Tomás Tavares de Sousa, Os moliços, Vol. II, pp. 57-64.

OS MOLIÇOS (1)

QUANTIDADE DE MOLIÇOS; SEU VALOR.

LICENÇAS DE APANHA E TRANSPORTE

ANTES de ter sido tornado oficial o Regulamento da Ria (28 de Dezembro de 1912) elaborado pelos senhores AUGUSTO NOBRE, JAIME AFREIXO e JOSÉ DE MACEDO, a apanha do moliço era livre em todo o ano, excepto no mês de Julho.

 

Só depois dessa data é que se estabeleceu uma época para o defeso com a duração de três meses, que é desde 24 de Março a 23 de Junho.


De então para cá, toda esta gente da Marinha o afirma, a diminuição do pescado foi muito considerável. Neste modo de pensar há o facciosismo de quem foi privado duma liberdade que até aí possuía.


O que deu origem à elaboração do citado Regulamento foram as constantes reclamações da classe piscatória; e o que é facto é que os grandes exemplares da fauna que vive na Ria, que até então tinha desaparecido, não voltaram a aparecer depois da publicação dos artigos e seus parágrafos no Diário do Governo. Por este lado tudo leva a crer que deste modo se  procedesse, pois assim se evitou que mais se depauperassem as pescarIas.


Pelo lado agrícola da questão é que ninguém se interessou. A época do defeso foi estabelecida atendendo unicamente à fauna; e tanto assim, que os seguintes períodos extraídos do relatório que acompanha o citado Regulamento
(2) mostram bem o pensamento dos seus autores: «a apanha das algas feita na época em que as criações entram para a Ria e se conservam / 58 / mais melindrosas, cerceia e perturba-lhes os abrigos, que elas naturalmente procuram nas praias ou parcéis, onde as correntes são mais fracas e contribui portanto para o seu aniquilamento. Demais, entre as diferentes espécies que habitam a ria há uma, o robalo, muito voraz, que faz enorme destroço nos novos que se lhe não possam ocultar. E as folhas do moliço são também habitat de pequenos animais de que os peixes são muito ávidos».


«Querendo-se conservar apenas a duração de quatro meses no defeso desta indústria das algas
defeso que se não tem cumprido ele deve ser estabelecido de 1 de Março a 24 de Junho, que é o que está mais em harmonia com as necessidades da fauna».


Já que estamos em ocasião de transcrições, permitam-se-me mais as seguintes: «Na decadência da produção das algas tem influído com mais ou menos intensidade, todos os elementos que vem alterando as condições naturais da Ria, avultando entre eles o levantamento geral dos fundos e também a exploração imoderada».


«O moliço propriamente dito, a seba, a folhada e outras plantas de valor secundário, que constituem a flora dos sapais, requerem naturalmente terreno quase permanentemente alagado, e hoje grande parte dos leitos que antigamente se mantinham inferiores ao nível das maiores baixa-mares, emergem já a pouco menos de meia-maré, havendo muitos que se elevam de modo a só serem banhados pelas preia-mares de águas vivas, e alguns pelas dos equinócios. Os alvéus, de certa altura para cima, passam a dar outras plantas-bajunça, junco e caniço, realizando-se assim a diminuição progressiva da área produtora de algas».


«A exploração excessivamente intensa que se tem exercido sem dar tempo a que as algas cresçam e se reproduzam... representa senão o aniquilamento da vegetação, que é muito potente, pelo menos o depauperamento da produção».


Não está ao meu alcance nem me compete criticar o assunto a que se referem os primeiros períodos; contudo, até onde me for possível exporei a minha maneira de ver. Dos últimos, falaremos em capítulo especial, conjugando a crítica, que se lhes pode fazer com a crítica geral feita a este trabalho.


A atenção especial que mereceu e merece a piscicultura quase com exclusão da outra indústria que vive nestas mansas águas não terá como causa o interesse imediato que tem o peixe na alimentação humana?


Moliço ninguém come; a assombrosa produção destes campos é muito interessante, curiosa mesmo, mas não se pensou que, se nesta «amena e aprazível campina» a população é das mais intensas do país, à sua agricultura se deve, a qual vive exclusivamente da Ria. A emigração aqui notada em todos os
/ 59 / tempos terá como causa principal o «depauperamento de produção» de peixes ou de plantas?


Se os fundos se elevam, deixam de produzir moliços, é verdade, mas produzem outros estrumes que não menos interessam à agricultura. Contudo, esta cada vez mais se tem estendido e intensificado à custa dos moliços e dos matos produzidos na marinha.


Os números que adiante apresentamos nada ou pouco se aproximam do exposto. Tudo leva a crer que a apanha de moliços tenha aumentado sempre; mas as expressões desse movimento económico dizem que estamos a retroceder. Talvez não seja assim; as estimativas apresentadas por antigos autores podiam ter pecado por excesso, assim como agora os nossos cálculos, que julgamos mais bem cuidados, podem pecar por deficiência.


Segundo MARQUES GOMES
(3) a quantidade de moliço que se arrancava anualmente ao fundo da Ria, podia andar por 200 mil barcadas no valor de duzentos contos. E no relatório do senhor FRANCISCO REGALA, publicado em 1889, está calculada em 505.500 toneladas a quantidade de moliços extraídos anualmente, num valor de 177 contos.


Mas hoje, graças à regulamentação desses serviços, podemos fazer cálculos mais rigorosos.


A quantidade e valor da produção dos moliços julgamos mais exacto acrescentar uma certa percentagem que atribuímos em 15% do que achamos baseando-nos nas licenças, o que supomos mais que suficiente para contarmos com a apanha do moliço que se faz a pé e com embarcações às escondidas da polícia marítima. Onde tem mais lugar este modo de proceder, é nas valas dos campos de Salreu e Canelas, e na extremidade sul dos canais de Mira e Vagos. Em todo o mais resto da Ria são raros os registos destes casos.


E por isso, supomos que não há razão para se calcular a produção de moliços em quase o dobro do que nos dão os cálculos feitos pelas licenças para apanha e transporte, como alguém opina.


Por outro lado, a base de cálculo que nos serviu é um pouco exagerada, porque parte das licenças que tomamos como para servirem em barcos são para bateiras, que não chegam a carregar metade da carga dum barco.


Os cálculos são feitos em moliço verde; e, se o que apresentamos sob reserva merecer reparos, temos a dizer que se alguns barcos colhem duas marés por dia, quando o descarregam em determinados canais próximos, também os que colhem moliço para secar nos meses de Setembro e Outubro andam dois e três dias para colherem uma barcada; e estes moliços
/ 60 /
 
 

 
 

Moliceiro na Ria, em frente à Costa Nova...

 

 
 
/ 61 / ainda representam um movimento apreciável de valores, como se vê no mercado da Quintã, próximo de Boco no canal de Vagos.

 

É ao senhor Capitão do Porto de Aveiro, Capitão-Tenente José Vicente Caldeira do Casal Ribeiro, que devemos grande parte dos dados que aqui apresentamos, sobre o movimento de barcos moliceiros na safra de 1933-1934.


O número de licenças para apanha de moliços neste ano, isto é, no que começou em 24 de Junho de 1933 até 23 de Março seguinte, foi de 1033, das quais 505 meias licenças para a apanha desde o princípio da safra até 23 de Outubro, 353 para desde 24 de Outubro a 23 de Março, e 175 licenças anuais, isto é, para a apanha de moliço até a um ano depois da data em que foram tiradas, salvo a época do defeso.


Portanto, fazendo um cálculo aproximado do número de marés ou barcadas de moliço que cada barco pode apanhar em qualquer época, cálculo que foi rectificado tanto quanto possível por informação dos próprios moliceiros, pode ver-se o movimento a que esta indústria dá origem, os braços que emprega, o custo dos barcos e respectivos aprestos, a quantidade de moliços que se comerceiam, o seu custo, e ainda, o seu valor real e valor comparado com o dos elementos nutritivos que contêm.


Parte destes quesitos que apresentamos aqui pertence a outros capítulos e por isso passaremos a tratar simplesmente do que agora nos interessa.


É facto assente que qualquer barco moliceiro colhe durante o primeiro período 100 barcadas. No segundo período, como dura quase todo na pior época do ano, em que muitos dias não trabalham porque não é possível, calculou-se que não se comete grande erro dizendo que cada barco pode colher 50 marés.


Os moliceiros, que não têm outro modo de vida, tiram sempre licenças anuais; e para esses calculamos um número nunca inferior a 180 marés por ano, visto terem muitos dias em que cada barco pode apanhar duas marés.


É crível que todos os moliceiros que se servem das licenças para a apanha de moliço no segundo período, também tenham «usado pela arte de moliceiro» no primeiro período; mas a razão de tirar duas licenças, na maioria dos casos é por não terem dinheiro para fazerem uma despesa tão elevada de uma só vez.


No quadro seguinte se vê o número total de barcadas em que podemos computar a produção de moliços da última colheita: 
/ 62 /
     

505

barcos no primeiro período a 100 marés cada um

50.500

353

barcos no segundo período a 50 marés cada um

17.650

175

barcos durante todo o ano a 180 marés cada um

31.500
    99.650


Se a este número juntarmos 15%, ou sejam, 14.947,5 marés, temos um total de 114.597,5 barcadas de moliço ria safra deste ano.
 

 
 

Pintura da proa dum barco moliceiro.

 
     

Cada barco transporta bem 3,5 toneladas; e, então, reduzindo aquele número a toneladas, teremos 347.775 toneladas, às quais juntando mais 15% dá 399.941 toneladas, ou seja, em números redondos: 400.000 toneladas.


É este o número provável das toneladas de moliço que este ano se poderiam ter arrancado da Ria.


Ora estes números estão um pouco àquem dos que foram apresentados atrás; haverá erro da nossa parte? ou da de MARQUES GOMES e FRANCISCO REGALA? Como disse, antigamente os cálculos eram feitos por estimativas; e estes foram baseados em dados colhidos na Capitania do Porto de A veiro.


Pode julgar-se que uma das causas por que estes cálculos não se aproximam mais dos atrás apresentados, será devido a não contarmos com a apanha do moliço nas praias particulares; mas tal juízo não tem razão de existir, porque não há proprietário nenhum de tais praias que tenha barcos sem licença ou exclusivamente para esse efeito. Geralmente vendem esse moliço ainda na praia; e para efeito de cálculos os novos donos estão no mesmo caso como se trabalhassem na praia pública; ou se o não vendem, quem lho apanha está igualmente nas condições dos que trabalham na dita praia; pois não tira licença
/ 63 / unicamente para um ou outro dia que vai trabalhar por conta de outrem.


No princípio da apanha, cada maré de moliço vendia-se a 15$00 e 20$00, e para o fim, até chegaram a 35$00, mas na maioria da safra foram vendidas a 25$00; igualmente sucedeu nestes dois anos últimos.


Desde 1920 a 1931 o preço por que se vendiam as barcadas ou marés oscilava ente 35$00 e 50$00.


É interessante notar-se os preços destes adubos antes e durante a Grande Guerra.


Antes da Guerra cada maré vendia-se a 1$20 a 1$50; no primeiro ano da Guerra, 2$50 a 3$00; no segundo, 5$00 a 10$00; no terceiro, 15$00 a 25$00, e no quarto, quando o preço foi mais elevado, cada maré vendia-se a 40$00, a 75$00 e 80$00!


O preço do moliço que se extraiu este último ano da Ria é computado em 2.864.937$50, sendo o preço de cada maré a 25$00, média geral.


Ora, é desta soma total que saem os impostos para o Estado e Junta Autónoma da Ria e Barra de Aveiro, bem como o preço dos arreios de trabalho; da parte restante é donde vive, numa miséria honrada, um bom número de famílias.


O Estado cobrou das licenças da apanha do moliço, o seguinte:
505

licenças para apanha no primeiro período a 41$00

20.705$00

 
 

Imposto do selo 2$50 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1.262$50

21.967$50
353

licenças para apanha no segundo período a 31$00

10.943$00

 
 

Imposto do selo 2$50 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

882$50

11.825$50
175

licenças anuais a 71$00 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

12.425$00

 
 

Imposto do selo 2$50 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

437$50

12.862$50
 

 

  46.655$50

 

Para a Junta Autónoma da Ria e Barra de Aveiro foi o seguinte:
505

licenças no primeiro período a 21$00

10.605$00

 
353

licenças no segundo período a 21$00

7.413$00

 
175

licenças anuais a 41$00

7.175$00

25.193$00
 

 

   
 

Total do custo das licenças

71.848$50

 


 Ainda baseando-nos no número de licenças podemos apresentar
/ 64 / o valor dos barcos e aprestos que dão origem a este movimento:
  Barco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1.500$00

 
  Matrícula e vistoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

100$00

 
  Uma vela grande . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

600$00

 
  Uma vela pequena (traquete) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

175$00

 
  Duas ostagas a 40$00 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

80$00

 
  Um mastro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

30$00

 
  Um mastaréu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

18$00

 
  Duas escotas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

12$00

 
  Moutões, corda e ganchos (para calcar a vela)  . . . . . . . . . . . .

11$00

 
  Duas vêrgas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

10$00

 
  Uma corda (troça) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

9$00

 
  Uma alça (de ferro) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

8$00

 
  Cinco ancinhos a 12$50 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

62$50

 
  Quatro varas a 3$00 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

12$00

 
  Uma âncora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

30$00

 
  Um cabo para a âncora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

25$00

 
  Quatro forcadas a $30 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1$20

 
  Quatro tamancas a $80 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

3$20

 
  Um pau do leme e cordas (gualdropes) . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

2$30

 
  Um manejo (ancinho) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1$40

 
 

Total

2.690$60

 
   

 

 

É crível que o número de barcos que este ano trabalhou na colheita de moliço seja igual ao número de licenças concedidas para a apanha no primeiro período mais o das licenças anuais, visto ser lógico que as licenças para a apanha no segundo período tenham sido concedidas a parte dos barcos que trabalharam no primeiro.


Em virtude disto, e acrescendo em 15% o número de barcos, será: 680+102=782, com o valor de: 2.104.049$20.

 

TOMÁS TAVARES DE SOUSA

Continua na pág. 177 ►►►

 

_________________________________

 

(1) Extraído de «Os Molíços» (Subsldios para o estudo dos fertilízantes de origem vegetal da Ria de Aveiro) Relatório Final, inédito, do Curso de Engenheiro agrónorno, por TOMAZ TAVARES DE SOUSA, Setembro de 1934.

(2) A Ria de Aveiro AUGUSTO NOBRE, JAIME AFREIXO e JOSÉ DE MACEDO Lisboa, Imprensa Nacional, 1915.

(3) −  Memórias de Aveiro MARQUES GOMES, Aveiro, 1875.

 

Página anterior

Índice

Página seguinte