DENTRE
os homens da região de Aveiro que cultivaram as letras, o primeiro que
se oferece à nossa observação é JOÃO AFONSO DE AVEIRO, pouco menos que
desconhecido na própria terra onde primeiro viu a luz − Aveiro.
Este JOÃO AFONSO DE AVEIRO
figura entre os navegadores do século XV, que tornaram possível as
façanhas marítimas de Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Alvares Cabral e
outros, e dele ficaram registadas algumas poesias no Cancioneiro
Geral de GARCIA DE RESENDE, «moço de escrivaninha» de D. João II,
músico, historiógrafo, poeta e benemérito compilador das poesias dos
chamados «poetas palacianos».
Como navegador, não foi
esquecida a acção de JOÃO AFONSO por nenhum dos historiadores que acerca
dos descobrimentos com mais ou menos desenvolvimento escreveram; como
poeta, restam-nos as poesias que RESENDE nos transmitiu.
Já Aveiro prestou a este seu
ilustre filho uma pequena homenagem, por ocasião do 4.º centenário do
descobrimento do caminho marítimo da Índia (1898): o "Campeão das
Províncias", jornal local então existente, publicou nessa altura um
folheto de 32 páginas, elaborado pelo falecido antiquário aveirense,
JOÃO AUGUSTO MARQUES GOMES, no qual, entre outros assuntos, se trata das
Causas próximas da descoberta do caminho marítimo da Índia, (pág.
1 a 8), com a transcrição dos passos dos historiadores e homens de
letras que a JOÃO AFONSO DE AVEIRO se referiram (DIOGO BARBOSA MACHADO,
TEÓFILO BRAGA, FERNÃO HOMEM DE FIGUEIREDO, JOÃO DE BARROS, LUCIANO
CORDEIRO, RUI DE PINA, GARCIA DE RESENDE, ANTÓNIO GALVÃO, Fr. LUÍS DE
SOUSA, ALEXANDRE MAGNO DE CASTILHO, HENRY MAJOR, Cardial SARAIVA, PEDRO
DE MARIZ, P.e ANTÓNIO DE CARVALHO E COSTA, ALBANO DA SILVEIRA). E claro
que os mais modernos destes escritores nada mais
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fazem do que repetir ou parafrasear o que em súmula haviam escrito os
antigos. Contém ainda o citado folheto (pág. 25 a 27) a transcrição das
poesias de JOÃO AFONSO DE AVEIRO, transmitidas por
GARCIA DE RESENDE no seu Cancioneiro Geral(1).
Na Grande Enciclopédia
Portuguesa e Brasileira, voI. III, pág. 811, distinguem-se dois
JOÕES AFONSOS DE AVEIRO − o navegador e o poeta. Eis os dois artigos, o
primeiro fundado nos historiadores, o segundo em Barbosa Machado (Biblioteca
Lusitana).
«AVEIRO (JOÃO AFONSO DE). Piloto
muito notável, natural de Aveiro, que viveu no século XV. Ignora-se a
data certa do seu nascimento e o nome dos pais. João Afonso de Aveiro
acompanhou, como piloto, Diogo Cão na viagem que fez à costa de África
em 1484, por ordem de D. João lI. Diogo Cão, na volta desse cruzeiro, de
que resultou o descobrimento do Congo e do Zaire, tão elogiosas
informações deu ao rei sobre os merecimentos do piloto, que logo no ano
seguinte este foi encarregado da exploração do rio Formoso, resultando
dessa exploração o descobrimento do reino de Benim, na Guiné. João
Afonso estabeleceu feitorias em Benim e foi ele quem deu a D. João II
aquelas informações sobre o Prestes João das Índias, que foram incentivo
e começo das nossas relações com a Etiópia. João Afonso de Aveiro morreu
em Benim.»
«AVEIRO (JOÃO AFONSO DE). Escritor e
poeta, natural de Aveiro. Foi criado do Duque de Beja, D. Diogo, irmão
do rei D. Manuel, que muito o considerava pelo seu talento poético.
Deixou um livro com o título Poesias Várias.».
Talvez assim seja:. No
entanto, é para ponderar, a favor da afirmação, corrente até os nossos
dias, de se tratar de um só indivíduo, − a referência que no mesmo
Cancioneiro Geral se faz a «Ioam afonsso daueiro», numa poesia do
Coudel Mor (Fernão da Silveira), que tem a seguinte introdução: − «Trouas
do coudel moor a loam afonsso daueiro, que se foy a viuer nas jlhas, &
de laa lhe escreueo, que fyzesse algüas cousas por ele, em que entrou
fallar a sua dama, & despachar outras com a senhora jfante, & co duq,
mas ysto veo no tëpo da morte do duq».
Como quer que seja, aqui se transcrevem, com pontuação moderna,
as poesias do poeta palaciano, natural de Aveiro,
insertas no aludido Cancioneiro Geral(2).
É justa esta homenagem do Arquivo à memória do primeiro poeta aveirense
de que temos conhecimento:
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I
DE JOÃO AFONSO D'AVEIRO A
VASCO ARNALHO,
TOPANDO COM ELE NUM CAMINHO, VINDO DE BEJA
|
− Donde vindes, Vasco Arnalho?
− Meu senhor, venho de Beeja,
donde leixo tanta enveja,
com que muitos tem trabalho:
namorado tam perdido,
qu'é o demo
de seus parentes temido;
dos amores tam vencido,
que dizer nada me temo.
− Dizei, pois vindes de lá,
como, vos ia d'amores,
ou se vos dava favores
a que tal pena vos dá.
− Dai-me ó demo que me leve;
nom ma lembreis;
que, se cedo ou em breve
m'a senhora não escreve,
lançar pedras me vereis.
Eu andava tam louçaão
e iam doce como mel,
mas muitos bebiam fel,
se me viam no serão:
meu capuz pardo, frisado,
alvaçaão,
de veludo bem bordado,
e meu beiço derribado,
que me dava pelo chão;
meus brozeguis de recramo,
um fino barrete pardo,
sem nunca m'achar covardo
com as causas que mais amo;
meu cabelo penteado,
que matava;
decote mui anafado;
um punhal tam bem dourado,
que o demo s'espantava;
meu gibão de sêda rasa,
de mui fino cremesim
(todos deziam por mim:
− Tu, Vasco, mata-la brasa!);
pelotes roxos, bandados,
muito finos,
per mil partes golpeados,
com côres tam bem betados,
que se tangiam os sinos!
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− Vasco, má raiva te mate,
qu'assi andas namorado!
Tu és penhor escusado,
que se vende d'arremate.
− Pois cuidai, ó meu senhor
assim Deus m'ajude −,
que u tenho meu penhor,
por mais queixume d'amor,
receber posso saúde.
Fim
Cant'eu nunca me viera,
se me lá fôra tam bem;
i pudera raivar quem
co meu bem lhe desprouvera.
Não se pode mais fazer, senhor meu,
ca mui mal contrafazer
se pode, sem se saber,
quem quer bem como sandeu.
(C. G., t. III, pág. 334-336)
|
II
DE JOÃO AFONSO D'AVEIRO A LANÇAROTE DE MELO, POR PARTE DA DONA MÉClA,
POR ÜA MULA QUE LHE PROMETEU, GOARNECIDA PARA UM CAMINHO,
E NÃO LHA MANDOU
|
Em que vos posso pagar
a mula que me mandastes,
pois que sei que vos gabastes
em ma bem atabiar?
Que, segundo a chaparia
que vejo no goarnimento,
mui muito vos custaria
a que fez João de Faria,
quando foi ó saimento.
É de todas mui louvado
o sombreiro com tabardo,
por ser preto e nam pardo,
das minhas cores bordado;
também a funda da sela,
de borcado preto roxo,
porque hei d'haver mazela
do homem que vejo coxo.
/ 13 /
Oh quanto m'a mim descansa
estar ela ó cavalgar!
Assi dizem ao selar:
− Nunca vi oousa tam mansa.
O estribo foi dourado
o melhor que nunca vi,
de filagrana lavrado:
nam nos fazem tais aqui.
Nunca vi melhor feição
de mula parda, tam parda!
Como quer que muito tarda,
todos vos isto dirão.
Tem estranha andadura,
toda feita per compasso;
nã lhe mingua ferradura,
nem a vós fará tristura,
pois que vos mostrais escasso.
Fim
Nunca vi tam bom cabelo,
nem mula tam anafada.
Se traz a brida dourada,
não é para mim dizê-lo.
Pois do ai que lhe diremos?
Que não seja mui perfeita,
al dizendo mentiremos,
pois jamais nunca veremos
outra tal, nem tam bem feita.
(Id. ib.)Pág. 336-338)
|
III
DE JOÃO AFONSO D'AVEIRO,
EM QUE PEDE AJUDA PARA CASAR
|
Senhores, quero casar
agora, se Deus quiser,
e quem co meu bem folgar
fará bem de m'ajudar,
cada um co que tever.
Porque a dama não tem
alma, corpo nem fazenda:
é filha de não sei quem,
não há nela mal nem bem,
se se por vós não emenda.
De dama, não de parenta,
me dê cada um sa peça,
o que dela mais contenta,
por que com vossa ementa
me façais que mais não peeça.
Isto seja entendido
no corpo, e não no aI,
porque a corpo bem fornido
− já lhe sabeis o marido −
Deus dará o enxoval.
(Id., ib., pág. 341- 342)
|
IV
CANTIGA DE JOÃO AFONSO D'AVEIRO
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Pois partis e me leíxais
tam triste e sem galardão,
tornai-me, meu coração,
senhora, que me levais.
Coração que foste meu,
se fôsseis meu algum dia,
nunca mais vos tornaria
a quem tal pesar vos deu.
Mas, pois vós vos contentais
d'haver mal por galardão,
matem-vos, meu coração,
pois vós mesmo vos matais.
(Id., ib., pág. 143)
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JOSÉ PEREIRA TAVARES
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