NOS dias tristes e pesados
deste último inverno, enquanto a chuva desabava impiedosamente e eu via,
lá em baixo, os campos cobertos de água com obstinação confrangedora, e
a corrente turva do Tejo seguir com imponência; muitas vezes me surgia à
memória um outro inverno mau em que sucessos graves da nossa vida
política me levaram a suportar as suas inclemências.
Não seriam tão insistentes
e tão abundantes as águas da chuva; não estariam tão continuamente
submersos os campos marginais; mas em "compensação o frio misturou-se ao
temporal e tão depressa a geada cobria de branco os prados e ínsuas ao
levantar da manhã, como os leitos dos rios subiam e alagavam tudo à sua
volta.
As evocações, porém, não
se dirigiam para a larga bacia do Tejo nem para os vastíssimos campos
alentejanos ou para os lameiros verdejantes que, lá em baixo, agora
alegram, com alguma variedade de matizes, esta paisagem monótona; as
evocações iam para o Vouga
−
rio mais modesto, com
leito mais recatado e de amplitude mais moderada de cenário, junto do
qual exerci, modestamente e ignoradamente, funções militares em ocasião
bem desagradável para a nossa história contemporânea. E nessas evocações
a que ligava pessoas com quem lidei e factos, na aparência
insignificantes, que hoje têm oportunidade extraordinária, surgia também
o contraste flagrante da paisagem duma e outra região.
|
Um
aspecto da região do Vouga |
Aqui, a vastidão ilimitada
para o sul, sem relevos que dêem graça à planície e a sucessão escura de
cumeadas e cabeços cónicos, para norte, por de cima dos quais mal se
avistam alguns contrafortes da Estrela; só em baixo, dos lameiros e
hortas próximas, é que sobe cá acima alguma alegria da erva tenra
/ 246 / onde flores rasteiras
deixam intermeada a petulância das suas cores vivas e frescas.
Ora lá, no Vouga, de cuja
beleza nunca me alheei por maiores que fossem as preocupações da
ocasião
−
é tudo bem diferente:
desde as encostas altas dos vales de S. Pedro do Sul e Vouzela, desde os
campos de Macinhata ou Águeda, afogados em farta verdura sensual; até ao
estuário da Ria que é cenário único para olhos de artista ou para os de
quem vagueia pelo mundo em busca de serenas emoções.
E assim, de lembrança em
lembrança, procurei reconstituir essas semanas de há dezassete anos,
passadas amargamente em luta com iguais, e às vezes com amigos; e como
essa reconstituição não deixa de ser um documento
−
sem paixão nem afeição
− aqui vai conforme a
memória e os apontamentos feitos então ao correr da pena e arquivados
com intenções benévolas...
*
* *
Embora os sucessos a que
me vou referir possam parecer que caíram na História pelo acaso das
circunstâncias ou pela vontade dos homens, o certo é que tiveram larga
relação com o próprio rio Vouga que, olhado no conjunto do seu curso,
tem relativa
/ 247 / importância militar na
zona central do país ou, mais propriamente, no chamado teatro de
operações da Beira Alta.
Essa importância não
deriva dele constituir linha de penetração no sentido do objectivo
principal que é Coimbra−Lisboa, mas sim de, como
vale divergente do do Mondego, corresponder, na parte do seu curso até à
saída do desfiladeiro entre Pessegueiro e Sernada, a passagem para a
região imediata a sul do Porto ou seja a dos concelhos do distrito
aveirense situados ao norte.
Na parte inferior do seu
curso, isto é, da Sernada ao estuário, o Vouga, através dos
fertilíssimos e formosíssimos campos, corta, transversalmente, na zona
litoral, as comunicações normais aceleradas entre Lisboa e Porto.
Além disso, precisamente
na altura em que deixa o desfiladeiro que o aperta desde Vouzela para se
alargar pelos campos, recebe, à direita, o tributo do Caima, afluente
pequeno que desce pela vertente norte e oeste da Gralheira, ao começo em
barroco fundo, depois em vale apertado e normalmente agreste.
Assim, no distrito de
Aveiro, a bacia do Vouga apresenta estas essenciais características:
desfiladeiro fundo, sem comunicações transversais, como elemento de
passagem do centro visiense para a parte norte do distrito; depois
campos largos, baixos, inundados, em que a corrente é atravessada pelas
estradas e a linha férrea principal do país, ao mesmo tempo que é
acompanhada por outras estradas secundárias no sentido do seu curso.
Além disso, o Caima, perpendicularmente, forma uma linha de defesa da
crista que sobe de Albergaria para o norte e intercepta a estrada de
Viseu a leste desta última vila.
E enquanto se não concluir
a estrada que, por Arouca, ligará Viseu com a bacia do Douro a sul da
ponte de Entre-os-Rios, o Vouga será, no seu curso médio, a linha
natural estratégica entre a capital beiroa e o Porto; e o seu curso
inferior, embora o atravessem com mais pontes, parece ser a linha
natural de separação entre as regiões que constituem as zonas de
influência do objectivo principal Coimbra-Lisboa e do objectivo menor
que é o Porto.
Por tudo isto, os
primeiros actos foram o que foram: do norte, a intenção de chegar
depressa ao Vouga; do sul, a resolução rápida de manter, dentro do
possível mas custasse o que custasse, as passagens do rio.
Em Aveiro concentrou-se,
pois, a defesa da linha do Vouga debaixo do comando sereno e inteligente
do então Sr. coronel José Domingues Peres. O rio era a divisória; e com
essa compreensão imediata e justa, é que se começaram a reunir elementos
para contrapor à acção
−
e por isso a guarnição
militar de Ovar abandonou a vila e recolheu a Aveiro; e por isso,
também, em 21 de Janeiro de 1919 eu recebi ordem em Coimbra para
/ 248 / seguir de noite para ali
com algumas tropas de reforço de Infantaria e Artilharia.
*
* *
Foi, de começo, uma defesa
simples, quase elementar; a surpresa dos sucessos do Porto, dias antes,
não dera tempo a preparação de resposta eficaz. E foi em Esgueira, no
cruzamento das duas estradas que correm para o Vouga, que me estabeleci
e assumi o comando das poucas forças de que, no momento, se dispunha.
Eram elas: uma companhia
de Infantaria 24, saída do quartel de Aveiro que
vigiava e defendia a estrada para Eixo(1); outra, constituída
pelo pessoal do 3.º batalhão daquele regimento (o de Ovar) postou-se na
de Angeja
(2); e a de Infantaria 23 que
tinha ido comigo, ficou como reserva em Esgueira
(3); a bateria incompleta de
artilharia, instalou-se num pinhal adiante desta
povoação para bater as pontes a norte de Cacia
(4).
Assim se passaram dois
dias, em vigilância aturada, em pesquisa dos movimentos contrários e na
expectativa desagradável de qualquer surpresa que se não pudesse evitar
−
até que, em 24 de Janeiro,
ao mesmo tempo que se sabia que as forças contrárias se aproximavam de
Albergaria e de Salreu, em colunas separadas, começaram a chegar
reforços e, por conseqüência, a intensificar-se a defesa que tão
precária era.
Uma destas forças chegadas
foi para a margem direita do Vouga com missão de vigiar e inquietar a
coluna monárquica que vinha na direcção de Albergaria; e outra força que
possuía duas metralhadoras ligeiras, foi defender a ponte de São João de
Loure. As que já estavam, isto é, as duas companhias de infantaria 24
que eu comandava, foram para Cacia, uma para o apeadeiro e ponte do
caminho de ferro; a outra para a estrada /
249 / e ponte de Angeja; ambas
com missão de defender estas passagens do rio e de manter vigilância
contínua na margem esquerda desde o esteiro até Tabueira onde começava a
vigilância da força da ponte de Loure.
|
Ponte de Angeja, de madeira, vista da margem esquerda do Vouga. |
A companhia de infantaria
23 que tinha ido comigo desde Coimbra, foi para outro comando na margem
direita, e só muitos dias depois a reencontrei.
Começava a sair-se do
período «teológico» como, com graça, e aludindo à lei dos três estados,
me dizia o ilustre oficial de marinha Rocha e Cunha, para entrar no
período imediato.
E esta evolução
acentuou-se com a certeza da liquidação da chamada revolta de Monsanto,
em Lisboa, e com a chegada do então sr. tenente-coronel José Mendes dos
Reis que assumiu o comando das forças de defesa imediata de Aveiro, a
qual foi dividida em sectores.
Fiquei eu com o sector de
Cacia que tinha as duas companhias de infantaria 24, a mesma divisão de
artilharia, um pelotão de 29 marinheiros comandado
por um sargento e ainda uma pequena força de civis
voluntários aveirenses
(5).
*
* *
Em 26, já instalado, desde
manhã, em Cacia, numa casa de pescadores ao cimo do lugar, tive
conhecimento de que alguma cavalaria das forças revoltadas entrara em
Angeja e uma
/ 250 / companhia de 200 homens
de infantaria estava a caminho desta vila; e na manhã seguinte, em que
caiu pesado nevoeiro sobre o vale, sentiu-se na outra margem rodar uma
coluna de artilharia.
As forças contrárias
preparavam-se, pois, para forçar a passagem do rio: as suas posições
eram mais ou menos conhecidas por informações oficiosas; e realmente,
pelas 9 horas e 15 minutos de 27 de Janeiro, ainda o nevoeiro era denso
e espalhado por todo o vale, ouviu-se o primeiro tiro de 7,5 seguido de
outros que ora caíam no rio, a meio da corrente, ora, mais altos,
transpunham os pinhais do alto de Cacia e se perdiam nos terrenos
lavrados do sul.
Quase a seguir, surgiram
as primeiras forças de infantaria do outro lado da ponte de madeira com
intenção aparente de a transporem
−
mas o fogo da companhia
que a guardava não deixou continuar o avanço e forçou
aquelas a abrigarem-se convenientemente
(6).
Começou, então, o
tiroteio, que foi constante durante o dia entre as duas infantarias dum
e outro lado da ponte, com mais intensidade
de lá do que de cá, onde havia ordem de economizar
munições(7); a artilharia contrária
fez cerca de 40 tiros, espaçados, sem resultado além de uma ou outra
árvore derrancada nos altos de Cacia.
E assim se passou o
primeiro dia de acção, dia nevoento e desagradável, com lufadas de
humidade que, aos poucos, encobriam tudo; e afinal, sem finalidade, na
expectativa apenas de qualquer surpresa que a contínua vigilância
procurava, por todas as maneiras, evitar.
No dia seguinte, 28, a
situação manteve-se quase na mesma; o fogo começou muito cedo, ainda de
noite, com intensidade por vezes; a divisão de artilharia adversa que se
via bem, no alto de Angeja, fez cerca de 30 tiros, vagarosos, mas mais
certeiros do que na véspera: um deu na estrada, a 50 metros aquém da
ponte de madeira; outro no encontro da ponte do caminho de ferro
/ 251 / que ficou levemente
danificada. De cá não se respondeu; as ordens eram essas e bem justas
−
embora lá em baixo, a
soldadesca, grande parte da qual chegara há pouco das trincheiras de
França, desejasse sentir o apoio amigo do irmão artilheiro.
E mais outro dia nevoento
e chuvoso passou sem alteração de situação até que, à noite, fui chamado
ao Quartel General de Azurva onde se planeou o ataque às posições
contrárias por meio do avanço, na margem direita, feito pelas forças ali
estabelecidas e apoiado pelas minhas que, para isso, atravessariam o rio
e procurariam colocar o adversário entre dois fogos.
Devia dar-se esse ataque
no dia imediato, 29, e por surpresa. Seria, na verdade, uma acção
decisiva, se as dificuldades que surgiram não fossem tantas.
|
Casa que serviu de quartel general das forças republicanas, situada
no extremo oriental da ponte de S. João de Loure. |
A cheia do Vouga crescia a
olhos vistos; os barcos (que, previdentemente, se tinham recolhido quase
todos à margem esquerda, dias antes) teriam difícil manobra por a
corrente ser impetuosa; a ponte de madeira era alvo bem visível e de
fácil referência; e as tropas contrárias continuavam postadas na margem
oposta, a pequena distância, e mais ou menos abrigadas.
Qualquer movimento feito
de cá, teria que ser, pois, a descoberto
−
e por muito ardil que se
empregasse sê-lo-ia com êxito?
O problema não era, por
consequência, somente de ordem militar. E a chuva continuava, miúda,
densa, com aspecto, por vezes, de nevoeiro cerrado; nada se via para
pouco mais além da outra margem
−
e o ataque que se começou,
nas alturas de Frossos, e de que se ouvia o tiroteio, continuava
indeciso.
Mandei, contudo, tentar o
conserto da ponte de madeira; mas mal o trabalho começou, veio uma
granada rebentar sobre o ajuntamento com razoável pontaria.
Pensei em procurar a
diversão pela ponte do caminho de
/ 252 / ferro; mas a ponte estava
referenciada pela artilharia adversa como se viu quando se tentou
consertar o estrago da véspera; e assim, arriscava-me a causar a ruína
das obras de arte sem qualquer proveito para a nossa intenção e com
risco inútil de vidas humanas.
Apesar de tudo, fizeram-se
dois reconhecimentos: um, constituído por pequenas forças de infantaria
e de marinheiros, seguiu oculto pela linha férrea e,
através dos esteiros, chegou às portas de Angeja
(8); outro, formado por
pequena patrulha de infantaria, atravessou o rio em barco, escondido
pela ponte de madeira e conseguiu furtar-se às vistas
das forças da margem direita até quase ao fim do chamado túnel de Angeja
(9). Embora a chuva densa e o
cair da tarde, os reconhecimentos foram pressentidos; houve ainda troca
de tiros porque a surpresa dá sempre azo a hipóteses desagradáveis
−
mas o fim tinha-se
conseguido e as forças recolheram sem novidade ao seu ponto de partida.
O combate, na margem
direita, manteve-se indeciso, não conseguiu o objectivo determinado; a
noite caía e o comandante do destacamento, conforme novo plano, mandou
seguir para Loure uma das companhias (a que estava no apeadeiro de
Cacia) e deu-me nova missão que eu fui receber na noite de 29 para 30,
ao Quartel do comando em Loure, enquanto nas ruas e estradas caíam as
maiores bátegas de água que é dado ouvir nestes climas considerados
amenos.
*
* *
Recebi, nessa noite de 29
para 30 de Janeiro, a missão de, no dia seguinte, ainda com o
lusco-fusco, fazer aparecer a leste de Frossos, na altura da estrada
Loure-Albergaria, três companhias de infantaria: uma do regimento n.º 5,
outra, mista, dos regimentos 28 e 35; e outra (que
mantive em reserva) do regimento 24 que viera, de noite, de Cacia
(10).
O aparecimento destas
forças, ao romper da manhã, conjugado com o ataque de frente, feito
pelas forças que, à minha esquerda, deveriam seguir na direcção
sul-norte, ao longo da estrada S. João de Loure-Angeja, tinha o
objectivo de simular o corte de comunicações com as forças monárquicas
que operavam pelas alturas de Albergaria e o possível flanqueamento das
posições de Angeja. /
253 /
Mas o dia começara mal; a
noite fora de terrível invernia e a manhã aparecera tempestuosa; as ruas
da povoação eram regatos caudalosos e o aboletamento feito na véspera à
noite, à pressa, debaixo da acção dos chuveiros contínuos, dificultara a
reunião das fracções das unidades. Tudo contribuiu para que (apesar da
cerração atrasar também meia hora o amanhecer) a ocupação das posições
indicadas só se fizesse com o dia claro; depois, para melhor se fazer o
avanço e auxiliar o ataque das forças da esquerda, teve de se fazer um
reconhecimento à frente porque, nessa altura, a cerração era tão grande
que a mais de 200 metros se tornava difícil a visibilidade.
|
Trecho da povoação de Eirol, junto à ponte da Rata. |
Demoras sobre demoras iam
atrasando o plano concebido na véspera e alterando um bocado a acção
começada na esquerda onde se ouvia tiroteio seguido, e intenso, quer dum
campo quer doutro.
Passaram-se horas assim; a
chuva continuava e os terrenos encharcados dificultavam, fora das
estradas, o movimento das tropas; contudo o reconhecimento fez-se e as
minhas forças entraram na posição e começaram o avanço normal apesar das
difíceis ligações quer laterais quer da frente para comigo; apesar da
artilharia dificilmente verificar os seus tiros e da infantaria não
alcançar visibilidade além dos 300 metros à frente.
À direita, para os lados
de Albergaria, o outro destacamento ocupou novas posições à frente e
avançava com segurança.
O êxito do movimento
acentuava-se e as deslocações iam-se fazendo
−
quando recebi ordem para
retirar e reunir as minhas forças na povoação do Eirol, na margem
esquerda do Vouga.
Este movimento retrógrado
que correspondia à entrega da margem direita do rio, novamente, às
forças contrárias, causou
/ 254 / surpresa a todos e
depressão natural na soldadesca. Porque se retirava?
A discussão das causas e
efeitos não adiantaria nada ao meu intento que apenas visa as
recordações amenas desses sucessos infelizes da nossa perturbada vida
política; mas lembro-me bem que a retirada se fez ao tempo em que o
temporal amainou e o céu se entreabriu, por vezes, já sobre a tarde e
deixou ver ainda uma ou outra alegre réstia de sol poente a doirar a
paisagem toda húmida.
|
Alto de Angeja, onde estiveram instaladas forças de artilharia dos
revoltosos. |
Desci a S. João de Loure,
atravessei a ponte, cortei à esquerda pela E. N. n.º 45 e subi pela
calçada estreita e em curvas para essa pitoresca povoação do Eirol,
assente em terras altas que dominam o vale e a passagem sobre o Águeda
que eu ia encarregado de defender.
Reuni então, debaixo do
meu comando, naquele entardecer alegre dum dia tempestuoso, as tropas
que tinha comandado pela manhã, mais uma divisão de artilharia e o
pequeno pelotão de marinheiros que em baixo tinha a missão especial de
guardar a ponte da Rata
−
tudo extenuado pelo
trabalho contínuo nas posições, pela falta completa de alimentação e
ainda pela marcha de bastantes quilómetros que se fez.
Apesar do cansaço,
organizou-se o serviço de segurança; procuraram-se informações seguras
acerca dos adversários; mandei receber ordens ao Quartel General de Eixo
para onde o comando tinha passado; e a noite veio cair sobre mais um dia
de luta inglória, triste e, afinal, inútil...
No dia seguinte, já os
campos se alegravam com o sol quase às soltas no céu com poucas nuvens,
recebi a comunicação de que a nossa cavalaria, ao explorar a margem
direita, na direcção de Angeja, verificara a saída das tropas contrárias
desta
/ 255 / vila e a sua marcha
normal para o norte, na direcção de Estarreja.
Estávamos, pois, de novo,
senhores da margem direita; e na tarde desse dia 31 entrei com o meu
batalhão em Angeja e tomei as posições de apoio
a outro batalhão já nessa altura em postos avançados
na linha Fermelã-Sobreiro
(11). E ainda nesse mesmo dia,
recebi ordem de nova organização do destacamento que fora reforçado com
mais unidades vindas do sul.
*
* *
O meu batalhão ficou então
constituído (e assim ficou até final) pelas duas companhias de
infantaria n.º 24 que já tinha e pela do 23 que comigo
seguira de Coimbra; e, desde o dia 8 de Fevereiro em diante,
por outra do regimento 7
(12)
−
no total de 620 homens com
duas metralhadoras ligeiras
(13).
|
Eirol − Ponte da Rata |
Durante os nove dias que
se seguiram, o batalhão fez o serviço de postos avançados, de apoio ou
de reserva, consoante a escala, na região ao norte de Angeja; lançou
reconhecimentos pelos quais se concluía que os adversários tinham muito
pouca gente na povoação de Salreu e só em Estarreja tinham maior
número. Nestes nove dias, o comando superior das forças em /
257 / operações esteve a organizar melhor os dois destacamentos que operavam ao longo das estradas Aveiro-Ovar e
Águeda-Oliveira de Azeméis
−
e por isso se chamavam vulgarmente os
destacamentos de Aveiro e de Albergaria.
Era já o caminho (como teria dito o ilustre comandante Rocha
e Cunha) para o estado positivo.
*
* *
Em 9 de Fevereiro, à noite, planeou-se o ataque a Salreu como base para atacar Estarreja que se julgava ser (como, de facto, foi) o último reduto da resistência adversa.
O plano era simples: o 1.º batalhão do destacamento seguiria pela
estrada Angeja-Estarreja; eu, apoiando a minha-esquerda na direita desta
unidade, seguiria pela estrada Angeja-Albergaria
até ao Sobreiro onde transporia a linha dos postos avançados para realizar a marcha na direcção norte, com o fim de ocupar a linha determinada pelos lugares de Soutelo-Campinos de Salreu e obrigação de estabelecer ligação constante à direita com o
destacamento n.º 2 (Albergaria).
|
Oficiais do
batalhão comandado pelo autor deste texto
Da
esquerda para direita: 1º plano (sentados): alferes Gomes
Pereira de Lemos; tenente-médico Alfredo barata da Rocha; alferes
Natividade e Silva; alferes José de Oliveira e Pinho; alferes de
administração militar Rui de Lemos; alferes José da Silva Rodrigues
Mendes. 2.º plano: tenente-miliciano Dr. Alberto Ruela;
tenente Francisco Maria Soares; capitão Duilio Marques; capitão
Bernardino Sena Lopes; major Belisário Pimenta; capitão Zeferino
Camossa Ferraz de Abreu; capitão Manuel Rodrigues Leite; alferes do
quadro do Ultramar Napoleão Soares. 3.º plano: alferes Carlos
Rodrigues Varela; alferes Flaviano Henriques de Miranda; alferes
Manuel Caseiro Marques Alves; alferes Esteves; alferes Vitorino
Tavares; alferes Aurélio Rebocho Vaz; tenente José Augusto da Cruz. |
Realmente, na manhã de 10, nevoenta, com prenúncios de chuva, começou-se a marcha, algum tanto demorada por deficiências técnicas da sua preparação; depois, enquanto o
1º batalhão
fazia o seu caminho ao longo da estrada, apoiado nos
/ 258 / esteiros, eu fui andando por
terreno ondulado, com sulcos nalguns pontos fundos, coberto de pinhais em quase toda a extensão,
cortado por atalhos largos em várias direcções, atravessado por muitas ribeiras que normalmente seriam fios de água e nessa altura eram torrentes apressadas. Tornava-se difícil a
observação e a orientação; o dia escurecera muito antes do meio dia e a chuva começou a cair impiedosamente,
encharcando a terra arenosa, incomodando a marcha, quase não deixando ver, a mais de 200 metros,
se alguma aberta aparecia na arvoredo.
Contudo a marcha fez-se normalmente; e pela tarde, cerca das 15 horas e meia, depois de várias peripécias sem importância
para o conjunto, conseguiu-se alcançar o objectivo, e, até, na direita, ultrapassá-lo um pouco, por engano, nas alturas da
povoação do Soutelo.
Instalaram-se, então, postos avançados na linha Soutelo-Campinas de Salreu, debaixo. já de temporal desfeito; durante toda a noite,
o vento soprou violentamente e a chuva caiu com tal abundância que se sentia nas ruas e quintais a água a correr
por valetas e regueiras.
|
Margem direita do Vouga − Pateira de Frossos |
Calcule-se o que passariam pelos postos isolados as vedetas, e pelos atalhos atulhados de lama e água corrente, as várias patrulhas e rondas no necessário serviço de vigilância; e quando, já pela alta madrugada, tudo indicava a continuação do temporal e da chuva diluviana, o tempo amainou e, com mutação imprevista, o céu azulado apareceu à luz da manhã e ligeiros chuviscos apenas, caídos de nuvens esparsas, vinham lembrar o
pesadelo da noite.
Do alto do enorme
espinhaço que vem morrer a poente de Salreu, o espectáculo naquele amanhecer era extremamente
curioso.
As águas corriam e cantavam por toda a parte em levadas rápidas; nas baixas do Antuã, entumescido e barrento,
os lameiros brilhavam como espelhos; as árvores pareciam sacudir a chuva
impertinente; e os telhados de Estarreja, ainda molhados, chispavam com
a sol. Ao longe, as terras alagadiças que se estendem para a Ria, estavam encharcadas de todo e, por cima delas, a humidade da manhã mal deixava divisar
o vasto e formosa estuário.
Não desaparecem facilmente da memória cenários como
este; a
preocupação do momento não desviava a beleza e até sugeria o contraste da serenidade
da Natureza com a intenção malévola dos homens. Naquela manhã tão bela, e através dos prados húmidos e fecundos, deveria continuar-se
o avanço das forças do Governo; o plano lançado de véspera estava bem traçado e seria difícil que
os adversários resistissem à investida. Iria, possivelmente, morrer gente naquela magnífica e bela região por entre a pradaria pacífica e fértil.
E na verdade, mal refeitas
as tropas das inclemências da
/ 259 / noite, tomaram-se as disposições necessárias e
o ataque a Estarreja começou com segurança e terminou com êxito
(14).
A vila de Estarreja era, naquela zona, o último reduto da resistência; as forças adversas retiraram para o norte e a acção perdeu todo o interesse, porque a retirada era patente e a reviravolta no Porto, em 13 de Fevereiro, veio rematar a contenda.
A 16 do mesmo mês, as forças reunidas entraram no Porto entre aclamações e músicas.
*
* *
O que a memória e os apontamentos reproduziram, aqui ficou melhor ou pior; mais ou menos, os sucessos que presenciei são estes, narrados simplesmente, sem afeição ou malícia...
Já lá vão 17 anos; o mundo rodou sempre
−
e hoje, depois de tanto rodar sobre o seu eixo, os sucessos a que me reporto parecem-me coisas longínquas e começam a esfumar-se como em horizonte afastado.
Conservo, porém, nítida, a impressão da boa qualidade do soldado aveirense; e, por sobre todas as agruras do tempo e de todos
os maus bocados, inerentes a uma luta civil, paira a beleza da paisagem do Vouga. Houvesse o que houvesse, nunca deixei de admirar natureza tão pródiga. Quer em conjunto cenográfico, quer em recantos pitorescos de folhagem ou qualquer curva
graciosa do rio, havia sempre motivos para atenção, embora fugaz, mas que a retina conservava e hoje algum sentimentalismo de próxima velhice mantém ainda com ternura.
Abrantes, Maio de 1936.
BELISÁRIO PIMENTA
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