Belisário Pimenta, Lembranças duma campanha no Vouga (1919), Vol. II, pp. 245-259.

LEMBRANÇAS DUMA

CAMPANHA NO VOUGA

(1919)

NOS dias tristes e pesados deste último inverno, enquanto a chuva desabava impiedosamente e eu via, lá em baixo, os campos cobertos de água com obstinação confrangedora, e a corrente turva do Tejo seguir com imponência; muitas vezes me surgia à memória um outro inverno mau em que sucessos graves da nossa vida política me levaram a suportar as suas inclemências.

Não seriam tão insistentes e tão abundantes as águas da chuva; não estariam tão continuamente submersos os campos marginais; mas em "compensação o frio misturou-se ao temporal e tão depressa a geada cobria de branco os prados e ínsuas ao levantar da manhã, como os leitos dos rios subiam e alagavam tudo à sua volta.

As evocações, porém, não se dirigiam para a larga bacia do Tejo nem para os vastíssimos campos alentejanos ou para os lameiros verdejantes que, lá em baixo, agora alegram, com alguma variedade de matizes, esta paisagem monótona; as evocações iam para o Vouga rio mais modesto, com leito mais recatado e de amplitude mais moderada de cenário, junto do qual exerci, modestamente e ignoradamente, funções militares em ocasião bem desagradável para a nossa história contemporânea. E nessas evocações a que ligava pessoas com quem lidei e factos, na aparência insignificantes, que hoje têm oportunidade extraordinária, surgia também o contraste flagrante da paisagem duma e outra região.

Um aspecto da região do Vouga

Aqui, a vastidão ilimitada para o sul, sem relevos que dêem graça à planície e a sucessão escura de cumeadas e cabeços cónicos, para norte, por de cima dos quais mal se avistam alguns contrafortes da Estrela; só em baixo, dos lameiros e hortas próximas, é que sobe cá acima alguma alegria da erva tenra / 246 / onde flores rasteiras deixam intermeada a petulância das suas cores vivas e frescas.

Ora lá, no Vouga, de cuja beleza nunca me alheei por  maiores que fossem as preocupações da ocasião é tudo bem diferente: desde as encostas altas dos vales de S. Pedro do Sul e Vouzela, desde os campos de Macinhata ou Águeda, afogados em farta verdura sensual; até ao estuário da Ria que é cenário único para olhos de artista ou para os de quem vagueia pelo mundo em busca de serenas emoções.

E assim, de lembrança em lembrança, procurei reconstituir essas semanas de há dezassete anos, passadas amargamente em luta com iguais, e às vezes com amigos; e como essa reconstituição não deixa de ser um documento sem paixão nem afeição aqui vai conforme a memória e os apontamentos feitos então ao correr da pena e arquivados com intenções benévolas...

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Embora os sucessos a que me vou referir possam parecer que caíram na História pelo acaso das circunstâncias ou pela vontade dos homens, o certo é que tiveram larga relação com o próprio rio Vouga que, olhado no conjunto do seu curso, tem relativa / 247 / importância militar na zona central do país ou, mais propriamente, no chamado teatro de operações da Beira Alta.

Essa importância não deriva dele constituir linha de penetração no sentido do objectivo principal que é CoimbraLisboa, mas sim de, como vale divergente do do Mondego, corresponder, na parte do seu curso até à saída do desfiladeiro entre Pessegueiro e Sernada, a passagem para a região imediata a sul do Porto ou seja a dos concelhos do distrito aveirense situados ao norte.

Na parte inferior do seu curso, isto é, da Sernada ao estuário, o Vouga, através dos fertilíssimos e formosíssimos campos, corta, transversalmente, na zona litoral, as comunicações normais aceleradas entre Lisboa e Porto.

Além disso, precisamente na altura em que deixa o desfiladeiro que o aperta desde Vouzela para se alargar pelos campos, recebe, à direita, o tributo do Caima, afluente pequeno que desce pela vertente norte e oeste da Gralheira, ao começo em barroco fundo, depois em vale apertado e normalmente agreste.

Assim, no distrito de Aveiro, a bacia do Vouga apresenta estas essenciais características: desfiladeiro fundo, sem comunicações transversais, como elemento de passagem do centro visiense para a parte norte do distrito; depois campos largos, baixos, inundados, em que a corrente é atravessada pelas estradas e a linha férrea principal do país, ao mesmo tempo que é acompanhada por outras estradas secundárias no sentido do seu curso. Além disso, o Caima, perpendicularmente, forma uma linha de defesa da crista que sobe de Albergaria para o norte e intercepta a estrada de Viseu a leste desta última vila.

E enquanto se não concluir a estrada que, por Arouca, ligará Viseu com a bacia do Douro a sul da ponte de Entre-os-Rios, o Vouga será, no seu curso médio, a linha natural estratégica entre a capital beiroa e o Porto; e o seu curso inferior, embora o atravessem com mais pontes, parece ser a linha natural de separação entre as regiões que constituem as zonas de influência do objectivo principal Coimbra-Lisboa e do objectivo menor que é o Porto.

Por tudo isto, os primeiros actos foram o que foram: do norte, a intenção de chegar depressa ao Vouga; do sul, a resolução rápida de manter, dentro do possível mas custasse o que custasse, as passagens do rio.

Em Aveiro concentrou-se, pois, a defesa da linha do Vouga debaixo do comando sereno e inteligente do então Sr. coronel José Domingues Peres. O rio era a divisória; e com essa compreensão imediata e justa, é que se começaram a reunir elementos para contrapor à acção e por isso a guarnição militar de Ovar abandonou a vila e recolheu a Aveiro; e por isso, também, em 21 de Janeiro de 1919 eu recebi ordem em Coimbra para / 248 / seguir de noite para ali com algumas tropas de reforço de Infantaria e Artilharia.

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Foi, de começo, uma defesa simples, quase elementar; a surpresa dos sucessos do Porto, dias antes, não dera tempo a preparação de resposta eficaz. E foi em Esgueira, no cruzamento das duas estradas que correm para o Vouga, que me estabeleci e assumi o comando das poucas forças de que, no momento, se dispunha.

Eram elas: uma companhia de Infantaria 24, saída do quartel de Aveiro que vigiava e defendia a estrada para Eixo(1); outra, constituída pelo pessoal do 3.º batalhão daquele regimento (o de Ovar) postou-se na de Angeja (2); e a de Infantaria 23 que tinha ido comigo, ficou como reserva em Esgueira (3); a bateria incompleta de artilharia, instalou-se num pinhal adiante desta povoação para bater as pontes a norte de Cacia (4).

Assim se passaram dois dias, em vigilância aturada, em pesquisa dos movimentos contrários e na expectativa desagradável de qualquer surpresa que se não pudesse evitar até que, em 24 de Janeiro, ao mesmo tempo que se sabia que as forças contrárias se aproximavam de Albergaria e de Salreu, em colunas separadas, começaram a chegar reforços e, por conseqüência, a intensificar-se a defesa que tão precária era.

Uma destas forças chegadas foi para a margem direita do Vouga com missão de vigiar e inquietar a coluna monárquica que vinha na direcção de Albergaria; e outra força que possuía duas metralhadoras ligeiras, foi defender a ponte de São João de Loure. As que já estavam, isto é, as duas companhias de infantaria 24 que eu comandava, foram para Cacia, uma para o apeadeiro e ponte do caminho de ferro; a outra para a estrada   / 249 / e ponte de Angeja; ambas com missão de defender estas passagens do rio e de manter vigilância contínua na margem esquerda desde o esteiro até Tabueira onde começava a vigilância da força da ponte de Loure.

Ponte de Angeja, de madeira, vista da margem esquerda do Vouga.

A companhia de infantaria 23 que tinha ido comigo desde Coimbra, foi para outro comando na margem direita, e só muitos dias depois a reencontrei.

Começava a sair-se do período «teológico» como, com graça, e aludindo à lei dos três estados, me dizia o ilustre oficial de marinha Rocha e Cunha, para entrar no período imediato.

E esta evolução acentuou-se com a certeza da liquidação da chamada revolta de Monsanto, em Lisboa, e com a chegada do então sr. tenente-coronel José Mendes dos Reis que assumiu o comando das forças de defesa imediata de Aveiro, a qual foi dividida em sectores.

Fiquei eu com o sector de Cacia que tinha as duas companhias de infantaria 24, a mesma divisão de artilharia, um pelotão de 29 marinheiros comandado por um sargento e ainda uma pequena força de civis voluntários aveirenses (5).

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Em 26, já instalado, desde manhã, em Cacia, numa casa de pescadores ao cimo do lugar, tive conhecimento de que alguma cavalaria das forças revoltadas entrara em Angeja e uma / 250 / companhia de 200 homens de infantaria estava a caminho desta vila; e na manhã seguinte, em que caiu pesado nevoeiro sobre o vale, sentiu-se na outra margem rodar uma coluna de artilharia.

As forças contrárias preparavam-se, pois, para forçar a passagem do rio: as suas posições eram mais ou menos conhecidas por informações oficiosas; e realmente, pelas 9 horas e 15 minutos de 27 de Janeiro, ainda o nevoeiro era denso e espalhado por todo o vale, ouviu-se o primeiro tiro de 7,5 seguido de outros que ora caíam no rio, a meio da corrente, ora, mais altos, transpunham os pinhais do alto de Cacia e se perdiam nos terrenos lavrados do sul.

Quase a seguir, surgiram as primeiras forças de infantaria do outro lado da ponte de madeira com intenção aparente de a transporem mas o fogo da companhia que a guardava não deixou continuar o avanço e forçou aquelas a abrigarem-se convenientemente (6).

Começou, então, o tiroteio, que foi constante durante o dia entre as duas infantarias dum e outro lado da ponte, com mais intensidade de lá do que de cá, onde havia ordem de economizar munições(7); a artilharia contrária fez cerca de 40 tiros, espaçados, sem resultado além de uma ou outra árvore derrancada nos altos de Cacia.

E assim se passou o primeiro dia de acção, dia nevoento e desagradável, com lufadas de humidade que, aos poucos, encobriam tudo; e afinal, sem finalidade, na expectativa apenas de qualquer surpresa que a contínua vigilância procurava, por todas as maneiras, evitar.

No dia seguinte, 28, a situação manteve-se quase na mesma; o fogo começou muito cedo, ainda de noite, com intensidade por vezes; a divisão de artilharia adversa que se via bem, no alto de Angeja, fez cerca de 30 tiros, vagarosos, mas mais certeiros do que na véspera: um deu na estrada, a 50 metros aquém da ponte de madeira; outro no encontro da ponte do caminho de ferro / 251 / que ficou levemente danificada. De cá não se respondeu; as ordens eram essas e bem justas embora lá em baixo, a soldadesca, grande parte da qual chegara há pouco das trincheiras de França, desejasse sentir o apoio amigo do irmão artilheiro.

E mais outro dia nevoento e chuvoso passou sem alteração de situação até que, à noite, fui chamado ao Quartel General de Azurva onde se planeou o ataque às posições contrárias por meio do avanço, na margem direita, feito pelas forças ali estabelecidas e apoiado pelas minhas que, para isso, atravessariam o rio e procurariam colocar o adversário entre dois fogos.

Devia dar-se esse ataque no dia imediato, 29, e por surpresa. Seria, na verdade, uma acção decisiva, se as dificuldades que surgiram não fossem tantas.

Casa que serviu de quartel general das forças republicanas, situada
no extremo oriental da ponte de S. João de Loure.

A cheia do Vouga crescia a olhos vistos; os barcos (que, previdentemente, se tinham recolhido quase todos à margem esquerda, dias antes) teriam difícil manobra por a corrente ser impetuosa; a ponte de madeira era alvo bem visível e de fácil referência; e as tropas contrárias continuavam postadas na margem oposta, a pequena distância, e mais ou menos abrigadas.

Qualquer movimento feito de cá, teria que ser, pois, a descoberto e por muito ardil que se empregasse sê-lo-ia com êxito?

O problema não era, por consequência, somente de ordem militar. E a chuva continuava, miúda, densa, com aspecto, por vezes, de nevoeiro cerrado; nada se via para pouco mais além da outra margem e o ataque que se começou, nas alturas de Frossos, e de que se ouvia o tiroteio, continuava indeciso.

Mandei, contudo, tentar o conserto da ponte de madeira; mas mal o trabalho começou, veio uma granada rebentar sobre o ajuntamento com razoável pontaria.

Pensei em procurar a diversão pela ponte do caminho de / 252 / ferro; mas a ponte estava referenciada pela artilharia adversa como se viu quando se tentou consertar o estrago da véspera; e assim, arriscava-me a causar a ruína das obras de arte sem qualquer proveito para a nossa intenção e com risco inútil de vidas humanas.

Apesar de tudo, fizeram-se dois reconhecimentos: um, constituído por pequenas forças de infantaria e de marinheiros, seguiu oculto pela linha férrea e, através dos esteiros, chegou às portas de Angeja (8); outro, formado por pequena patrulha de infantaria, atravessou o rio em barco, escondido pela ponte de madeira e conseguiu furtar-se às vistas das forças da margem direita até quase ao fim do chamado túnel de Angeja (9). Embora a chuva densa e o cair da tarde, os reconhecimentos foram pressentidos; houve ainda troca de tiros porque a surpresa dá sempre azo a hipóteses desagradáveis mas o fim tinha-se conseguido  e as forças recolheram sem novidade ao seu ponto de partida.

O combate, na margem direita, manteve-se indeciso, não conseguiu o objectivo determinado; a noite caía e o comandante do destacamento, conforme novo plano, mandou seguir para Loure uma das companhias (a que estava no apeadeiro de Cacia) e deu-me nova missão que eu fui receber na noite de 29 para 30, ao Quartel do comando em Loure, enquanto nas ruas e estradas caíam as maiores bátegas de água que é dado ouvir nestes climas considerados amenos.

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Recebi, nessa noite de 29 para 30 de Janeiro, a missão de, no dia seguinte, ainda com o lusco-fusco, fazer aparecer a leste de Frossos, na altura da estrada Loure-Albergaria, três companhias de infantaria: uma do regimento n.º 5, outra, mista, dos regimentos 28 e 35; e outra (que mantive em reserva) do regimento 24 que viera, de noite, de Cacia (10).

O aparecimento destas forças, ao romper da manhã, conjugado com o ataque de frente, feito pelas forças que, à minha esquerda, deveriam seguir na direcção sul-norte, ao longo da estrada S. João de Loure-Angeja, tinha o objectivo de simular o corte de comunicações com as forças monárquicas que operavam pelas alturas de Albergaria e o possível flanqueamento das posições de Angeja.  / 253 /

Mas o dia começara mal; a noite fora de terrível invernia e a manhã aparecera tempestuosa; as ruas da povoação eram regatos caudalosos e o aboletamento feito na véspera à noite, à pressa, debaixo da acção dos chuveiros contínuos, dificultara a reunião das fracções das unidades. Tudo contribuiu para que (apesar da cerração atrasar também meia hora o amanhecer) a ocupação das posições indicadas só se fizesse com o dia claro; depois, para melhor se fazer o avanço e auxiliar o ataque das forças da esquerda, teve de se fazer um reconhecimento à frente porque, nessa altura, a cerração era tão grande que a mais de 200 metros se tornava difícil a visibilidade.

Trecho da povoação de Eirol, junto à ponte da Rata.

Demoras sobre demoras iam atrasando o plano concebido na véspera e alterando um bocado a acção começada na esquerda onde se ouvia tiroteio seguido, e intenso, quer dum campo quer doutro.

Passaram-se horas assim; a chuva continuava e os terrenos encharcados dificultavam, fora das estradas, o movimento das tropas; contudo o reconhecimento fez-se e as minhas forças entraram na posição e começaram o avanço normal apesar das difíceis ligações quer laterais quer da frente para comigo; apesar da artilharia dificilmente verificar os seus tiros e da infantaria não alcançar visibilidade além dos 300 metros à frente.

À direita, para os lados de Albergaria, o outro destacamento ocupou novas posições à frente e avançava com segurança.

O êxito do movimento acentuava-se e as deslocações iam-se fazendo quando recebi ordem para retirar e reunir as minhas forças na povoação do Eirol, na margem esquerda do Vouga.

Este movimento retrógrado que correspondia à entrega da margem direita do rio, novamente, às forças contrárias, causou / 254 / surpresa a todos e depressão natural na soldadesca. Porque se retirava?

A discussão das causas e efeitos não adiantaria nada ao meu intento que apenas visa as recordações amenas desses sucessos infelizes da nossa perturbada vida política; mas lembro-me bem que a retirada se fez ao tempo em que o temporal amainou e o céu se entreabriu, por vezes, já sobre a tarde e deixou ver ainda uma ou outra alegre réstia de sol poente a doirar a paisagem toda húmida.

Alto de Angeja, onde estiveram instaladas forças de artilharia dos revoltosos.

Desci a S. João de Loure, atravessei a ponte, cortei à esquerda pela E. N. n.º 45 e subi pela calçada estreita e em curvas para essa pitoresca povoação do Eirol, assente em terras altas que dominam o vale e a passagem sobre o Águeda que  eu ia encarregado de defender.

Reuni então, debaixo do meu comando, naquele entardecer alegre dum dia tempestuoso, as tropas que tinha comandado pela manhã, mais uma divisão de artilharia e o pequeno pelotão de marinheiros que em baixo tinha a missão especial de guardar a ponte da Rata tudo extenuado pelo trabalho contínuo nas posições, pela falta completa de alimentação e ainda pela marcha de bastantes quilómetros que se fez.

Apesar do cansaço, organizou-se o serviço de segurança; procuraram-se informações seguras acerca dos adversários; mandei receber ordens ao Quartel General de Eixo para onde o comando tinha passado; e a noite veio cair sobre mais um dia de luta inglória, triste e, afinal, inútil...

No dia seguinte, já os campos se alegravam com o sol quase às soltas no céu com poucas nuvens, recebi a comunicação de que a nossa cavalaria, ao explorar a margem direita, na direcção de Angeja, verificara a saída das tropas contrárias desta / 255 / vila e a sua marcha normal para o norte, na direcção de Estarreja.

Estávamos, pois, de novo, senhores da margem direita; e na tarde desse dia 31 entrei com o meu batalhão em Angeja e tomei as posições de apoio a outro batalhão já nessa altura em postos avançados na linha Fermelã-Sobreiro (11). E ainda nesse mesmo dia, recebi ordem de nova organização do destacamento que fora reforçado com mais unidades vindas do sul.

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O meu batalhão ficou então constituído (e assim ficou até final) pelas duas companhias de infantaria n.º 24 que já tinha e pela do 23 que comigo seguira de Coimbra; e, desde o dia 8 de Fevereiro em diante, por outra do regimento 7 (12) no total de 620 homens com duas metralhadoras ligeiras (13).

Eirol − Ponte da Rata

Durante os nove dias que se seguiram, o batalhão fez o serviço de postos avançados, de apoio ou de reserva, consoante a escala, na região ao norte de Angeja; lançou reconhecimentos pelos quais se concluía que os adversários tinham muito pouca gente na povoação de Salreu e só em Estarreja tinham maior  número. Nestes nove dias, o comando superior das forças em  / 257 / operações esteve a organizar melhor os dois destacamentos que operavam ao longo das estradas Aveiro-Ovar e Águeda-Oliveira de Azeméis e por isso se chamavam vulgarmente os destacamentos de Aveiro e de Albergaria.

Era já o caminho (como teria dito o ilustre comandante Rocha e Cunha) para o estado positivo.

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Em 9 de Fevereiro, à noite, planeou-se o ataque a Salreu como base para atacar Estarreja que se julgava ser (como, de facto, foi) o último reduto da resistência adversa.

O plano era simples: o 1.º batalhão do destacamento seguiria pela estrada Angeja-Estarreja; eu, apoiando a minha-esquerda na direita desta unidade, seguiria pela estrada Angeja-Albergaria até ao Sobreiro onde transporia a linha dos postos avançados para realizar a marcha na direcção norte, com o fim de ocupar a linha determinada pelos lugares de Soutelo-Campinos de Salreu e obrigação de estabelecer ligação constante à direita com o destacamento n.º 2 (Albergaria).

Oficiais do batalhão comandado pelo autor deste texto

Da esquerda para direita: 1º plano (sentados): alferes Gomes Pereira de Lemos; tenente-médico Alfredo barata da Rocha; alferes Natividade e Silva; alferes José de Oliveira e Pinho; alferes de administração militar Rui de Lemos; alferes José da Silva Rodrigues Mendes. 2.º plano: tenente-miliciano Dr. Alberto Ruela; tenente Francisco Maria Soares; capitão Duilio Marques; capitão Bernardino Sena Lopes; major Belisário Pimenta; capitão Zeferino Camossa Ferraz de Abreu; capitão Manuel Rodrigues Leite; alferes do quadro do Ultramar Napoleão Soares. 3.º plano: alferes Carlos Rodrigues Varela; alferes Flaviano Henriques de Miranda; alferes Manuel Caseiro Marques Alves; alferes Esteves; alferes Vitorino Tavares; alferes Aurélio Rebocho Vaz; tenente José Augusto da Cruz.

Realmente, na manhã de 10, nevoenta, com prenúncios de chuva, começou-se a marcha, algum tanto demorada por deficiências técnicas da sua preparação; depois, enquanto o 1º batalhão fazia o seu caminho ao longo da estrada, apoiado nos / 258 / esteiros, eu fui andando por terreno ondulado, com sulcos nalguns pontos fundos, coberto de pinhais em quase toda a extensão, cortado por atalhos largos em várias direcções, atravessado por muitas ribeiras que normalmente seriam fios de água e nessa altura eram torrentes apressadas. Tornava-se difícil a observação e a orientação; o dia escurecera muito antes do meio dia e a chuva começou a cair impiedosamente, encharcando a terra arenosa, incomodando a marcha, quase não deixando ver, a mais de 200 metros, se alguma aberta aparecia na arvoredo.

Contudo a marcha fez-se normalmente; e pela tarde, cerca das 15 horas e meia, depois de várias peripécias sem importância para o conjunto, conseguiu-se alcançar o objectivo, e, até, na direita, ultrapassá-lo um pouco, por engano, nas alturas da povoação do Soutelo.

Instalaram-se, então, postos avançados na linha Soutelo-Campinas de Salreu, debaixo. já de temporal desfeito; durante toda a noite, o vento soprou violentamente e a chuva caiu com tal abundância que se sentia nas ruas e quintais a água a correr por valetas e regueiras.

Margem direita do Vouga − Pateira de Frossos

Calcule-se o que passariam pelos postos isolados as vedetas, e pelos atalhos atulhados de lama e água corrente, as várias patrulhas e rondas no necessário serviço de vigilância; e quando, já pela alta madrugada, tudo indicava a continuação do temporal e da chuva diluviana, o tempo amainou e, com mutação imprevista, o céu azulado apareceu à luz da manhã e ligeiros chuviscos apenas, caídos de nuvens esparsas, vinham lembrar o pesadelo da noite.

Do alto do enorme espinhaço que vem morrer a poente de Salreu, o espectáculo naquele amanhecer era extremamente curioso.

As águas corriam e cantavam por toda a parte em levadas rápidas; nas baixas do Antuã, entumescido e barrento, os lameiros brilhavam como espelhos; as árvores pareciam sacudir a chuva impertinente; e os telhados de Estarreja, ainda molhados, chispavam com a sol. Ao longe, as terras alagadiças que se estendem para a Ria, estavam encharcadas de todo e, por cima delas, a humidade da manhã mal deixava divisar o vasto e formosa estuário.

Não desaparecem facilmente da memória cenários como este; a preocupação do momento não desviava a beleza e até sugeria o contraste da serenidade da Natureza com a intenção malévola dos homens. Naquela manhã tão bela, e através dos prados húmidos e fecundos, deveria continuar-se o avanço das forças do Governo; o plano lançado de véspera estava bem traçado e seria difícil que os adversários resistissem à investida. Iria, possivelmente, morrer gente naquela magnífica e bela região por entre a pradaria pacífica e fértil.

E na verdade, mal refeitas as tropas das inclemências da / 259 / noite, tomaram-se as disposições necessárias e o ataque a Estarreja começou com segurança e terminou com êxito (14).

A vila de Estarreja era, naquela zona, o último reduto da resistência; as forças adversas retiraram para o norte e a acção perdeu todo o interesse, porque a retirada era patente e a reviravolta no Porto, em 13 de Fevereiro, veio rematar a contenda.

A 16 do mesmo mês, as forças reunidas entraram no Porto entre aclamações e músicas.

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O que a memória e os apontamentos reproduziram, aqui ficou melhor ou pior; mais ou menos, os sucessos que presenciei são estes, narrados simplesmente, sem afeição ou malícia...

Já lá vão 17 anos; o mundo rodou sempre e hoje, depois de tanto rodar sobre o seu eixo, os sucessos a que me reporto parecem-me coisas longínquas e começam a esfumar-se como em horizonte afastado.

Conservo, porém, nítida, a impressão da boa qualidade do soldado aveirense; e, por sobre todas as agruras do tempo e de todos os maus bocados, inerentes a uma luta civil, paira a beleza da paisagem do Vouga. Houvesse o que houvesse, nunca deixei de admirar natureza tão pródiga. Quer em conjunto cenográfico, quer em recantos pitorescos de folhagem ou qualquer curva graciosa do rio, havia sempre motivos para atenção, embora fugaz, mas que a retina conservava e hoje algum sentimentalismo de próxima velhice mantém ainda com ternura.

Abrantes, Maio de 1936.

BELISÁRIO PIMENTA

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(1) −   Era comandada pelo malogrado tenente Francisco Maria Soares, rapaz de valor, zeloso, inteligente e culto a cuja memória amiga me é grato prestar saudosa homenagem. Tinha por subalternos: o tenente miliciano Dr. Alberto Ruela e os alferes Cosme Pereira de Lemos, Vitorino Tavares e Augusto de Natividade e Silva.

(2) Este batalhão tinha os seguintes oficiais: capitão Zeferino Camossa Ferraz de Abreu, seu comandante interino; capitães Bernardino Sena Lopes e Manuel Rodrigues Leite; tenente Duilio Marques; alferes Flávio Henriques de Miranda; José de Oliveira Pinho, Zeferino Barbosa Vaz e Castro e aspirante Manuel Pedro Rodrigues Pardal. 

(3) Esta companhia era comandada pelo tenente José Augusto da Cruz; e tinha por subalternos os alferes António João dos Santos e Aurélio Rebocho Vaz (miliciano).   

(4) Esta bateria era comandada pelo tenente miliciano A. Carteado Malheiro Brandão; e tinha como subalterno o alferes do quadro auxiliar Manuel Mendes da Rocha.

(5) Os marinheiros eram comandados pelo 1.º sargento de manobra João Dias Maia, todos, se me não engano, do serviço do porto de Aveiro; os voluntários civis eram-no pelo cadete da Escola de Guerra Albertino Leite Loureiro.   

(6) Esta ponte tinha, há uns dias, parte do pavimento levantado; por isso a passagem não seria muito fácil desde que, da margem de cá, houvesse defensores atentos como houve. Cabe aqui uma rectificação: no jornal de Lisboa "A Manhã", no seu n.º 678 de 13 de Fevereiro, veio publicada uma gravura que representava a ponte vista da margem esquerda e, por debaixo, a explicação de que «foi valentemente defendida pelos civis armados e pelas forças do 24 e outros regimentos sob o comando do major B. P. e capitães Camossa e Leite». Ora a verdade é que os voluntários civis estavam no apeadeiro de Cacia e ponte do caminho de ferro e não tomaram parte nesta acção; e a defesa da ponte de madeira estava entregue (e muito bem entregue) à companhia de infantaria 14 comandada pelo valente e ponderado capitão Zeferino Camossa Ferraz de Abreu, que foi ferido exactamente por tomar a peito o seu dever.. Fica, pois, assim, «o seu a cujo é, como diria Fernão Lopes. 

(7) Foi durante este tiroteio que o capitão Zeferino Camossa foi ferido, embora ligeiramente; querendo dar o exemplo de serenidade perante o perigo, foi atingido no pescoço por uma bala de espingarda.  

(8) Este pequeno reconhecimento foi dirigido com muito desembaraço e inteligência pelo alferes Cosme de Lemos.

(9) −   A patrulha saiu da companhia do capitão Zeferino Camossa, e foi comandada pelo 2.º sargento Silva, do 3.º batalhão.

(10) A companhia do 5 era comandada pelo capitão miliciano Artur da Cunha Azinhais; a mista do 28 e 35 pelo capitão Romano Barnabé Ferreira;  e a do 24, era a do tenente Francisco Maria Soares. 

(11) Era o batalhão de infantaria n.º 2 comandado pelo capitão Jaime Rodrigues Baptista. 

(12) Era comandada pelo capitão José Salvação Barreto e tinha por subalternos os alferes José Rodrigues da Silva Mendes e Carlos Rodrigues Varela. 

(13) Comandava as metralhadoras o alferes .Manuel Caseiro Marques Alves. 

(14) − Não assisti, por motivo de doença, a esta acção. A parte dela entregue ao batalhão, foi superiormente dirigida pelo capitão Zeferino Camossa Ferraz de Abreu, meu imediato o qual com critério, conhecimento e desembaraço, quer pela direcção quer pelo exemplo, deu impulso notável ao ataque. 

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