Pedro Vitorino, O mosteiro de Arouca, Vol. II, pp. 165-174.

O MOSTEIRO DE AROUCA

II

O EDIFÍCIO

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[Vol. II - N.º 7 - 1936]

APESAR DAS suas origens medievais, o cenóbio cisterciense de Arouca não contém qualquer rebotalho arquitectónico que lhe denuncie o remoto passado.

O plano reconstrutivo traçado no século XVlII, procurando dar grandeza e unidade à fábrica, nada deixou subsistir desses tempos, cujas formas de arte eram tidas como bárbaras. O gosto italianizante setecentista foi a causa do aniquilamento lamentável de muitos dos nossos antigos monumentos. Arouca é um desses exemplos frisantes; só a história e a tradição nos lembram uma veneranda antiguidade. Qualquer capitel, arquivolta ou lápide sepulcral, coevas, procurar-se-ão baldadamente. Os reformadores, sem sombra de respeito, tudo aniquilaram.

O arqueólogo apenas encontrará, como insignificante recompensa à sua curiosidade traída, uma arca tumular de granito, talvez trecentista, trazida há pouco tempo para o claustro, de uma escura adega onde se encontrava, que decerto encerrou personagem de categoria: anepígrafa, mostra quatro escudos a par, cujas peças heráldicas se duplicam: cinco flores de .lis no primeiro e no terceiro (Albuquerques, Maldonados), três faixas de veiros no segundo e no quarto (Vasconcelos).

Com a arca de pedra que abrigou primitivamente o corpo de D. Mafalda, e alguns objectos guardados no tesouro, pode dizer-se ser tudo quanto respeita a sobrevivências medievais.

O túmulo antigo da Rainha Santa, conservado religiosamente sob o seu altar, não é como se disse (Portugal, Dic., 1909, v. Arouca) «um magnífico exemplar medieval», visto ser destituído de qualquer adorno lavrado; apresenta apenas restos de pintura policrómica, com um brasão encimado por coroa, e acha-se bastante mutilado nos bordos por estilhaçamentos provocados pelos devotos, desejosos de levar consigo algumas relíquias. / 166 /

Anterior ao século XVIII, havia uma igreja da invocação de S. Bartolomeu, que servia de paróquia, a qual se levantava num adro vedado sito a norte do convento. Foi demolida ai por 1900 para dar lugar à actual praça. Davam-na como edificada nos «tempos de Affonso III ou de Diniz, pela abbadessa D. Milícia», no propósito das freiras se libertarem das importunidades dos serviços paroquiais, pois esses realizavam-se na Igreja do convento desde que, em 1220, desapareceu a igreja própria, de três naves, da invocação de S. Pedro, à ilharga do cenóbio, para que, então, este pudesse ser ampliado.

Fig. 1 - Antiga igreja de S. Bartolomeu, hoje demolida. (Segundo um desenho do natural de Abel Acácio). Gravura em madeira (De "O Ocidente", 1883)

Recolho estas informações de ABEL ACÁCIO ("O Occidente", 1883), que ilustrou o seu trabalho com um desenho do natural, em boa hora colhido, porquanto é o único documento que resta da demolida matriz (fig. 1). Há a notar um equívoco: a abadessa D. Milícia é contemporânea de D. João III e não de nenhum rei da dinastia afonsina. Também a gravura (inserta na citada revista, com o título errado, pois indica «mosteiro» em lugar de «matriz»), apesar da sua imprecisão, apresenta características arquitectónicas manuelinas, de harmonia com a época da sobredita abadessa.

O campanário, que junto se elevava, pelo seu isolamento e formas, de forte silharia com arcadas redondas, aparenta ser mais antigo, do período românico.

Acerca da matriz escreve na referida publicação, "O Ocidente", / 167 / ABEL ACÁCIO: «O interior d'esta é, como o exterior, pobre e modesto, e está por igual deteriorado. Vêem-se na capella-mór dois tumulos embebidos na parede, um a cada lado do altar, com epitaphios gothicos quasi illegiveis, e ainda para mais pintados a ocre espessamente! No pavimento da egreja algumas inscripções tumulares se leem tambem a custo, todas sem importancia. Merecia mais cuidado dos poderes publicos, ou ao menos do municipio da villa, este venerando e valioso, a pesar de pobre, monumento nacional.»

O cuidado havido poucos anos depois deste grito de alarme, que decerto na terra passou ignorado, traduziu-se na demolição pura e simples do monumento sem que dele nos ficassem quaisquer vestígios.

Fig. 2 - Planta geral do mosteiro de Arouca.

Com a reforma setecentista o mosteiro de Arouca, se perdeu em interesse arqueológico, ganhou todavia em unidade arquitectónica. É uma fábrica homogénea, de sóbrio e elegante aspecto, com a feição do estilo barroco italiano, na modalidade predilecta da Ordem dos jesuítas.

«Forma um vasto edifício quadrangular, medindo com aproximação 9:000 metros quadrados e orientado sensivelmente pelos quatro pontos cardeaes.» (ABEL ACÁCIO, ob. cit.)

O simples exame da planta (fig. 2) permite avaliar a grandiosidade da construção.

A igreja, do lado norte, defronta a praça. A poente, rasga-se / 168 / a portaria num corpo levantado a meio da ala, em cujos extremos se erguem, sobranceiros, torreões quadrangulares.

Aqui, podemos ver esculpidas as armas do convento, representadas diversamente: na portaria, um escudo, tipo português, partido em pala, tendo no primeiro campo as quinas e no segundo um lisonjado em banda; no tímpano do frontão, um escudo oval, com coroa, e as mesmas figuras heráldicas, acrescidas de um castelo e três flores de lis; o lisonjado e os lises são das armas do mosteiro de Alcobaça, cabeça da Ordem de Cister desde 1580.

Visto dos pontos elevados da vila, por qualquer das faces, o conjunto do mosteiro é verdadeiramente majestoso (fig. 3.)

Fig. 3 - O mosteiro de Arouca, visto pelas faces norte e poente.

Como se observa em geral nas igrejas conventuais de freiras, a porta de entrada é ao lado, entre o coro e a capela-mor; um pórtico singelo, com frontão adornado de pirâmides, põe uma grande mancha escura na cortina alva da parede, percorrida por pilastras e faixas e semeada de aberturas; a cada pilastra, sobre a cornija, corresponde uma elegante e grandiosa pirâmide. A igreja e o coro elevam acima das paredes conventuais, que lhes servem de contrafortes, as suas robustas abóbadas de granito.

No interior, o templo apresenta pilastras ornamentais entremeadas de edículas com esculturas de santas da Ordem de Cister; trabalhadas em pedra de Ançã, com esbelteza, são talvez obra dos artistas de Coimbra. Do lado da epístola fica o altar onde está a riquíssima urna de Santa Mafalda.  / 169 /

A capela-mor tem um magnificente retábulo de talha dourada, de exuberante fantasia decorativa e de fina execução. Duas ostentosas pinturas laterais, com belos emolduramentos, fixam passagens da vida de S. Bernardo; neste lugar vê-se hoje a antiga cadeira abacial pertencente à sala do Capítulo, de pau preto, que é peça, quer pelas formas quer pelo acabamento, digna de ser observada.

Fig. 4 - Coro do mosteiro.

O coro, grandioso e amplo, um dos melhores do país, tem uma superfície aproximada do corpo da igreja; de um e de outro lado, em duas filas, alinham-se os cadeirais, de assento móvel, e entalhos grotescos, com cento e dois lugares, sob fuIgentes retábulos de talha que enquadram pinturas de ingénua factura e anacrónica indumentária, versando assuntos monásticos. (fig. 4).

Sobre o arco de comunicação do coro com a igreja, cerrado por grades, corre uma galeria (chamada coro de cima) destinada aos músicos e cantares nas festividades, a qual liga os vestíbulos altos, com tribunas, que faceiam o templo, e conduz ao órgão, datado este de 1743.

Inferiormente ao arco, à entrada da coro, pendem duas pinturas alusivas a um incêndio que se ateou no convento em princípios do século XVII. Diz a lenda que, na angustiosa
 emergência, Santa Mafalda, despertada no sono da morte pelo fragor do sinistro, surgiu ante as monjas apavoradas para aplacar as labaredas. Deste moda se lhe refere Fr. Bernardo de Brito: «
...& pondo-se fogo ao Mosteyro de que ardeo grande / 170 / parte, virão todas a santa Rainha D. Mafalda com hum bordão na mão (como costumava trazer quando vivia) & fazendo o sinal da Cruz na porta da enfermaria, & depois no Coro, se tornarão as chamas atrás, & deyxárão a Igreja livre, & a casa das enfermas». (Chr. de Cister. L. VI).

Correm impressas sobre o incêndio de 1725 e a construção actual do edifício notícias inexactas, que convém rectificar.

Na revista "O Occidente" (1884), ABEL ACÁCIO diz que «não obstante haver o antigo templo do mosteiro escapado à devastação do incêndio de 1725, foi ele também reconstruído por amor da harmonia no estilo do resto das edificações».

De teor semelhante é a informação dada no dicionário Portugal:

«No seculo XVI soffreu a fabrica do edificio um incendio, que pouco a damnificou, porém, a 22 de fevereiro de 1725, foi então pasto d'uma lastimosa e terrivel devastação pelas chammas, que reduziu tudo a cinzas, exceptuando a egreja e um lanço novo do dormitorio, abobadado. O convento foi novamente edificado com a largueza do edifício anterior, que era irregular e caprichoso, mas ganhou sobre este a vantagem da unidade no aspecto e da regularidade nas proporções. Foi filho d'essa reedificação o mosteiro actual, que no extremo oeste de Arouca se ostenta grandioso sem primores de arquitectura; filia-se na ordem toscana, e forma um vasto edificio quadrangular».

Foi sem dúvida calamitoso esse incêndio de 1725, a avaliar pela memória que dele perdurou e pelo desejo que as freiras tiveram em a transmitir à posteridade. Assim o provam as pinturas a que me referi: são duas grandes telas dependuradas no coro, à entrada, uma de cada lado, junto da grade separativa da igreja.

Apesar de muito sujas e deterioradas, pareceram-me composições interessantes sob o ponto vista artístico, dignas de beneficiação.

No género alegórico, à Vieira Lusitano, muito em voga nos meados do século XVIII, ambas patenteiam a figura tutelar da rainha D. Mafalda, de brancas vestes monásticas, flutuando no espaço, com o seu bordão, para acudir, solícita, ao cenóbio prestes a converter-se em cinzas. As boas das freiras atribuíram à Santa, sua protectora, a extinção milagrosa do incêndio. Daí, o decidirem-se à confecção dos quadros memorativos.

Ora os factos apontados pelos historiadores brigam com um documento ainda existente no mosteiro. A reconstrução não foi uma consequência do sinistro. Precedeu-o alguns anos, embora tivesse prosseguido lentamente.

Esse documento, de duplo valor para a história do convento e da arte, por nos revelar o nome do arquitecto que delineou a obra, é o seguinte, fielmente transcrito: / 171 /
 
«Na era de mil e sete sentos e dezoito sendo Abb.ª a m.to ilustre digniçima e singolariçima prelada a Srã D. Elena de Robles, veyo a este mosteiro de Arouca por mandado e ordem do Noso R.mo Dom Abb.e G.al fr. Paulo de Brito, o Dom Abb.e de São João de Tarouca fr. Pedro da Silveira, pª Benzer a igreija noua, o q. fes solenem.te em hüa sesta feira 20 de outubro em companhia do m.to R P. Comfesor fr. Matias Coelho e dos mais Religiozos e pesoas nobres q. aqui se acharão, e logo com as mesmas vestias abaçiais vierão a igreija velha pª se mudar o tumolo da Rainha Santa q. sahio com charamelIas e repiques de todos os sinos e com canticos de louuores q. cantava toda a comonidade e os Religiozos acompanhado de m.ta sera e a sim se colocou no seu altar.

«Neste mesmo dia pelIas duas oras da tarde se abrio a porta do coro emtrou a Srã Abb.ª com as religiozas em comonidade a dar a Ds. graças e logo forão os Religiozos com o Dom Abb.e buscar o Santiçimo Sacram.to cantando elIes os hinos no coro e na tribuna estavão m.tos estromentos e muzica q. durou athe se recolher o S.or no nouo Sacrario.

«Logo se emtrou ás vesporas com grande solenidade e se fes a reza da dedicação da igreija; no sabado de manhan se disse missa de pontifical com m.ta musica e ouue hü admiravel sermão q. pregou o Dor fr. Manoel Ozorio tratando nelIe da dedicação do templo a Ds. e a virgem mª nossa S.ra e louvores e louvores ao Rmo Dom Abb.e e parte dos innumeraveis q. são devidos a S.ra Abb.ª e dos do P. feitor fr. Francisco de Castro q. nestes toda a eloquencia fica dimenuta ë q. pode falar á demiração de se achar em hú sojeito tanto talento, zelo, virtude e imcomparavel diligencia á coal se deve e ha de deuer o dar ezecoção e fim a esta tão magnífica obra q. he comtada pelIa milhor d'este reino por q. do de Italia era o insigne architeto Carlos Gimac q. della fes a planta e a S.ra D. Margarida An.ta de miranda q. Ds. tem sendo prelada se animou a chamalo de Lxa. aqui a dar principio a tão eroico templo sem q. nese tempo tivese a religião nenhü porvim.to de dinheiro, mais q. fiada na mizericordia de Ds. o q. elle permita seija p.ª  sua maior gloria;

«e eu porq. por tudo seija louuado e por me mandarem escreui esta memoria em 22 de outubro de 1718

D. Maria Baldaya de Miranda
Cantora Mor»

/ 172 /

Vê-se que em 1718, isto é, sete anos antes do incêndio, a nova igreja e o coro estavam feitos, embora este se achasse por concluir na sua ornamentação, pois que sobre o revestimento dourado da porta do fundo se lê a data de 1795. Conforme o dinheiro permitia, as obras continuavam. A sua lentidão é ainda comprovada por esta legenda aberta numa cartela sobre a varanda do claustro, na frente da Sala do Capítulo:

  «Lancouse a pri-
meira pedra neste dor-
mitorio em 2 de Maio
de 1781, sendo abbadeça
D. Joanna Maria Forjás
e acabou-se em novem-
bró de 1785, sendo ab-
badeça D. Clara Del-
fina Pinto de Lacer-
da, no III anno do
seu governo».

A Sala do Capítulo notabiliza-se pelos panos de azulejo, policrómicos, recortados, com paisagens e figuras, de incontestável valor e grande efeito decorativo (fig. 5).

As freiras jamais conseguiram concluir o claustro, onde está marcado o ano de 1798, o qual se acha abobadado e com galeria apenas em duas faces; todavia dotaram-no com um belo chafariz, deveras típico, com bancos em redor, que a dedicação dos amigos do mosteiro, recentemente, conseguiu restaurar e nele fazer correr de novo a água.

As delongas havidas motivaram, por certo, o equívoco dos historiadores; mas antes do incêndio de 1725 já a grande obra de reconstrução estava em parte executada.

Sem ser inteiramente desconhecido o documento acima transcrito, pois que pelo investigador portuense P.e FRANCISCO JOSÉ PATRÍCIO foi comunicado ao DR. SOUSA VITERBO, que se lhe referiu no Diccionário dos Architectos, voI. l, p. 572, tornei-o público, na íntegra, sem abreviaturas e com ortografia moderna, no "Jornal de Notícias", do Porto, de 27 de Outubro de 1935.

O arquitecto Carlos Gimac era natural da Ilha de Malta e viveu em Lisboa na época de D. João V. As suas qualidades de técnico estão bem patentes no edifício de Arouca, onde se encontram pormenores e soluções arquitectónicas deveras apreciáveis.

Verdadeiramente singular foi a maneira como esse documento chegou até nós. A senhora cantora mor, D. Maria Baldaya, a quem ele se deve, escrito numa lauda isolada de papel, pessoa de engenho, pelo visto, e de previdente resolução, não encontrou  / 174 / melhor maneira de o poupar ao desaparecimento do que colá-lo na porta de um armário, sem dúvida pertença sua. É  pois nesse velho móvel de largas tábuas de castanho, onde se guardam diversos livros litúrgicos, que se acha a solução de um pequeno problema da história de Arouca.

Fig. 5 - Sala do capítulo / pág. 173 /

O pobre papel amarelecido tem o valor de uma lápide!

Aos meus ilustres amigos srs. Drs. Simões Júnior e Alberto Brito, por me facultarem o seu exame, aqui lhes tributo o meu reconhecimento.

Ao fundo do terreiro, agora denominado Largo da St.ª Mafalda, no prolongamento da ala sul, fica o chamado celeiro, excelente edifício abobadado, servido por uma escadaria em dois lanços digna de um sumptuoso solar. Em outros tempos vedado, este terreiro tinha à entrada um portal renascença, ainda existente próximo do convento.

O edifício do mosteiro, ao qual, como merecia, não foi dada qualquer aplicação depois que o Estado dele tomou posse, esteve bastante ameaçado por um incêndio que se manifestou na noite de 19 para 20 de Outubro de 1935 nas celas utilizadas como habitações de particulares.

Por felicidade os danos não foram irremediáveis; à imprevidência dos homens, antepôs-se, redentoramente, a boa estrela do destino.

PEDRO VITORINO

Continua no vol. III, pág. 11 ►►►

NOTA - Os q. têm um til que não é possível colocar, o mesmo acontecendo nas palavras com um trema em sua substituição.

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