OS trabalhos que aqui
temos publicado sob a designação
de Águeda, abrangendo, por vezes, mais do que a
região de Riba de Águeda − pois temos para nós,
que as monografias desde que não tragam consigo as
redes que as prendem à história geral não passam de curiosidades de almanaque
− têm por objectivo fornecer elementos de
estudo a quem queira fazer obra definitiva.
Antes de continuar a fornecer outros elementos e por acharmos vantajoso
reuni-los todos nesta revista da especialidade,
vamos para aqui transcrever do número único da Shell News o
primeiro estudo que sobre Águeda publicámos e ao qual fizemos referência no número
1 do Arquivo do Distrito de Aveiro,
pág. 49.
ÁGUEDA
SUBSÍDIOS PARA A SUA HISTÓRIA
Os pergaminhos de sucessora da cidade romana de Aeminium, que a imaginação dos clássicos quinhentistas emprestou a
Águeda, desde 1888 que, pela descoberta da lápide do Colégio Novo, se sabe que pertencem a Coimbra, embora do alto da
fachada dos paços do concelho se continue a bradar, heraldicamente, o
contrário.
Há quem suponha, num arranco de fantasia bairrista, e
como que para se agarrar à tábua do náufrago, que a lápide
descoberta em Coimbra podia até ter sido levada de Águeda.
Tudo neste mundo se pode supor... mas a verdade, porém,
é que em Coimbra há vestígios de existência duma povoação
importante do tempo dos romanos e em Águeda, ou mesmo nas
suas proximidades, não existe coisa alguma que nos leve a
admitir essa existência. A lápide não apareceu num deserto,
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mas enquadrada dentro do cenário de que ela não é mais do que a
confirmação.
Além disso, outro argumento há para convencer os mais incrédulos e
contra o qual não há poder de imaginação que resista. É sabido que,
segundo a Carta do Estado Maior, a distância de Gaia a Coimbra são:
105.100 metros; pois, pelo Itinerário Romano, a distância que separa Aeminium de Cale corresponde a um certo numero de milhas cuja soma dá
105.151 metros. E devo dizer que a identidade destes números não foi
procurada com o prévio fim de demonstrar que Aeminium e Coimbra eram a
mesma povoação, mas exclusivamente para determinar a situação conjectural de Talábrica, em
um interessante estudo de geografia proto-histórica de F. ALVES PEREIRA
(Vide Arqueólogo Português, voI. XII, pág. 133), feito em Março de 1907.
Liquidado este assunto, entremos na verdade histórica que a documentação
autoriza e cuja amplitude é suficiente para cabalmente nos elucidar
sobre a gestação e desenvolvimento do fenómeno social, que Águeda
representa; mas, considerando que dentro do curto limite que nos é
dado, tanto de tempo como de espaço, não nos é permitido sequer
enunciar a profusão de documentos dos Monumenta Histórica que directa ou indirectamente
esclarecem a vida na região na época em que Águeda
surgiu, circunscrever-nos-emos, sumariamente, apenas, a indicar as
origens e o valor social de Águeda no século mais expressivo da nossa
civilização.
*
Desde a alta idade média (883) que Águeda nos aparece na documentação
como um nome pelo qual se designa uma determinada região (ripa de Agata),
fazendo-se o mais absoluto silêncio sobre a existência do lugar que
entre os séculos XI a XIII se deveria ter formado, para nos primórdios
deste ultimo século nos aparecer, nas inquirições de D. Afonso II e num
fragmento dessa inquirição que JOÃO PEDRO RIBEIRO atribui ao ano de
1220, com aquele relativo desenvolvimento que nos deixa entrever o facto
de figurarem 10 homens na Terra a depor, quando costumavam sempre ser
menos os que apareciam nos outros povoados para esse fim. E diziam eles:
que a igreja de Águeda era ainda de padroado real, e que o rei tinha na
vila de Assequins 18 casais e meio, que trazia em préstimo Monio Garcias;
na vila de Bolfiar, 7, que trazia Pedro Rodrigues; na Borralha, 5, que
pertenciam à Chancelaria e, finalmente, em Paredes, 4, que
trazia Domingos Egee, e que no Reguengo todo só havia sonegadas 3 leiras
que estavam na mão dos cavaleiros (milites) da Borralha e, bem assim,
que o rei havia dado a Martin Vivas as vilas da Castanheira, Alcafaz,
Mendo, Joanino, e 2 Balsamias. (Belazaimas ).
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Para pagamento de tributos era indicado
Ois, como regra.
O facto de se não designarem casais propriamente em
Águeda, não quer
dizer que ali já não houvesse ao tempo maior número de moradores do que
nas outras povoações de cuja freguesia era sede. Examinando o
inventário de PAIO GONÇALVES do ano de 1017, inserto num documento dos
Diplomata et Chartae de 1077, vê-se que, corresponde a um único casal
(casal de lausato) o sítio onde hoje assenta a vila de Águeda e onde,
naquele tempo, já existia a igreja, ou pelo menos qualquer capela ou
ermitério, o que nos é denunciado pela designação de porto de S. Eulália
dada ao sítio próximo da foz do Ribeirinho (Chão do rio) que ainda na
primeira metade do século XVII se chamava porto do Grajal, ou igrejal,
segundo consta do Tombo da igreja desse tempo.
A igreja de Águeda estava, pois, erecta em cabeça do
antigo casal de Lousado e era o único responsável, pelos foros , e
rações que pagavam os habitantes de cujas casas era senhoria, o seu prior.
Ao pequeno lugar que à roda da igreja se iria formando, a
princípio com o nome de S. Eulália, em breve se começou chamando S.
Eulália de Ágada, para o distinguir doutros lugares do mesmo nome, entre
os quais o da vila de S. Eulália (Aguada de Cima) de cuja existência já
temos conhecimento no ano de 957, e lhe ficava perto.
Assim se começou, ou, mais rigorosamente, se deve ter começado, a
concretizar numa povoação o nome que do rio adviera à região.
A circunstância de Águeda ainda aparecer denominada como burgo em mais
do que um documento de origem diferente (Arquivo da T. T. e no meu
Arquivo) da primeira metade do século XV, e a existência, para o caso
preciosa, dos Tombos da igreja e do hospital de Águeda já por si nos
dão uma visão retrospectiva que autoriza a supor que a origem de Águeda
era aquela que lhe assegura o inventário de Paio Gonçalves.
*
No. século XV, o mais brilhante e criador da nossa história,
Águeda,
que acompanhava as vicissitudes de Aveiro (empório comercial e grande
vila com 894 fogos) de que era termo, e dada a sua posição geográfica,
marcava o seu lugar como centro do tráfego entre as Beiras e a Costa e
como praça largamente frequentada.
A sua população, pelo recenseamento de 1527, (Vide A. H. P, vol. VI,
pág. 278) juntamente com a do Cazainho, era de 80 fogos, o que,
atendendo ao excedente da população flutuante, representava
sensivelmente mais do que o mesmo número de fogos em outro lugar, e era
constituída por mesteirais, mercadores,
/ 312 / industriais, e funcionários dos lugares vizinhos que ali
residiam, em cuja classe as próprias famílias nobres da terra
dos séculos subsequentes encontraram a sua origem.
Estranho poderá parecer que,
nesta altura, e cercada de terras
insignificantes com foral privativo, Águeda, onde todas essas terras se
abasteciam, não o tivesse também? Mas não é.
O foral do município não era mais que um conjunto de
disposições, sancionadas pelo rei, que regulavam a conduta entre o
senhorio e o foraleiro e resultava da necessidade que a humildade do
colono tinha de se defender da tirania do donatário.
Dentro do actual concelho de Águeda os vizinhos lugares
de Casal de Álvaro e Bolfiar podem fornecer-nos um claro exemplo do que
isso era.
Nos fins do século XV era senhor destes lugares João
Álvares da Cunha,
senhor de Pombeiro, descendente de João Lourenço da Cunha e de D. Leonor
Teles, a que foi rainha. Era um grande e poderoso fidalgo, portador de toda a altivez e dureza dos temperamentos medievos. Aqueles povos, pela
boca de Braz de Ferreira, (Corpo Cronológico, parte II, maço VIII,
doc. 80 da T. T.) seu procurador, diziam que João Alvares «levava
portagem e passagem dos moradores dos ditos concelhos e dos mercadores e estrangeiros que passavam pelos
ditos concelhos ora vendam e comprem ora nam sem teer forall» e, além
disso, cobrava «maiores comthias em trez dobros do que se levava nos
lugares honde avia forall» e «lhes tomava as roupas e palhas e ervas» e
«os fazia servir com os corpos e bestas e carros e os fazia a elles e
as mulheres
e filhos tusquinhar e maçar os seus linhos sem lhes pagar
dinheiro algum e se lhes nam faziam os ditos serviços os prendia e penhorava e lhes levava aquelas penas que queria e lhes fazia
acarretar e levar os foros e rendas que lhe aviam de
pagar ao paço onde morava...» e mais que «deviam pagar
quatro alqueires de trigo de fogasa cada lavrador pela medida
velha e o dito reu lhe os levava... pela medida nova que eram
cinco alqueires e meio» que os moradores de Bolfiar «tinham seus casais
patrimoniais com seus soutos e salgueirais que êle Ihes tomara os ditos
soutos e salgueirais e lhe tornara a aforar»; que deviam pagar 16 reis
por uma espádua de porco e agora pagavam 50; que, pelos forais dos
lugares próximos, em caso de haver cheias que levassem as sementeiras se
não pagavam fogaças e êle os obrigava a pagar. E por essas e outras
razões,
os possuidores de 9 casais de Casal de Álvaro e mais 7 no seu
limite que era BoIfiar, alcançaram, apesar da defesa apresentada pelo donatário, sentença favorável de D. Manuel, em Lisboa, a
11 de
Julho de 1503, que havia de servir de base ao futuro foral.
Se o pequeno Casal de Álvaro
assim procedia, Águeda não
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podia fazer o mesmo se, porventura, não se sentisse comodamente
instalada dentro do seu papel de termo da vila de Aveiro?
Certamente que sim.
Mas Águeda não devia a sua prosperidade à agricultura,
mas sim ao comércio e à indústria, como atrás se vê e ressalta da
qualidade dos seus moradores, que, por isso, desprezavam a condição de
munícipes, que os não isentava de pagar a tinta e dos outros encargos do
concelho, para se acostarem ao privilégio real, que lhes oferecia essa
garantia com tal facilidade e abundância, que se tornava impossível
encontrar em Águeda quem servisse cargos públicos, como consta das queixas
feitas
nos capítulos de Aveiro, nas cortes de Évora em 1451. (História
da Sociedade em Portugal no século XV, por A. S. S; COSTA LOBO, pág. 560
e 164 a 166). E eis a razão porque Águeda, desde tão remota data a mais
importante e populosa terra da sua região, nunca foi concelho enquanto
os valores sociais se não mudaram.
Novembro de 1932.
CONDE DA BORRALHA
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