Serafim Leite, S. João da Madeira na Idade-Média, Vol. II, pp. 65-70.

S. JOÃO DA MADEIRA NA IDADE MÉDIA

DOCUMENTOS INÉDITOS DA TORRE DO TOMBO

S. JOÃO DA MADEIRA tornou-se notável na segunda metade do século XIX, pelo carácter industrioso dos seus filhos. Ao entrar o século XX deu tal salto que, logo ao dobrar o segundo quartel, se sentiu com forças para assumir responsabilidades municipais. E não com tímidos tenteios. O concelho de S. João da Madeira consta apenas da sua sede. Mas é incontestavelmente a vila mais industrial do distrito de Aveiro.

Não admira que a par do seu desenvolvimento económico despontem preocupações de cultura; e naturalmente os espíritos curiosos buscam saber a origem donde procede a terra que lhes foi berço.

Tivemos já ocasião de observar, a propósito do brasão de S. João da Madeira, que, sendo ela povoação antiga, contudo não possuía história; e que, em definitiva, para a geração actual era mais glorioso conquistar pergaminhos do que herdá-los. Isto, que dissemos um dia, sustentamo-lo hoje. Não obsta, porém, esta posição de coerência a que se investigue a demonstração daquela antiguidade até agora restringida a meia dúzia de referências dispersas, anteriores ao século XVII, recolhidas por PINHO LEAL, FORTUNATO DE ALMEIDA, Annaes do Municipio de Oliveira de Azemeis e num ou noutro documento avulso, como o padrão que concedeu à vizinha vila de Cucujães o privilégio de couto.

Temos presente uma série de documentos quase todos inéditos, que tratam de S. João da Madeira: vamos iniciar o seu estudo e publicação. Mas antes, seja-nos lícito agradecer a MIGUEL DE OLIVEIRA, ilustre sacerdote, brilhante jornalista e investigador de merecimento, o auxílio que nos prestou. Porque, achando-se ele a preparar a monografia histórica do concelho / 66 / de Ovar e conversando sobre os respectivos trabalhos, comunicou-nos que na Torre do Tombo se lhe deparavam, de vez em quando, notícias das terras vizinhas. Diante do nosso natural interesse, levou a sua gentileza a dar-nos a cota dos documentos referentes a S. João da Madeira.

Abrindo um parêntesis, aliás agradável, ao nosso trabalho sobre o Brasil, estudamo-los um a um. E oferecemos aqui o seu sentido geral.

Todos estes documentos são de natureza económico-rural ou eclesiástica, valiosos pelas indicações pessoais ou denominações de terras, que nos conservam.

A referência geográfica fundamental, que permite classificá-los, é esta: a propriedade de que se trata (venda, compra, doação) fica na vila de S. João da Madeira, em baixo do monte Parada Ioaz, onde passa o Rio UI (in uilla Sancti Iohanis de Madeira, prope civitas Sanctae Mariae subtus mons Parada Ioaz, discurrente rivulo UI).

Todos sabem o que significa cividade, diferente de cidade, e como nada tem que ver o antiquado termo de vila com o conceito moderno deste mesmo vocábulo.

loaz, com que se designa aquele monte e parada, surge-nos em diversos documentos com estas leituras ou interpretações: Loaz, Louaz, Ihoahaz, Iaz, Iuaz, Ioaaçe. Só num documento de 1187, infelizmente incompleto, roído pelos ratos, lê-se: in uilla Sancti Johanis de Madeira, Territorio Sanctae Mariae sub... mº... Codal, discurrente rivulo UI (1). Codal, como expressão geográfica moderna, é uma freguesia do concelho de Cambra.

O maior número de pergaminhos pertence ao ano de 1122. Em todos se nos deparam aquelas primeiras referências topográficas, menos no de 3 de Setembro, em que a propriedade, que compram Gundiçalvo Menendes e Gontina Gutierres, em S. João da Madeira, está situada de Ur in astar prope eivitas Sanctae Mariae, subtus mons parada Ioaz, discurrente rivulo Antoã, Territorio Portugalensis (2).

Temos portanto, nesta pequenina bacia hidrográfica sanjoanense, os rios Antuã e Ul. Não pretendemos resolver o problema que daqui se possa originar, quanto ao curso e denominação actual destes rios. Notemo-lo simplesmente, e digamos, a título  de glossa, que além dos acidentes de terreno e das correntes fluviais, se usava também, como ponto preferido de referência, o sítio da igreja; e é óbvio que tendo um proprietário junto dela alguma herdade relacionasse com esse núcleo outras mais distantes, que viriam com o andar dos tempos a ficar fora do seu termo. No entanto, aquele facto confirma, o que se não pode / 67 / negar, que S. João da Madeira, topograficamente, é centro de uma região mais vasta que a do seu actual município.

A igreja de S. João da Madeira deve ser anterior ao ano mil e já existia com certeza em 1088. A 23 de Março deste ano vende Pelagio Godinho a Truillo na vila de S. João da Madeira parte de uma herdade que se estendia «até Vila Plana (Vila-Chã), onde corre o Rio Ul, em baixo do Monte Parada Louaz, perto da cividade de Santa Maria» (3). No mesmo dia vende Eilo Godines a Donadeo Alvares e seu marido Truilo o casal, que foi de Godino Vimaraz, sito na vila de S. João, que dizem de Mateira, a minha parte que aí tenho no mesmo casal, como se limita pela estrada que vai desde a igreja de S. João, da parte do Ur (4).

Para fixar a cronologia, recordemos que a fundação de Portugal costuma datar-se da batalha de S. Mamede, ganha por D. Afonso Henriques (1128), proclamado rei pouco depois. São, por conseguinte, notícias anteriores à fundação da nacionalidade portuguesa.

Averbemos, rapidamente, outros pontos interessantes. No dia 28 de Junho de 1122 Sandino Rodrigues e seus irmãos e irmãs vendem a Gundiçalvo Menendes e Gontina Gutierres «hereditate nostra propria que habemos in uilla Sancti Joahanis de Madeira de astar ata illo ueneiro prope civitas Sanctae Mariae subtus mons Parada loaz, discurrente rivulo Ur» (5). A 28 de Junho de 1142 referência semelhante: Pedro Sandamires e seus irmãos e irmãs vendem aos mesmos a sua herdade em S. João da Madeira desde illa strada mourisca ata illo ueneiro(6).

Ueneiro? Ao sul de S. João existe hoje o lugar do Urreiro. Será isso? Será um veio de água? A maior cópia de informações topográficas acha-se num pergaminho de 1225, por desgraça muito deteriorado com a  noz de galha que lhe deitaram antigamente para o ler. É um contrato de permuta de terrenos (chartula kambiationis et transmutationis), onde aparecem os protagonistas de sempre, Gonçalo Mendes e sua mulher. Os nomes que ainda pudemos decifrar são quase todos, actualmente, outros tantos lugares de S. João ou de Cucujães: Marmula (Mamoa), Astar (estrada?) Vale, Faria, Fundones (Fundões), Mourisca, Casal de Ero (Casaldelo), Casal de Escarigo (7).

Dá-nos um documento de 16 de Novembro de 1119 esta informação, em que surge o nome de Ovar a denominar as Terras de Santa Maria: Pedro Pelais e lelvira vendem, ainda / 68 / aos mesmos, a propriedade que ganharam com as suas «ganantias et incomunaduras in territorio que vocitant Sancta Maria de Ouar ex illo parte Durio uillas nominatas Sancto Ioane que dicent de Maderia et in alia uilla Saulamir» (8). Sámil é um lugar limítrofe de S. João da Madeira na vizinha freguesia de S. Roque.

Nas Inquirições de D. Dinis (1288) alude-se a uma quintaam  de Estevam Soares e outra de Pero Veegas(9). Duma delas proviria o nome de Quintã, o mais dilatado bairro de S. João da Madeira.

O pagamento daquelas compras fazia-se geralmente em moios de pão; algumas vezes em morabitinos e também noutros objectos. Na compra de 16 de Novembro de 1119 o pagamento foi «uma azemula cum sua albarda et cum suo exendere apreciada em CCos modios et alias cum in auro et in panos et uno manto gatuno apreciado em Lª bragales (10); e na de 3 de Setembro de 1122, além de certa quantidade de moios de pão deu-se também em paga «uno mauro» (11).

Gonçalo Mendes e Gontina Gutierres, reunindo todas estas propriedades à roda da igreja de S. João, constituíram-se de facto senhores da terra e com direito à apresentação do pároco. Muitos anos depois, Gontina Gutierres, já de idade avançada, e certamente viúva, pois não se fala do marido, determinou doar a igreja de S. João ao Mosteiro de religiosas agostinhas de S. Cristóvão do Rio Tinto. A escritura de doação, feita por ela e seus filhos e netos, tem a data de Fevereiro de 1179 (12).

Com esta aquisição ficou investido o Mosteiro de apresentar in solidum o abade de S. João da Madeira. Tal situação jurídica achamo-la depois modificada, fazendo-se a nomeação alternadamente pela Mitra do Porto e pelo Mosteiro. A este facto de ser o Mosteiro o apresentante do abade, considerando o proverbial cuidado que tinham na conservação de documentos, se deve o possuirmos hoje a relação de várias nomeações, com os nomes, cerimónias, concorrentes, testemunhas, etc., que intervinham para a sua legalidade. O mosteiro apresentava o / 69 / pároco. Ao Prelado competia confirmá-lo. Os autos destas confirmações realizavam-se umas vezes na Cúria Episcopal do Porto, outras em S. João da Madeira. Este último caso deu-se na confirmação do Abade Lourenço Anes, em 15 de Fevereiro de 1329. A cerimónia foi «no adro da igreja de S. João da Madeira, da Terra de Santa Maria». Representava o Bispo, o Vigário Geral João Palmeiro; pelo mosteiro de Rio Tinto assistia a própria abadessa, D. Leonor Gomes. O auto foi «feito ante a porta da dita Igreja, estando a dita abbadeça dentro na dita Igreja». Testemunhas: Rodrigo Anes, chantre do Porto; Afonso Esteves, clérigo; Mateus Afonso; João Geraldes, abade de Pindelo; Martim Peres, clérigo, e outros. O tabelião era «Afonso Martins, publico tabelião de El-rei na Feira, Terra de Santa Maria» (13).

O rei de Portugal em 1329 era D. Afonso IV, o Bravo. Toda aquela comitiva e aparato indica movimento e importância.

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Estes documentos, menos um ou dois, tiveram a mesma origem: o cartório «do Real Mosteiro de São Bento da Ave-Maria», do Porto, de beneditinas, a que foi anexado o de Rio Tinto, primitivo possuidor dos títulos, em 1535 (14).

Os documentos podem-se dividir em quatro séries:

PRIMEIRA SÉRIE (1088-1109) Contratos de compra e venda, entre particulares. São três documentos (Colecção especial, 2.ª Parte, caixa 52, maços 1 e 2, publicados já em Diplomata e Chartae, voI. I, fasc. III, págs. 421-422; e maço 7, n.º 70).

SEGUNDA SÉRIE (1119-1143) Os esposos Gundiçalvo Menendes e Gontina Gutierres, aumentam e arredondam, por várias transacções, as suas propriedades de S. João da Madeira e seu termo. São 15 documentos (Ib., maço 3, n.os 10, 11, 12, 13, (há dois com este número: um pertence a Paiva), 14, 18, 21, 22, 172, 240; maço 3, n.os 10, 16; maço 5, n.os 73, 79; maço 6, n.º 4).

TERCEIRA SÉRIE (1179-1256) Gontina Gutierres e seus filhos e netos fazem doação da igreja de S. João da Madeira ao mosteiro de Rio Tinto. Outras doações ou compras feitas pelo mesmo mosteiro em S. João da Madeira: 5 documentos (lb., maço 5, n.º 9 cf. Convento da Ave-Maria, liv. 16, fls. 365-367); Tombo de S. Simão da Junqueira, liv. 2, fls. 53-54; Col. Esp., maço 10, n.os 27E, 45.

QUARTA SÉRIE (1329-1598) Apresentação de abades de S. João da Madeira, feitas pelo mosteiro do Rio Tinto; confirmações do Bispo do Porto. Não é lista seguida. Registam-se doze nomes / 70 / (Convento da Ave-Maria, livro 16, fls. 17-24 v.; 368-379 v. Este volume foi organizado no século XVIII; e diz a fl. 24 v. que se passou o último título de colação ao P. Caetano José Leite Pereira, em 6 de Dezembro de 1737.

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Iremos publicando no todo ou em parte estes documentos, fonte preciosa para a melhor notícia dessa importante região do Distrito de A veiro, num período, como se vê, bem antigo e largo (15).

SERAFIM LEITE

 

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(1) Torre do Tombo, Colecção Especial, caixa 52, maço 10, n.º 27E. 

(2) lb., maço 3, n.º 11.

(3) Port. Mon. Hist., Diplomata et Chartae, voI. I, fasc. III, n.º DCCIII, pág. 421.

(4) lb., n.º DCCIV, pág. 421-422.

(5) Torre do Tombo, Col. Especial, caixa 52, maço 3, n.º 172.

(6) lb., maço 5,  n.º 79.

(7) lb., maço 5, n.º 10.

(8) Ib., maço 4, n.º 10.

(9) Inquirições de D. Dinis, publicadas por JOSÉ DA CUNHA SARAIVA, no Arquivo Histórico de Portugal, voI. lI, fasc. 4.º, pág. 118. Lisboa, 1935.

(10) Torre do Tombo, Col. Esp., Caixa 52, maço 4, n.º 10. Exendere é a cria da azêmula.

(11) lb., maço 3, n.º 22. VITERBO supõe que mauro, visto por ele noutros documentos no plural, seja a abreviatura de mrs, morabitinos ou maravedis, desenvolvida erradamente para mauros. (Elucidário, v. mauro). O presente documento, que é original, tem escrito «uno mauro» com todas as letras. Aliás naquele tempo, como nota o mesmo Viterbo, vigorava em Portugal a escravatura de mouros, provenientes das guerras entre sarracenos e cristãos.

(12) Torre do Tombo, Convento da Avé-Maria, liv. 16, fls. 365-367; Col. Esp. caixa 52, maço 5, n.º 9.

(13) Torre do Tombo, Convento da Ave-Maria, livro 16, fls. 368-470.

(14) PINHO LEAL, Portugal Antigo e Moderno, VIII, 212. Segundo PINHO LEAL, as religiosas de Rio Tinto mudaram então de regra.

(15) Sob o titulo de O Passado de S. João da Madeira (1088-1598), vão-se já publicando alguns em "O Regional", quinzenário da mesma vila.

 

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