuzi, Gonçalvus Menendis, Nuno Gomes, tunc
temporis Domnus de Sever, hujus rei Exquisa, et testis fuit. Facta fuit
Divisio mense Decembris. E. M. CCXVIII.» (Elucidário..., 2.ª
ed., 1.º vol., pág. 300, s. vb. EXQUISA).
É, portanto, nos arquivos da Câmara eclesiástica de Viseu, se existem,
que se tem de procurar a solução para o problema
da proveniência da formosíssima cruz, que enobrece o magnífico templo a que pertence e honra o próprio Distrito.
No catálogo dos Prelados da Igreja de Viseu, do reverendo
JOÃO COL, nada se me deparou aproveitável à identificação da
cruz de Rocas; nem naturalidades nem munificências prelatícias;
terá sido peça conventual? As contas correntes dos objectos preciosos de ouro, prata, e lojas que pertenceram aos conventos suprimidos do continente do Reino, publicadas em 1842, também
nenhum elemento forneceram ao esclarecimento do problema.
Restam, pois, os documentos de Viseu; principalmente visitações de igrejas e notícias da diocese.
Bom serviço prestará à história da ourivesaria portuguesa
quem puder percorrer tais colecções e conseguir lá desvendar
o mistério da proveniência desta peça notabilíssima.
A. G. DA ROCHA MADAHIL |