[Vol. III -
N.º 10 - 1937]
É INTERESSANTE a memória que
acerca de Aveiro escreveu CRISTÓVÃO DE
PINHO QUEIMADO, em Janeiro de 1687. É a memória mais antiga de Aveiro, que se conhece;
nela se faz a descrição da terra e sua gente, instituições e monumentos.
Serviu de base ao estudo que da vila de Aveiro publicou o Padre CARVALHO
DA COSTA, na sua Corographia Portuguesa, tomo lI, impressa nos princípios do século XVIII.
Este
autor preparou o original da sua obra nos fins do século XVII, e
recolheu os elementos de pessoas naturais ou residentes nas
diversas localidades. Pode admitir-se que tenha sido PINHO QUEIMADO,
quem, desenvolvendo a sua memória, tenha escrito a
maior parte do trabalho relativo a Aveiro que CARVALHO DA COSTA
publicou, e que distribuiu pelos seguintes capítulos: Da descripção
topográfica da Villa de Aveiro; Dos conventos, que tem esta Villa de
Aveiro, & de seus Fundadores; Da Nobreza desta Villa, privilegios, &
suas grandezas; Das pessoas naturaes desta Villa, que florecérão em
santidade, virtude & letras; Das
pessoas naturaes de Aveyro, que occupárão postos nas guerras; Da
fundação e etymologla da Villa de Aveyro; Do termo da Villa de Aveyro.
Há partes da memória de QUEIMADO, transcritas textualmente por CARVALHO
DA COSTA; outras partes foram suprimidas.
O original da memória de PINHO QUEIMADO foi passando para
sucessivas mãos, e julgo que chegou a ser pertença de V. C. C. de Sousa
Brandão, (talvez da vila da Feira), que o copiou, não sei em que data
nem para que fim, mas tal cópia foi feita,
há pelo menos 73 anos, e publicada a primeira vez, não sei por quem, no
mês de Fevereiro do ano de 1864, no jornal aveirense Campeão das
Províncias, nos números 1207 a 1210, e novamente foi publicada no mesmo jornal em 1898, por J. RANGEL DE QUADROS.
São raríssimas hoje as colecções deste jornal, se é que existe alguma
completa, e sujeitas a perderem-se totalmente.
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Para que não se perca o texto da memória em questão, vamos aqui
reproduzi-lo, conforme foi publicado em 1898, mas fazendo-lhe as
seguintes correcções: o jornal diz Roscimos (?) e deve ser Roseimos; não
souberam ler o original ou a cópia; substituímos Faxas por Faias, «e
com
ordem de precedência»,
por sem ordem de precedência. Estas emendas concordam com
o texto de CARVALHO DA COSTA.
QUEIMADO escreveu quando Aveiro declinava da sua anterior grandeza,
principiada no século XV com o seu donatário o infante D. Pedro, e
continuada no século XVI.
Uma das informações mais interessantes que nos dá PINHO
QUEIMADO, é a do mau estado da barra de Aveiro, e maneira
de a melhorar, no entender de dois engenheiros holandeses.
QUEIMADO descreve-nos a vila de Aveiro, o seu brasão de armas, a sua
população, os seus muros, as suas produções, famílias nobres, igrejas e
ermidas.
A actual cidade de Aveiro conserva ainda aproximadamente
a fisionomia que tinha no século XVII, mas dos seus muros ou muralhas
nada mais resta do que dois lanços, um, que termina
na Porta do Sol, próximo da igreja de S. Domingos, e outro na
retaguarda das casas da rua de Santo António, e vedando parte da cerca
do Liceu, a qual pertenceu à casa dos marqueses de Arronches, esta e a
cerca hoje incorporadas no Liceu.
A igreja de S. Miguel foi demolida em 1835, parece que
por ameaçar ruína, e das quatorze ermidas ou capelas que
QUEIMADO menciona, já não existem as seguintes:
− a de Nossa Senhora da
Graça, que ficava situada no princípio da rua hoje chamada do Carmo, e
fazia esquina para a rua do Carril; já em 1810 estava em ruínas; a de
Nossa Senhora do Hospital, que ficava na rua de Vila Nova, hoje
denominada de Manuel Firmino; em 1820 começou a arruinar-se e em 1860 as
ruínas foram compradas por um particular; a do Corpo Santo, existente
perto do
bairro piscatório; a de S. Gregório, também conhecida pela
designação de Nossa Senhora da Ajuda, que existiu na actual
rua do Hospital Novo; foi demolida para se alargar esta rua em Agosto de
1915. Com parte do material desta capela construiu-se outra um pouco mais para o sul, no princípio do lugar de Santiago
das Arneiras, e foi inaugurada em 16 de Setembro de 1917; a de S.
Martinho, que julgo ter existido ao nascente da vila, na rua ainda hoje
denominada de S. Martinho; a de S.
Sebastião, próxima da precedente, julgo que existente na rua chamada de
S. Sebastião, e demolida no ano de 1833; a de Santo Amaro, cuja situação
ignoro; a de S. João, situada no Rocio, à beira do esteira das
Pirâmides, destruída em 1911, para aformoseamento do local; a de
Santiago, ou Sant'Iago, das
Arneiras, arruinada em 1820, e totalmente eliminada em 1861.(1)
Aos edifícios dos conventos, sucedeu o seguinte: o do convento de Jesus foi transformado em 1911 em Museu; o dos carmelitas
/ 91 / descalços, junto à igreja do Carmo, foi há poucas dezenas de
anos demolido; o das carmelitas descalças, da invocação de S. João
Evangelista, foi destruído em parte há algumas dezenas de anos para se
construir a Praça do Marquês de Pombal, ficando o resto do edifício
ocupado por algumas repartições públicas; o convento dos franciscanos
está transformado, há alguns anos, em anexo militar; finalmente, o
convento da Madre de Deus, conhecido por convento de Sá, foi destruído
por um incêndio, e sobre as suas ruínas se construiu o Quartel de
Cavalaria, por iniciativa e custeio parcial da Câmara Municipal de Aveiro.
O túmulo de D. Brites de Lara existe tal como no-lo descreve PINHO
QUEIMADO; o de João de Albuquerque já não se encontra hoje na Capela do
Senhor Jesus da igreja de S. Domingos, mas sim na Capela de Nossa
Senhora da Misericórdia, à entrada e à esquerda, na mesma igreja. O
túmulo encontra-se porém bastante danificado com as várias mudanças que
tem tido.
Os velhos solares desapareceram; apenas uns três ou quatro subsistem;
das muitíssimas famílias nobres que viviam aqui, pouquíssimas têm hoje
cá os seus representantes.
CARVALHO DA COSTA menciona todas as famílias nobres que cita PINHO
QUEIMADO, com excepção de Correas-Azevedos com Pintos Resendes; Pinhos
Queimados
− com Carvalhos Simões; Novaes
− Viegas
− com Pinhos
−
Tavares
− Amaraes; Pinhos Sampaios
− com Pinas
− Ferreiras
− Machados.
Tratar-se-á de um lapso? PINHO QUEIMADO diz que indicava as famílias
mais nobres e antigas desta vila desde a sua origem conhecida; mas
CARVALHO DA COSTA menciona ainda as seguintes, que QUEIMADO não
menciona:
Barretos Feios com Melos; Fonsecas Vasconcelos; Silvas Côrte-Reaes com
Ferreiras Betancores; Pachecos Leitões; Costas Bombardas com Ribeiros Silveiras; Ribeiros Calados com
Avelares Fonsecas; Freires de Andrade com Silvas Pimenteis; Tavares
Pachecos com Teixeiras Limas; Costas Saraivas com
Pintos Cunhas; Ribeiros Leitões com Ribeiros Silveiras; Leões Lobos com
Silveiras Bacelares; Maias Gamas com Amarais Teixeiras. Pachecos Varelas
com Pereiras Carvalhos. Ribeiros Oliveiras com Maias Andrades. Soares
Albergarias com Favelas Chamorros.
Aveiro continuou a decair no século XVIII e XIX do seu antigo
esplendor; presentemente pouca tendência mostra para um progresso
apreciável, principalmente se compararmos esta cidade com outras
localidades cujo progresso tem sido notável.
PINHO QUEIMADO, pelo trabalho que escreveu, e pelo interesse que
mostrava na barra de Aveiro, era por certo daqui natural, ou aqui
viveu, tanto mais que em Aveiro e em Esgueira viviam famílias de apelido
Queimado.
Os Queimados estavam aparentados com os nobres AImeidas.
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Segundo um nobiliário manuscrito que tenho presente, houve
um fidalgo, Henrique de Almeida, do tempo de D. João lI, que
teve uma filha chamada D. Isabel de Almeida de Sequeira,
mulher de Sebastião de Pinho Botelho, filho de Cristóvão de
Pinho e de Maria Queimado Rebelo. Estes são ascendentes do autor da
memória sobre Aveiro.
Um filho daquele, Henrique de Almeida, de nome João de
Almeida, foi almoxarife em Aveiro, casou com uma D. Joana
Queimado Vila Lobos. Uma irmã desta casou com João de Sousa, cujo
neto, Inácio de Almeida Queimado, casou com Maria
Borges de Almeida, de Esgueira. Estes tiveram uma filha chamada Isabel Queimado que casou com seu tio Gonçalo Homem
de Almeida, efectuando-se o casamento na igreja de S. Miguel
de Aveiro em 13 de Maio dê 1607.
Não é, porém, destes últimos que descende o autor da memória, porque os filhos destes foram Inácio de Almeida, que
morreu ao nascer; Narciso Homem, nascido em 29 de Outubro
de 1619 e se fez apóstolo da Companhia de Jesus, e foi para a
China; e Inácio de Almeida Queimado, nascido em 13 de Junho
de 1615, que se fez frade crúzio, com o nome de D. Inácio da
Trindade.
Este D. Inácio era tio de D. Angélica de Almeida de Eça,
a quem deixou a capela de Alquerubim.
Aveiro, 2 de Fevereiro de 1937.
FRANCISCO FERREIRA NEVES
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MEMORIA SOBRE A VILLA DE AVEIRO
Na latitude de 40 graus e 30 minutos, e na longitude de
11 graus e 13 minutos, onde o Vouga mistura suas aguas com as do Oceano, a nove leguas do Mondego, e dez do Douro tem seu assento a antiga e muito nobre, e
notavel villa de Aveiro, uma das melhores de Portugal, e maior povoação,
excepto Coimbra, do que nenhuma outra da provincia da Beira, nem de
Traz-os-Montes. Dilata-se quase toda de norte a sul em forma prolongada
sobre uma fértil, e aprazível campina, que não tem competidora em muitas
léguas em roda; e descobrindo vistosa face ao poente, faz alegre, e
magestosa face, e perspectiva ao norte.
Acerca da etymologia do nome d'esta villa de Aveiro não ha perfeita
certeza: mas fr. Francisco de Santa Joana, padre de muito saber, e de
muitas, e curiosas notícias, e versado em antiguidades, e que foi por
muitos annos guarda do cartório dos frades dominicos d'esta villa,
mostrou-me em
um livro muito antigo manuscripto em pergaminho uma memória que eu
trasladei em que dizia que o nome de Aveiro era composto das palavras
Ave, e iro, ou eiro − que significa o mesmo que enguia, porque se criam em
grandissima copia, e as mais gradas e formosas, como não ha em parte nenhuma d'este reino, e por serem tidas por mais saborosas; e que por isso
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as armas da vilIa era um escudo com um pato ou ave aquatica estendida, e
um sol de uma banda, e um crescente da outra; e no mesmo livro tinha as
ditas armas divisadas, e illuminadas pela maneira seguinte, a saber:
− O
campo do escudo era azul,
− a ave de prata
− o sol de ouro
−, e a lua, ou,
crescente de prata, e cinco estrellas tambem de prata na orla simeira do
escudo
− alludindo á pureza do clima, e á abundância das aves aquaticas
que povoam a ria, muitas naturaes, e outras que vem das partes do norte,
e outras regiões, que se matam e pescam de dia, e de noute, e que
servem de sustento, e de regalo a muitos milhares de pessoas, e de
muita ganancia aos que se entregam á vida da caça e da pesca, e de
diversão aos nobres.
As aguas do Vouga augmentadas com as de alguns ribeiros, que cercam a
villa de graciosa verdura cavaram em outro tempo na espaçosa planicie
um não profundo, mas ameno valle, que se alarga entre quintas contra o
oriente, e deixando espaços de terreno mais elevados dos quaes se
fizeram ilhotes e salinas, conduziu a industria um canal, ou esteiro
que sobe, e desce com o fluxo, e refluxo das marés, cortado com duas
pontes, uma de boa fabrica, e guarnecido com dilatado caes que em tres
pontes se termina. Na margem d'este esteiro de uma, e outra parte correm
as casas de varios mercadores, na da Ribeira os naturaes; na do Alboy os
inglezes, que lhe pozeram aquelle nome de Albyon sua terra natal que
significa Inglaterra, ás quaes fazendo costas outras ruas por todo
aquelle sitio, enchem dois bairros bem povoados de mercadores,
mareantes, pescadores e marnotos.
Para a parte boreal se vão estendendo, e levantando as ruas até ao
bairro chamado de Villa nova, por se unir com as quintas de alguns
principaes da terra, e chega por grande distancia sem interrupção alguma
á ermida de N. Senhora da Alegria, que supposto fique em Sá, domínío da
illustre casa dos Almadas, conservam n'ella posse os moradores da villa,
e camara visitando-a com festas, e procissões, e os pescadores
servindo-a com privilegios, e administração; razão por que pertence a
Aveiro o mosteiro da Madre de Deus, tendo de mais de ficar na freguezia
da Vera Cruz, e sobre tudo por fundar-se a capella mõr com o sacrario
(onde consiste a posse dos conventos) no lugar que já dentro dos limites
da Villa lhe deu em sua quinta Sebastião Pacheco Varélla.
Da ponte para a parte austral se continua com pequena subida o quarto bairro, que é o melhor e o mais antigo da Villa em que reside quasi
toda a nobreza d'ella; e este sómente é cingido de altos muros, obra
então magnifica do Infante D. Pedro filho do sr. rei D. João o primeiro,
e os melhores, que se conservam desde aquelle tempo. Tem estes, como os
de Jerusalem, nove diversas entradas (bem que nelles se encontrem doze
portas), e é a primeira a que chamam a da Villa, da qual sáe para o
caminho real uma larga rua, que dividindo-se com a egreja do Espirito
Santo em outras duas, já cercadas de frescas hortas, e lavranças,
acompanha para o nascente as fabricas dos oleiros com que se compõem o quinto bairro.
As outras oito portas contando-as pelo circoito são a do Sol − a do
Campo
− a do Côjo
− a da Ribeira
− a do Alboy
− a de Rabães
− a de Vagos
entre a qual, e a de Santo Antonio se acha a frondosa e ordenada
alameda, que os estrangeiros celebram e admiram; pois na vista da ria, e
amenidade do Campo se lhe não dá semelhante em todo o reino: á vista
d'ella corre uma fonte das cinco, que ha na Villa, fora as de que se
aproveita em pequena distancia, das quaes é a principal a da Ribeira,
cuja água salutifera, e suave trazida de longe pelo valle oriental sobre
arcos de cantaria, vem despender-se por quatro canos na praça em
chafariz de esquadria muito alta e sumptuosa, tão immediato ao esteiro
que divide a Villa, que desde os bateis fazem os mareantes as aguadas,
para abastecer as embarcações.
Abunda a terra de pão, vinho e legumes, e muita abundancia de saborosas
fructas, e excellentes hortaliças em grande quantidade nas hortas, e
quintas, de que a Villa por toda a parte se adorna com viveiros de
peixes, capellas, varandas, e invenções de fontes naturaes, e
artificiaes; especialmente a fructa de espinho é tanta, que dá carga a
muitos navios para Inglaterra: é o gado maior d'este território tão numeroso, e
as aves domesticas / 94 /
tão multiplicadas, que depois de abastecerem Coimbra, se conduzem
incessantemente a Lisboa, e só os ovos d'esta Villa, e circunvisinhanças,
que sáem para Lisboa e Porto importam em cada anno para cima de oito mil
cruzados.
Criam seus pastos ferteis grande multidão de formosos cavallos
especialmente os que são mestiçados de egoas de cá, e cavallos que vem
de Andaluzia de Castella. A caça do monte com ser sempre buscada, é
inextinguivel: a caça da ria é incomprehensivel pela abundancia, e
multiplicadas
especies de aves aquaticas, como são os excellentes Lavancos
− os
Caturros
− as negras
− os maçaricos reaes
− as marrecas
− as rábis coêlhas
− e
muitas mais que são mui gostosas para se comerem, além de outras de que
não se faz caso, por saberem muito ao marisco. Tem havido annos que vem
muitas aves de fóra como são as ajãjas, que são uns passaros como garças
e tem o bico comprido e chato, e a ponta á feição de colher; e tem apparecido tambem em alguns invernos uns passaros muito maiores, e mais
grossos do que as garças a quem chamam Onocrátalos, que tem na raiz do
bico pela parte de baixo, e pegado á garganta um fole ou saco, onde
guardam provisões de peixes pequenos, que lhes servem para as longas
viagens, e dão gritos tão agudos, que de noite fazem pavor. Dizem os
entendidos, que estas aves vem da Suecia e da Noruega, e dos sitios mais
septentrionaes quando são apertados pelos grandes gelos d'aquellas frias
regiões: a sua carne é negra, e de mau gosto, não obstante terem debaixo
da pelle muita gordura.
Uma grande parte d'estas aves aquaticas apparecem na ria por meado do
Outono, e retiram-se quando adivinham a primavera, outras muitas fazem
suas creações pelas marinhas, e juncaes: só aos nobres é permitido caçar
com esmerilhão, e aos caçadores d'estes sob fiança: os peões, e
pescadores podem caçar com redes; ou armadilhas, e artimanhas de que uzam de dia e de noite com grande proveito d'elles, indo vender a caça a
Coimbra, ao Porto, e a Lisboa, onde é muito estimada.
A creação, e a pesca da ria é incomparavel: os regalos do sertão lhe
attrae o provimento do pescado, que sustenta e saborea muita gente do
reino, e em particular a da provincia da Beira, e além da que dá o mar
em
toda a costa d'esta comarca, e das lamprêas, que a seu tempo sobem pelo
rio, traz a maior copia de tainhas
− mugens
− solhas
− azevias
− lingoados, e as
mais formosas e mais saborosas enguias por seu sabôr e grandeza como
as não ha em parte alguma nem no reino, nem fora d'elle dizem os mesmos
estrangeiros: e ás enguias grandes chamam os foraes antigos da Terra de
Santa Maria irôs, e tambem eirôs
−: e por estas e outras rasões creio ser
verdadeira a origem do nome d'esta nobre villa.
Além d'estes e outros peixes que entram na ria pela barra, ha muitas
especies mais somenos, que dão tambem sustento a muita gente, e de que
se fazem caldos, e sôpas mui saborosas de que os nobres tambem uzam em suas mezas: e ha tambem muitos mariscos, que conservados em
escabeches de várias formas, passam aos estrangeiros, e ás conquistas,
depois de abundar a corte. O sal é a principal, e a mais abundante
producção, que abastece muitos mercados do reino, e de fóra; e d'aqui se
vê que unindo-se
os quatro elementos, procuram fazer Aveiro porto rico pelo commércio.
A mudança de muitas famílias, que foram morar para outras terras do
reino por cazamentos, ou conveniencias, as guerras da Africa onde militaram, e morreram muitos nobres d'esta villa, a declinação dos tempos, e
as
epidemias tem diminuido o povo, que hoje excede a pouco mais de dois
mil e setecentos visinhos repartidos em quatro parochias todas da ordem
d'Aviz, de que é matriz a igreja de S. Miguel com prior, coadjutor, thesoureiro, e quatro beneficiados. Tem capellas muito antigas, e rendosas
entre as quaes a de S. Braz, que possue D. Thomaz de Noronha
− a de S.
Vicente que pertence aos Pinhos, e de outros morgados: tem muitos
tumulos, entre os quaes sobresáe os dos morgados de Balacó que estão na
sua
antiga capella de architectura gothica do lado do Evangelho. Tem esta
egreja muitas inscripções gothicas, e duas inscripções de letras arábicas,
uma
das quaes está á entrada da porta lateral por onde se entra pelo lado do
sul,
todas esculpidas em pedra, e varias sepulturas muito antigas com armas,
e
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inscripções de famílias nobilissimas. Tem annexa e visinha da egreja uma
albergaria muito boa, em que todo o peregrino por tres dias se hospeda.
Tem este templo hoje o mais antigo d'esta villa por inestimavel thesouro
uma reliquia de S. Sebastião.
Não são menos estimaveis as outras tres vigairarias do Espirito Santo
− da Vera Cruz,
− e N. Senhora da Apresentação, que primeiro se chamou de
S. Gonçalo. As ermidas, que não estão contiguas ás egrejas são quatorze
nos districtos das quatro freguesias a saber: a da Madre de Deus no
Seixal
− a de S. Roque
− a de N. Senhora da Graça
− a de S. Bartholomeu
− a de
N. Senhora do Hospital
− a de S. Gonçalo
− a do Corpo
Santo
− a dos Santos
Martyres
− a de S. Gregorio
− a de S. Thiago
− a de S. Martinho
− a do S. Sebastião
− a de Santo
Amaro
− a de S. Bernardo, não esquecendo além destas, e muito venerada a de S. João ao pé do esteiro: servem estas
egrejas,
e capellas setenta e dois clérigos d'esta villa.
Em todo o reino não ha egreja da Mizericordia, que iguale a d'esta villa
pela sua magestade, e belleza, foi riscada por um architecto florentino:
tem uma grande imagem de Christo cruxificado de marfim, que mandou da
India o capitão Diogo de Oliveira Barreto, natural d'esta villa,
fallecido em Malaca, e outro de estatura humana do Senhor Ecce Homo, que é a suspensão de
nacionaes, e estrangeiros, que entendem de escultura, a qual foi trazida
de Inglaterra, e escondida aos desacatos da heresia quando lá governava
Henrique VlII, que abraçou a diabolica doutrina de um frade da ordem dos
Agostinhos descalços, digo, dos Agostinhos calçados, que se chamam Gracianos, o qual frade se chamava Luthéro, que depois se casou segundo dizem com uma freira professa: aquella santa imagem tem servido de modelo
a outras, mas ainda não foi possivel imital-a: muitos milagres se lhe
atribuem, e certamente não tem o reino outra similhante. Os irmãos enchem o numero de cento e setenta e cinco nobres com officiaes, e muitos
capelães.
Tem esta villa d'Aveiro seis conventos: tres de religiosos, o
1.º o de
N. Senhora da Misericordia dos frades de S. Domingos fundado pelo
infante
D. Pedro, no ano de 1423: sustenta ao presente quarenta religiosos, e
tem
de rendimento seis mil cruzados entrando os senhorios dos casaes de Fermelainha, da freguezia de Fermelã, e a quinta de Canellas, que lhe
deixou
João de Albuquerque fidalgo illustre, que jás sepultado na capella do Senhor Jezus em tumulo de pedra com a effigie d'elle estendida; e a
capella
mór é dos marquezes de Arronches. Tem uma grande reliquia de Santo
Lenho, que em um incendio se conservou intacta.
Defronte d'este convento fica o real mosteiro de Jezus das religiosas
tambem dominicas onde jás o corpo da bemaventurada princeza Santa Joanna, irmã do sr. rei D. João
II do nome: estes dois conventos ficam
dentro
da porta do sol, e fóra da de Vagos; para o sul, em pouca distancia está
o
convento de Santo António, dos frades menores da provincia da Soledade:
fundou-se este convento no anno de 1524 por João Martins do Cafanhão,
cavalleiro da ordem de Christo, e sua mulher Izabel da Costa, d'esta
villa,
ficando a ser seus padroeiros, e hoje é este padroado da casa de villa
verde.
No extremo opposto da villa para a parte do norte, está o convento
dos carmelitas descalços fundado em 1613 pela ex.ma D. Brites de Lara,
mulher do ex.mo D. Pedro de Lara, digo, D. Pedro de Medicis irmão do
gran-duque da Toscana, que como padroeira está sepultada em um alto e magnifico sepulchro de jaspe de várias côres na capella mór da parte do evangelho; este convento é casa de professos, e moram nelle trinta e cinco
religiosos.
Mais adiante fica o convento da Madre ele Deus, que pelo sitio se
appellida
− de Sá
− é de religiosas da terceira ordem de S. Francisco.
O último no tempo, e mais florescente na virtude é o religiosissimo
mosteiro de carmelitas descalças, dedicado a S. João Evangelista, que
dentro dos muros da villa fundou o duque d'ella D. Raymundo nos seus paços,
que com essa obrigação lhe deixou a ex.ma D. Brites de Lara.
Além dos seis conventos há dentro dos muros um recolhimento de
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terceiros de S. Francisco; e ha mais uma boa egreja dos terceiros
seculares do mesmo Santo.
Correspondem a estes edificios com que a villa se ennobrece as casas
sumptuosas dos particulares, quasi todas, dizem os antigos, feitas de
pedra que lhes veio por mar, pois não se acham pedreiras tão perto pela
terra: as dos vulgares por branqueadas e vistosas, as dos nobres com
frontespicios de sacadas, e nos bairros dentro dos muros, e villa nova
apenas se achará algum sem jardim com agua: por esta causa, e pela
largueza de todas as ruas, e claros das praças, e gelozias de diversas
cores, é a villa por toda a parte desabafada e alegre.
Avantajam-se as casas do marquez de Arronches, de que é hoje senhor o
muito illustre sr. Henrique de Sousa Tavares, primeiro marquez de
Arronches e 3.º conde de Miranda por mercê de el-rei nosso senhor D.
Pedro II do nome, e é do seu conselho de estado, governador do Porto, e embaixador de
Hollanda, de Castella e de Inglaterra, e ha de succeder-lhe na sua
illustre casa e titulos o seu ill.mo filho o sr. Diogo Lopes de Sousa,
que está para se casar com uma filha do sr. D. João Mascarenhas, conde
de Sabugal,
e chama-se sr.ª D. Margarida de Menezes.
Mas ainda melhores casas pelo sitio sobre a porta da Ribeira são as dos
nobres Tavares, senhores da villa de Mira, e n'esta moradores, pois
egualando com abobadas, muros, e ladeiras sobre a rua, á qual deram o
seu
appellido de Tavares, se entra em côche até á primeira sala: sobre outra
abobada junto da porta da Ribeira, e por cima d'esta a olhar para o
esteiro, e praça tem um jardim com flores, e plantas, onde está tambem
uma grandiosa estatua de pedra de figura humana com uma serpente
enroscada em uma das pernas, a qual é antiquissima e ha quem diga que é
do tempo dos romanos, mas isto é tradicção que me parece sem fundamento.
Era senhor d'esta casa ainda não ha muitos annos o muito nobre senhor
Bernardim de Tavora de Souza Tavares, que serviu em tempo do sr. D.
Affonso VI nas guerras com Castella, e commissario de cavallaria no
Alemtejo, e foi mandado por el-rei nosso senhor para governador de
Mazagão, e ha de succeder-lhe o muito nobre sr. Manuel de Souza Tavares,
senhor de Mira, que é capitão de infanteria, de soccorro a Ceuta.
A nobreza originaria de Aveiro pode deduzir-se de tres principios: o
primeiro dos Turdulos, que depois do Diluvio, e da dispersão dos povos,
e como descendentes de Japhet, que povoaram a Azia menor e a Europa,
povoaram tambem toda a costa occidental desde o Douro até ao Tejo na
qual, diz Brito, se perpetuou aquella nobreza antiga com menos mistura
das nações estrangeiras, que em nenhum outro districto de Luzitania;
e ha quem diga que depois se misturara com esta raça, raça dos
Anglo-saxonios, e da
Grecia que produziu homens bem feitos, valentes, e esforçados para a
guerra, prudentes na paz, e cortezes no tracto entre si. O 2.º dos Leonezes
que ennobreceram a Terra de Santa Maria, que comprehendia desde Gaya â
beira do Douro em frente do Porto, e a comarca da Feira, a de Esgueira e
esta Villa, tendo esta Terra sua primitiva origem na Villa da Feira, e
Arrifana de Santa Maria. O 3.º dos portuguezes antigos que illustraram
a provincia da Beira a que el-rei D. Affonso III chamou
− Lago de sangue
nobre
− e a chronica do mosteiro de Grijó dos conegos regrantes de S. Agostinho
diz assim a folhas 77
− Não pode duvidar-se de tudo isto por ser a terra da
Feira, que se estende desde Gaya até Aveiro, desde o anno de 900
− e já de
antes habitada de gente illustrissima em tanto que os privilegios que os
senhores reis d'estes reinos foram dados aos Infanções, costumavam
dizer
− que as haviam iguaes nas honras, e mais graças, e isempções aos antigos
Infançôes da Terra de Santa Maria, como declarou D. João I nos privilegios
que deu á cidade do Porto, Braga e Guimarães.
Desde então para cá
tirou muitos a côrte, e as fronteiras, e as
armadas, e as conquistas nas terras dos mouros na Africa, e as da India,
sepultando-se a maior parte das familias nobres em eterno esquecimento,
umas
por acabarem de todo as suas gerações especialmente nas varonias, e
outras por não terem patrimonios para poderem sustentar sua nobreza, e
outras,
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ou por casamentos, ou outras rasões de conveniencia foram habitar na
côrte, e nas províncias com que não tratando das nobres casas, que
procedem de Aveiro, se omittem tambem as que gozam em outras partes
dos morgados e capelIas, que aqui possuem.
Dos nobres que n'esta Villa a espaços residem tem em primeiro lugar os
mui nobres fidalgos Souzas Menezes, capitães-móres d'esta Villa, e governadores da comarca de Esgueira; e tambem os Sás
− Pereiras
− Coutinhos
− que
descendem dos Roseimos. As mais familias de nobreza conhecida, e
legitima, nomeando-as sem ordem de precedencia são as seguintes:
Albuquerques
− Britos
− unidos com Pachecos VarelIas.
Rangeis− Quadros
− com
Oliveiras PerestrelIos.
RebelIos
− Pinhos
− com Silveiras.
Campos
− Vieiras
− Guedes
− com Figueiredos Villalôbos.
Pimenteis
− Coelhos
− com Athaydes.
Ribeiros
− Picados
− com Barretos
− Ferrazes.
Mascarenhas
− d'Eças
− com
Azevedos
− Madureiras.
Ribeiros
− Silveiras
− com Nogueiras.
Leitões
− Alfenas
− com Ribeiros
− Silveiras.
Corrêas
− Azevedos
− com Pintos
− Rezendes.
Botelhos
− d'Eças
− com Ferrões
− CastelIo Brancos.
Souzas Pachecos
− com Oliveiras Barrettos.
Soares
− Magalhães
− com Couceiros
−Costas.
Rangeis
− Quadros
− com Viegas
− Cardozos.
Falcões
− Figueiredos
− Pachecos− Noronhas
− com
Pereiras
− Romanos
Pereiras
− Silvas
− Leilões
− com Pachecos
− Ramalhos, e com
Magalhães
− Castelo Brancos.
Pachecos
− Henriques
− Cervães
− Cabraes
− com Mottas− Tabordas.
Sepães
− Silvas
− VarelIas
− Henriques
− Ribeiros Calados
− com Ribeiros
Leitões.
Pinhos
− Queimados
− com Carvalhos Simões.
Pereiras
− d'Eças
− Silveiras
− Souzas
− Ribeiros
− com Oliveiras.
Brandões
− Azevedos
− Marizes
− com Corrêas
− Coutinhos.
Leitões
− Costas
− Vieiras
− Pinheiros
− com AveIlares
− Fonsecas.
Rodrigues
− Noronhas− Marizes
− Limas
− com Costa
− Abreus.
Santhiagos − Mattozos− Annes
− Marreiras
− com
Pachecos
− Souzas.
Pinhos
− Fonsecas
− Amaraes com Sampaios
− Souzas.
Gomes
− Arraes
− Abreus
− com Ribeiros
− Calados.
Faias
− Vizes
− Marques
− Romanos
− com Saraivas
− Ferrazes.
Novaes
− Viegas
− com Pinhos
− Tavares
− Amaraes.
Pinhos
− Sampaios
− com Pinas
− Ferreiras
− Machados.
Pereiras
− MelIos
− Magalhães
− Mexias
− com Costas
−Leitões.
Marizes
− Castros
Rangeis
−Quadros
− com Pachecos Varellas.
Silvas
− Mendes
− Ribeiros
− Maias
− com Rangeis
− Quadros.
Lopes Coelhos
− Freires
− Silvas
− com TelIes
− Silveiras.
Magalhães− Barros
− com Gomes− Silvas.
Eram estas as familias mais nobres, e antigas d'esta Villa desde a sua
origem conhecida, e cujas descendencias se tem espalhado não só em toda
a comarca como tambem pela província da Beira, e mais terras do reino,
onde faziam vantajosos estabelecimentos, e nobres casamentos em casas
distinctas, onde conservam os mesmos appellidos, e por cujos nobiliarios
todos, ou pela maior parte procuram aqui a sua originaria descendencia
como a mais pura, e illustrada.
Hoje que é na era de 1687 ainda se contam para cima de duzentas e
setenta sepulturas com legendas, e brazões, e armas esculpidas em pedra
em edificios novos, e antigos com suas divizas, algumas das quais estão
consumidas do tempo por serem pela maior parte de pedra de Ançã, que por
ser branda não é de tanta duração.
Como falIei da Villa da Feira, e de Arrifana de Santa Maria, é
tambem indubítavel que ahi houve nobreza antiga, e original, e ainda hoje
além da casa dos mui illustres condes da Feira, a qual hoje representa o sr.
conde
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D. Fernando Forjaz Pereira Pimentel de Menezes e Silva, senhor de todo
o condado, ha a família dos nobres Soares d'Albergaria, de Fijô
− dos
Ferreiras Leitões de Justas
− dos Ferreiras Silvas de Pombos, e ha as
antigas casas dos Pintos de Paramos
− dos Camellos de Villar de
Paraizo
− dos Carneiros e Machados de Espargo; e tanto na Feira, como em Arrifana ha ainda os nobres appellidos de
Borges
− Mattos
− Mascarenhas
− Pinhos
− Carvalhos
− Gomes Rebello
− Azevedos
− Magalhães
− Coutinhos
− Pereiras
− Lagos
− Botelhos etc. No seculo passado, e ainda no principio d'este houveram
algumas familias d'estes appellidos que viviam muito á lei dos nobres,
mas pela maior parte tem acabado, e outras transplantaram-se para outros
lugares onde gozam das rendas, e fóros que mandam cobrar por seus
feitores.
N'esta comarca da Feira houve o primeiro, e original solar dos Brandões
que eram dois irmãos Carlos Brandam, e Fernam Brandam que acompanharam
o conde D. Henrique quando veio para Castella, e d'ahi para Portugal;
eram naturaes de Normandia de França, e cavalheiros esforçados. Sendo
postos por fronteiros em Gaia e na Terra de Santa Maria em quanto o
conde D. Henrique foi peregrinar á Palestina, casaram com duas filhas de
Rui Fernandes de PorteI, que morava entre o mosteiro de Grijó, e a Villa
da Feira e ahi fizeram grandes casas onde moraram, e se chamaram os
paços de Brandão, que depois se povoou, e se fez a freguezia do mesmo
nome de paços de Brandão, que hoje tem.
Fernam Brandão seguiu D. Affonso Henriques na tomada de Coimbra, e
serviu aquelle principe, que depois foi rei, e teve muita descendencia
que foi para muitas casas nobres da Extremadura, Alemtejo, e para a
Beira Baixa.
A descendencia de Carlos Brandam foi para o Porto, Minho, e Beira Alta,
e durou a sua descendencia em paços de Brandão até ao tempo do reinado
do sr. rei D. Duarte e por este tempo passou a varonia para Corêxas ao
pé de Arrifana de Souza, e extinguiu-se esta familia em paços de
Brandão. Foi para Ossella Henrique Brandam que ahi casou e houve filhos
legitimos
− e muito depois veio um descendente da linha de Fernam Brandam
para commendador de Riomeão, Frossos, e Rossas chamado D. fr. Braz
Brandão, que eu conheci, e é hoje commendador d'Algôzo no Alemtejo da
ordem de Malta, e deixou cá filhos bastardos de que fez caso e um
d'elles chamado Domingos mora em Frossos, e outro mora em Rossas de
Arouca: mas é para admirar que em paços de Brandão não ficasse
descendencia d'esta illustre família nem legitima, nem ao menos bastarda,
nem nas freguezias circumvisinhas. O tempo destruiu os paços mas não o
nome, e os bens d'aquella grandiosa casa passaram a terceiros
possuidores.
Esta villa d'Aveiro teve sempre guarnição de tropa, e no seculo passado
em tempo do sr. rei D. João III tinha tropa de couraceiros, e de infantes
que acompanharam com a
nobreza d'esta villa o sr. rei D. Sebastião a Africa onde ficou com
elle destroçada na batalha de Alcacere quibir, ficando depois este reino
mui prostrado com o dominio de Castella. Altos juizos de Deus!
No reinado do sr. rei D. Sebastião formaram-se as ordenanças com
regimento de capitães-móres, e de sargentos-móres, que eram nomeados das
pessoas da primeira nobreza da comarca; depois d'estes eram os capitães
das companhias que tambem são tirados de entre a nobreza, o que ainda
hoje se cumpre por proposta dos vereadores, e nobreza da villa, e
provedor do concelho de Esgueira, Esta ordenança armada com differentes
armas brancas, e de tiro, faziam a defensa da terra depois que o sr. rei
D. Sebastião levou com sigo para Africa a flôr da tropa de couraceiros e
de ginetes: e depois que o sr. rei D. João IV foi acclamado rei d'estes
reinos em dezembro de 1640, foram creadas tropas de auxiliares, e foi
esta nobre villa uma das primeiras do reino que teve esta tropa em forma
de regimento com mestre de campo, e sargentos-móres de batalha e,
capitães, outros graus inferiores com fardamentos mui vistosos e
aceados, e peitos de aço, e esta tropa que foi adestrada para a guerra,
servia mui honrosamente
para defender a comarca, e terras visinhas dos ataques dos castelhanos
que
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procuravam conquistar estes reinos; e para impedir o desembarque de uma
armada do parlamento de Inglaterra mandado por um chamado Oliveiro
Cromuvél de accordo com o rei de Castella contra o nosso rei o sr. D.
João IV que santa gloria haja, mas por fim fizeram-se as pazes ficando
nós
em mais socego. A tropa dos auxiliares de Aveiro foi tida como a mais
briosa de toda a beiramar do reino, e a mais gabada pelos grandes
serviços
que prestou, pelo que foram-lhe dados muitos louvores, que ficaram registrados nos livros da camara de Esgueira. Havia tambem n'esta villa uma
boa companhia dos fachos, que acendia fachos, e fogueiras nas praias do
mar, para dar rebate de noute, e para fazer signaes. Toda a tropa de
Aveiro, e da comarca, dos auxiliares, e ordenança armada excedia a 3:500 homens dos mais valentes, e esforçados.
N'esta villa todos os nobres d'ella, e da villa de Esgueira que fica
d'aqui uma milha para o nascente, desde tempos antiquissimos tem
costume
de virem ao cáes em dia de S. João Baptista celebrar a sua festa com mui
luzidas cavalhadas onde appareciam, e ainda agora apparecem os mais
ricos
telizes primorosamente bordados com bordaduras de ouro e prata, e sedas
de varias côres, e veludos ricos de terciopêlo, com suas armas
brazonadas,
e divizadas, trajando os seus mais ricos vestidos de gala, e plumas, e
depois
de praticarem com a maior destreza, e a mais brilhante mestria
differentes
jogos de cavallaria, correm a sima pela villa, e acabada esta vistosa
funcção
seguem á estacada dos touros, onde cada um á porfia mostra a sua
destreza,
e manhas em acoçar os valentes animaes ora de pé, ora a cavallo; mas
raro
é o anno em que não haja algum desgosto, o que procede do descomedido
atrevimento, e ouzadia em os acometter, principalmente os touros que se
mandam vir do Alemtejo, e Santarém, por os quererem mais bravios do
que os de cá: e tambem n'aquelle dia se fazem mui vistosos fogos de artificio de dia, e tambem de noute com figuras como de bonifrates de mui
engenhosas invenções.
Esta villa padece o achaque de maleitas, que na quadra da primavera,
e do outono fazem adoecer muita gente, e em alguns annos morrem muitas
pessoas, o que é attribuido ás aguas encharcadas nas salinas, e outros
lugares plainos, onde morrem as aguas do inverno, que produzem exhalações
nocivas, e se não fosse este mal, que ainda se não pode affastar, seria
esta villa a mais formosa, e talvez a mais rica de quantas villas
maritimas tem o
reino; e as epidemias tem sido a principal das rasões porque a maior
parte
da nobreza, e pessoas abastadas a tenham abandonado.
Ha dois annos vieram aqui chamados pelos principaes d'esta villa, e
da de Esgueira, que soffre o mesmo achaque, dois estrangeiros
holIandezes
cujas terras dizem são mais baixas do que o mar, para darem o seu parecer com o fim de se remediar tão grande mal: os ditos estrangeiros
dizia-se
que eram muito entendidos na arte de engenheria das aguas a que chamam
hydraulica, e aqui estiveram quatorze mezes a observar as enchentes dos
rios, e a corrente do Vouga, as mares, e as correntes dos ventos, e por
fim
disseram que a causa de não escoarem as aguas era porque sendo a barra
d'esta villa em má direcção e ao sudoeste, e ter o canal mais de tres
leguas
que são 9 milhas da Vagueira de Mira aqui, nunca esta barra havia de
prestar nem para embarcações de mediano lote, nem para dar prompta saida a
todas as aguas, e que no sitio de S. Jacintho, tapando a barra de Mira,
fazer
alli uma nova, e que era aquelle o melhor ponto, mas que para levar a
obra ao cabo, e com a preciza segurança eram necessarios muitos mil cruzados para se gastarem, e muitos milhares de braços para trabalharem
n'ella, e que ainda assim não ficavam por fiadores da obra por ser feita em
areia movediça que estará sempre á mercê dos ventos e das marés e das
enchentes dos rios: e com esta resposta nos deixaram ficar no mesmo estado, e sem esperança de melhoramento até quando Deus quizer, e o sr. rei
não nos acudir com o seu braço real do qual ainda esperamos remedio a
nossos males. Se assim não for, d'aqui a pouco mais de meio seculo não
terá esta villa por moradores se não os que se occupam na pesca, alguns
mareantes, e aquelles que não tiverem meios de irem para outras partes.
/ 100 /
Deus Nosso Senhor nos acuda com a sua Divina Graça, e com a sua infinita
misericordia. Amen. Aveiro, 27 de janeiro de 1687. O licenciado,
Christovão de Pinho Queimado.
Fielmente copiada por mim do original,
V. C. C. de Souza Brandão.
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