A SITUAÇÃO
geográfica e política de Portugal na Europa, encravado entre a Espanha e
o Oceano em estreita faixa alongada, a grande extensão da fronteira
marítima guarnecida de costas e praias abordáveis, e a configuração do
território, de relevo muito acidentado cortado transversalmente pelos
grandes vales dos seus maiores rios, são circunstâncias que obrigam à
coordenação da defesa da fronteira terrestre com a do litoral e à
conjugação das operações militares em terra com as operações navais.
Estas
circunstâncias levarão o adversário que nos atacar por a fronteira
terrestre a exercer, conjuntamente, uma acção ofensiva pelo litoral, a
fim de, em obediência aos bons princípios de estratégia, meter os nossos
corpos de exército entre dois fogos opostos, dividi-los por várias
frentes e cortar-lhes as comunicações com os portos de reabastecimento.
No caso duma
guerra de Portugal com qualquer adversário ocupante do país vizinho, as
tropas aliadas que venham cooperar connosco nas operações militares
efectuadas no território português terão de desembarcar nos nossos
portos ou na nossa costa marítima. Foi o que sucedeu na memorável
campanha de 1808 que expulsou do território português a invasão francesa
comandada por Junot. Nesta campanha, as tropas portuguesas, de pequeno
efectivo e mal organizadas, foram eficazmente auxiliadas por tropas
inglesas desembarcadas nas costas ao sul da foz do Mondego, tendo sido
preferidas estas às do Norte em virtude das Divisões do invasor ocuparem
a região entre aquele rio e o Tejo.
Uma grande
parte do exército expedicionário inglês desembarcou, de 1 a 5 de Agosto,
de surpresa para o invasor, na
/ 74 / costa de
Lavos, próxima da Figueira da Foz. As tropas desembarcadas reunidas a
pouco mais de 2.000 homens de exército português foram bater, no combate
da Roliça, a Divisão francesa do general Delaborde, que foi obrigado a
retirar para o Sul. A esquadra seguiu à vista da costa, numa direcção
quase paralela à da marcha das tropas aliadas, indo desembarcar reforços
e mantimentos na praia da Maceira. Com estes reforços o efectivo do
exército aliado elevou-se a perto de 20.000 homens que, sob o comando de
Welesley, derrotaram os franceses comandados por Junot na batalha do
Vimeiro em 21 de Agosto de 1808.
Também se
encontram na guerra civil de D. Pedro
− D. Miguel
exemplos bem frisantes da acção decisiva dos desembarques de tropas nas
costas de Portugal e das desastrosas consequências da falta de defesa do
litoral para um exército ocupante do território nacional. Foram a falta
da defesa e a insuficiência da vigilância do litoral confiadas à Divisão
miguelista do Visconde de Santa Marta, desde a Figueira da Foz a
Caminha, que permitiram aos 7.500 soldados de D. Pedro desembarcar, sem
resistência dos miguelistas, em 8 de Julho de 1832, na praia de
Pampelido, (a uma légua ao sul da praia do Mindelo) e tomar a cidade do
Porto que veio a ser o baluarte das tropas liberais. Passado um ano, a
expedição comandada pelo Duque da Terceira desembarcava nas costas do
Algarve, entre Cacela e Monte Gordo, e ia decidir do resultado da guerra
em favor dos partidários de D. Pedro.
Os fins da
organização militar defensiva do litoral português não se limitam,
apenas, a impedir os desembarques do inimigo e a proteger as suas tropas
aliadas ou dos contingentes coloniais, coordenando as operações
terrestres, aéreas e navais. Devem corresponder, também, à função de
facilitar a entrada pela fronteira marítima do material de guerra e
munições, das matérias primas e maquinismo necessários ao seu fabrico, e
de vários abastecimentos que não podem entrar pela fronteira terrestre
para suprir as faltas dos recursos do país.
Esta
importante função da defesa do litoral é essencial ao bom êxito duma
campanha em território nacional, porque Portugal não tem os carburantes
indispensáveis na guerra moderna, não possui uma indústria siderúrgica
suficientemente desenvolvida, é falho do ferro e pobre no carvão,
necessários ao desenvolvimento daquela indústria, e deficiente em outras
matérias primas indispensáveis na sustentação duma campanha.
Para poder
satisfazer às finalidades, que sumariamente expomos, a defesa militar da
fronteira marítima tem de ser estudada e organizada principalmente nas
zonas das praias abordáveis, das costas próximas dos portos e das
barras, de localidades que possam servir de bases ou de objectivos a
prováveis operações militares ou que venham a ser bases de
abastecimentos.
Pelo exame
atento da carta corográfica de Portugal, especialmente
/ 75 / na região que
compreende o vale e o estuário do Vouga e se estende até ao mar,
verifica-se que a zona do litoral de Aveiro, desde Espinho ao Cabo
Mondego, apresenta condições naturais notáveis para a defesa militar do
território nacional.
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* *
Vários factos
comprovam a notável importância militar de Aveiro, do seu porto e da
costa vizinha, desde épocas afastadas na história de Portugal até nossos
dias.
Na grande
esquadra, organizada no Porto, em 1418, para transportar a expedição da
conquista de Ceuta, iam navios armados no porto de Aveiro.
Saíram também
do mesmo porto, em cujos estaleiros se construíram naus e galeões, no
século XVI, alguns navios da frota que em 1548 levou à África o exército
de D. Sebastião derrotado em Alcácer-Quibir.
O porto,
servido por uma barra profunda e facilmente acessível a grandes navios,
era muito frequentado, nessas épocas, dando à vila considerável
movimento comercial. Mas o aproveitamento para salinas duma grande área
de terrenos inundados, alterou as correntes em direcção e intensidade,
dando origem ao estreitamento da barra e à sua deslocação para o Sul, e
produzindo o assoreamento do porto.
Em 1575
precipitou-se a grande decadência do porto numa tempestuosa invernia que
obstruiu a barra com areias e assoreou a ria. Esta decadência foi-se
acentuando, a barra deslocou-se para o sul tornando difícil o acesso ao
porto mesmo a navios de pequeno calado, agravando a miséria da região e
provocando justos clamores que forçaram o Estado no princípio do século
próximo passado a mandar proceder a obras de melhoramento da barra. Nem
sempre tiveram grande êxito as obras executadas, até que em Outubro de
1932 foram inaugurados importantes trabalhos de melhoramentos
subordinados a um vasto plano que compreende a fixação e alargamento da
barra, a criação, junto da cidade, de portos de pesca e de cabotagem, e
o rasgamento de um canal para lhes dar acesso.
Realizado este
p]ano, no porto lagunar de Aveio poderão fundear e abrigar-se
torpedeiros, submarinos, monitores e canhoneiras para a vigilância e
defesa da costa.
Para a defesa
da costa e barra foi construído na Vagueira, no reinado de D. João IV,
um forte cujas ruínas desapareceram há poucos anos, e no século XVII
ergueu-se à entrada da barra um forte abaluartado, que ainda existe
desartilhado mas em razoável estado de conservação.
No século XV o
infante D. Pedro cingiu Aveiro com muralhas
/ 76 / que foram
melhoradas e reforçadas nos reinados de D. Manuel I e D. João V. As
pedras das ruínas destas muralhas foram aproveitadas, no século próximo
passado, na construção das obras da barra e dos alicerces do Liceu.
Actualmente a
cidade tem guarnição militar constituída por um regimento de Cavalaria,
para o qual foi construído um bom quartel, e um regimento de Infantaria,
e é sede dum distrito de recrutamento.
Durante a
Grande Guerra os franceses estabeleceram na costa de S. Jacinto, para a
vigilância do litoral, um porto de hidroaviões
que foi aproveitado, finda a Guerra, pelo Ministro da Marinha, para o
actual Centro de Aviação Naval.
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BARRA DE
AVEIRO
Paredão Norte, estuário e construções de S. Jacinto. |
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Com a base na
costa marítima e com dois lados formados, um, pelo troço da linha férrea
que vai de Aveiro a Coimbra e o outro pelo curso inferior do Mondego,
constitui-se, entre o Vouga e aquele rio, um formidável triângulo
estratégico, com os vértices naquelas cidades, ao qual devem caber
funções importantíssimas na defesa militar de Portugal e, em especial,
das Beiras.
A zona da
Beira Litoral delimitada por este triângulo, muito
/ 77 / rica de
produções agrícolas, de população muito densa, situada entre Lisboa e
Porto e com uma boa rede de vias de comunicação e servida directamente
por dois portos de mar, apresenta óptimas condições naturais para nela
se fazer uma rápida mobilização de homens válidos, de gado e de outros
recursos naturais, acompanhada ou seguida da concentração de tropas, de
material bélico, de munições e de víveres.
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BARRA DE
AVEIRO
Paredão Sul e triângulo regulador das correntes.
Esta gravura
completa a anterior, mostrando, juntas, a grande área utilizável
para porto
de abrigo e instalações respectiva. |
Da esplêndida
situação corográfica da referida zona, coberta dos ataques do adversário
por as serras do Buçaco e do Caramulo, entre o baixo Mondego e o baixo
Vouga, resulta o seu
grande valor estratégico para as operações na direcção Viseu - Vale do
Vouga sobre o Porto, e para aquelas que se efectuarem na linha do vale
do Mondego tendo Coimbra por objectivo.
Em face da importância estratégica do triângulo Aveiro - Coimbra - Figueira
da Foz, impõe-se a defesa da costa que lhe serve de base, entre os dois
portos de mar.
Na defesa da costa tem de cooperar forças terrestres móveis,
motorizadas, em virtude da impossibilidade económica de se recorrer à
dispendiosa fortificação permanente, a forças navais e aéreas.
Para a acção eficaz das forças terrestres são indispensáveis boas
comunicações ao longo e próximo da costa. Sob este ponto de vista das
comunicações militares, são de grande importância
/ 78 /
a estrada de Figueira da Foz, por a Tocha a Mira e o caminho
de ferro, concedido à C. C. F. do Vale do Vouga, de Aveiro - Vagos - Mira - Cantanhede. Deverá completar o feixe de
comunicações convergentes com vias fluviais, em Aveiro, o prolongamento da estrada da Barra - Costa Nova até Mira e a construção duma
outra de S. Jacinto a Ovar.
As forças navais da defesa da costa deverão constituir uma
esquadrilha de submarinos, torpedeiros, lança-minas, e, possivelmente, monitores, com a base no porto de Aveiro.
Servirá de base às forças aéreas o centro de aviação naval
de S. Jacinto.
Rodeada por uma região agrícola riquíssima, hiperfertilizada
pelos moliços extraídos da ria, no meio dum extenso estuário
povoado, abundantemente, de peixe de várias espécies nos seus esteiros,
valas, canais, rias e pateiras, ponto de convergência de vias de
comunicação terrestre e fluviais, capital duma zona na
qual podem atingir grande desenvolvimento as indústrias de conservas e
de lacticínios, porto notável de pesca marítima incluindo a do bacalhau, e que será um porto de cabotagem importante com a realização das obras projectadas; a cidade de
Aveiro oferece condições excepcionais para ser uma importante
base de reabastecimento das tropas em campanha.
Cabem ao porto, à costa e à cidade de Aveiro, pelas suas
excelentes condições navais, funções militares importantes na
defesa do País; mas, para que estas funções possam ser desempenhadas com eficácia, é indispensável: a)
−
executar, com a
possível urgência, as obras constantes do projecto de melhoramentos da barra e do porto, datado de 1930; b)
−
apetrechar o
porto para poder servir de base a uma esquadrilha de submarinos, torpedeiros e lança-minas; c)
−
construir o caminho de ferro, já
concedido à Companhia do V. V., de A veiro - Mira -
Cantanhede e as estradas costeiras ou marginais da Costa Nova
a Mira e de S. Jacinto a Ovar; d)
−
prolongar o caminho de ferro
do Vale do Vouga de Viseu a Gouveia, para completar a linha
de penetração no hinterland do porto, e para poder estabelecer
a comunicação rápida da base de Aveiro com as tropas que
venham a operar na Beira Alta e, especialmente, no vale do Mondego;
e)
−
desenvolver a indústria das conservas e de lacticínios na região
aveirense, afim de se armazenarem grandes reservas desses produtos,
para aprovisionamento do Exército e da
Marinha; f)
−
estabelecer, na cidade, uma delegação da Manutenção
Militar.
Logo que sejam realizados os melhoramentos indicados sumariamente, a
cidade de Aveiro e o seu porto terão conquistado
a importância a que têm direito, por a sua situação no País.
ABEL URBANO
ENGENHEIRO (E. E.)
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