ANTES de ter sido tornado
oficial o Regulamento da Ria (28 de Dezembro de 1912) elaborado pelos
senhores AUGUSTO NOBRE, JAIME AFREIXO e JOSÉ DE MACEDO, a apanha do
moliço era livre em todo o ano, excepto no mês de Julho.
Só depois dessa data é que se estabeleceu uma época para o defeso com a duração de três meses, que é desde 24 de Março
a 23 de Junho.
De então para cá, toda esta gente da Marinha o afirma, a diminuição do
pescado foi muito considerável. Neste modo de pensar há o facciosismo de
quem foi privado duma liberdade que até aí possuía.
O que deu origem à elaboração do citado Regulamento foram as constantes
reclamações da classe piscatória; e o que é facto é que os grandes
exemplares da fauna que vive na Ria, que até então tinha desaparecido,
não voltaram a aparecer depois da publicação dos artigos e seus
parágrafos no Diário do Governo. Por este lado tudo leva a crer que
deste modo se
procedesse, pois assim se evitou que mais se depauperassem as pescarIas.
Pelo lado agrícola da questão é que ninguém se interessou. A época do
defeso foi estabelecida atendendo unicamente à fauna; e tanto assim,
que os seguintes períodos extraídos do relatório
que acompanha o citado Regulamento(2) mostram bem o pensamento dos seus
autores: «a apanha das algas feita na época em que as criações entram
para a Ria e se conservam
/ 58 / mais melindrosas, cerceia e perturba-lhes os abrigos, que elas
naturalmente procuram nas praias ou parcéis, onde as correntes são mais
fracas e contribui portanto para o seu aniquilamento. Demais, entre as diferentes espécies que habitam a ria há uma, o
robalo, muito voraz, que faz enorme destroço nos novos que se lhe não
possam ocultar. E as folhas do moliço são também habitat de pequenos animais de que os peixes são
muito ávidos».
«Querendo-se conservar apenas a duração de quatro meses no defeso
desta indústria das algas
−
defeso que se não tem cumprido
−
ele deve ser
estabelecido de 1 de Março a 24 de Junho, que é o que está mais em
harmonia com as necessidades da fauna».
Já que estamos em ocasião de transcrições, permitam-se-me mais as
seguintes: «Na decadência da produção das algas tem influído com mais
ou menos intensidade, todos os elementos que vem alterando as condições
naturais da Ria, avultando entre eles o levantamento geral dos fundos e
também a exploração imoderada».
«O moliço propriamente dito, a seba, a folhada e outras plantas de
valor secundário, que constituem a flora dos sapais, requerem
naturalmente terreno quase permanentemente alagado, e hoje grande parte dos leitos que antigamente se mantinham inferiores ao nível das maiores baixa-mares, emergem já a pouco menos
de meia-maré, havendo muitos que se elevam de modo a só serem banhados
pelas preia-mares de águas vivas, e alguns pelas dos equinócios. Os alvéus,
de certa altura para cima, passam a dar outras plantas-bajunça, junco e
caniço, realizando-se assim a diminuição progressiva da área produtora de
algas».
«A exploração excessivamente intensa que se tem exercido sem dar tempo a
que as algas cresçam e se reproduzam... representa senão o aniquilamento da vegetação, que é muito potente, pelo menos o
depauperamento da produção».
Não está ao meu alcance nem me compete criticar o assunto a que se
referem os primeiros períodos; contudo, até onde me for possível exporei
a minha maneira de ver. Dos últimos, falaremos em capítulo especial,
conjugando a crítica, que se lhes pode fazer com a crítica geral feita a
este trabalho.
A atenção especial que mereceu e merece a piscicultura quase com exclusão da outra indústria que vive nestas mansas águas não
terá como causa o interesse imediato que tem o peixe na alimentação
humana?
Moliço ninguém come; a assombrosa produção destes campos é muito
interessante, curiosa mesmo, mas não se pensou que, se nesta «amena e
aprazível campina» a população é das mais intensas do país, à sua
agricultura se deve, a qual vive exclusivamente da Ria. A emigração
aqui notada em todos os
/ 59 / tempos terá como causa principal o «depauperamento de produção» de peixes ou de plantas?
Se os fundos se elevam, deixam de produzir moliços, é verdade, mas produzem outros estrumes que não menos interessam
à agricultura. Contudo, esta cada vez mais se tem estendido e intensificado à custa dos moliços e dos matos produzidos na
marinha.
Os números que adiante apresentamos nada ou pouco se aproximam do exposto. Tudo leva a crer que a apanha de
moliços tenha aumentado sempre; mas as expressões desse movimento económico dizem que estamos
a retroceder. Talvez não seja assim; as estimativas apresentadas por antigos autores podiam ter pecado por excesso, assim como agora os nossos cálculos, que julgamos mais bem cuidados, podem pecar por deficiência.
Segundo MARQUES GOMES
(3) a quantidade de moliço que se arrancava anualmente ao fundo da Ria, podia andar
por 200 mil barcadas no valor de duzentos contos. E no relatório do senhor FRANCISCO REGALA, publicado em 1889, está calculada em 505.500 toneladas a quantidade de moliços extraídos anualmente, num valor de 177 contos.
Mas hoje, graças à regulamentação desses serviços, podemos fazer cálculos mais rigorosos.
A quantidade e valor da produção dos moliços julgamos mais exacto acrescentar uma certa percentagem que atribuímos em
15% do que achamos baseando-nos nas licenças, o que supomos mais que suficiente para contarmos com a apanha do moliço que se faz a pé e com embarcações às escondidas da polícia marítima. Onde tem mais lugar
este modo de proceder, é nas valas dos campos de Salreu e Canelas, e na extremidade sul dos canais de Mira e Vagos. Em todo o mais resto da Ria são raros os registos destes casos.
E por isso, supomos que não há razão para se calcular a produção de moliços em quase o dobro do que nos dão os cálculos feitos pelas licenças para apanha e transporte, como alguém
opina.
Por outro lado, a base de cálculo que nos serviu é um pouco exagerada, porque parte das licenças que
tomamos como para servirem em barcos são para bateiras, que não chegam a
carregar metade da carga dum barco.
Os cálculos são feitos em moliço verde; e, se o que apresentamos sob reserva merecer reparos, temos a dizer que se
alguns barcos colhem duas marés por dia, quando o descarregam em determinados canais próximos, também os que colhem moliço para secar nos meses de Setembro e Outubro andam
dois e três dias para colherem uma barcada; e estes moliços
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Moliceiro na Ria, em frente à Costa Nova... |
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/ 61 / ainda representam um movimento apreciável de valores, como se vê no mercado da Quintã, próximo de Boco no canal de Vagos.
É ao senhor Capitão do Porto de Aveiro, Capitão-Tenente José Vicente Caldeira do Casal Ribeiro, que devemos grande parte dos dados que aqui apresentamos, sobre o movimento de barcos moliceiros na safra de 1933-1934.
O número de licenças para apanha de moliços neste ano, isto é, no que começou em 24 de
Junho de 1933 até 23 de Março seguinte, foi de 1033, das quais 505 meias licenças para a apanha desde
o princípio da safra até 23 de Outubro, 353 para desde 24 de Outubro a 23 de Março, e 175 licenças anuais, isto é, para
a apanha de moliço até a um ano depois da data em que foram tiradas, salvo a época do defeso.
Portanto, fazendo um cálculo aproximado do número de marés ou barcadas de moliço que cada barco pode apanhar em qualquer época, cálculo que foi rectificado tanto quanto possível por
informação dos próprios moliceiros, pode ver-se o movimento a que esta indústria dá origem, os braços que emprega, o custo dos barcos e respectivos aprestos, a quantidade de moliços que se comerceiam, o seu custo, e ainda, o seu valor real e valor comparado com o dos elementos nutritivos que contêm.
Parte destes quesitos que apresentamos aqui pertence a outros capítulos e por isso passaremos a tratar simplesmente do que
agora nos interessa.
É facto assente que qualquer barco moliceiro colhe durante o primeiro período 100 barcadas. No segundo período, como dura quase todo na pior época do ano, em que muitos dias não trabalham porque não é possível, calculou-se que não se comete grande
erro dizendo que cada barco pode colher 50 marés.
Os moliceiros, que não têm outro modo de vida, tiram sempre licenças anuais; e para
esses calculamos um número nunca inferior a 180 marés por ano, visto terem muitos dias em que
cada barco pode apanhar duas marés.
É crível que todos os moliceiros que se servem das licenças para a apanha de moliço no segundo período, também tenham «usado pela arte de moliceiro» no primeiro período; mas a razão de tirar duas licenças, na maioria dos casos
é por não terem dinheiro para fazerem uma despesa tão elevada de uma só vez.
No quadro seguinte se vê o número total de barcadas em que podemos computar a produção de moliços da última colheita:
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505 |
barcos no primeiro período a 100
marés cada um |
50.500 |
353 |
barcos no segundo período a
50 marés cada um |
17.650 |
175 |
barcos durante todo o ano a 180
marés cada um |
31.500 |
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99.650 |
Se a este número juntarmos 15%, ou sejam, 14.947,5 marés, temos um total
de 114.597,5 barcadas de moliço ria safra deste ano.
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Pintura da proa dum barco moliceiro. |
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Cada barco transporta bem 3,5 toneladas; e, então, reduzindo aquele número a toneladas, teremos 347.775 toneladas, às quais
juntando mais 15% dá 399.941 toneladas, ou seja, em números redondos: 400.000 toneladas.
É este o número provável das toneladas de moliço que este ano se
poderiam ter arrancado da Ria.
Ora estes números estão um pouco àquem dos que foram apresentados atrás;
haverá erro da nossa parte? ou da de MARQUES GOMES e FRANCISCO REGALA? Como disse, antigamente os cálculos eram feitos por
estimativas; e estes foram baseados em dados colhidos na Capitania do Porto
de A veiro.
Pode julgar-se que uma das causas por que estes cálculos não se
aproximam mais dos atrás apresentados, será devido a não contarmos com a
apanha do moliço nas praias particulares; mas tal juízo não tem razão de
existir, porque não há proprietário nenhum de tais praias que tenha
barcos sem licença ou exclusivamente para esse efeito. Geralmente vendem
esse moliço ainda na praia; e para efeito de cálculos os novos donos
estão no mesmo caso como se trabalhassem na praia pública; ou se o não
vendem, quem lho apanha está igualmente nas condições dos que trabalham
na dita praia; pois não tira licença
/ 63 / unicamente para um ou outro dia que vai trabalhar por conta de outrem.
No princípio da apanha, cada maré de moliço vendia-se a 15$00 e 20$00,
e para o fim, até chegaram a 35$00, mas na maioria da safra foram
vendidas a 25$00; igualmente sucedeu nestes dois anos últimos.
Desde 1920 a 1931 o preço por que se vendiam as barcadas ou marés oscilava ente 35$00 e 50$00.
É interessante notar-se os preços destes adubos antes e durante a Grande Guerra.
Antes da Guerra cada maré vendia-se a 1$20 a 1$50; no primeiro ano da Guerra, 2$50 a 3$00; no segundo, 5$00 a 10$00; no terceiro, 15$00 a 25$00, e no quarto, quando o preço foi
mais elevado, cada maré vendia-se a 40$00, a 75$00 e 80$00!
O preço do moliço que se extraiu este último ano da Ria é computado em
2.864.937$50, sendo o preço de cada maré a 25$00, média geral.
Ora, é desta soma total que saem os impostos para o Estado e Junta
Autónoma da Ria e Barra de Aveiro, bem como o preço dos arreios de
trabalho; da parte restante é donde vive, numa miséria honrada, um bom
número de famílias.
O Estado cobrou das licenças da apanha do moliço, o seguinte:
505 |
licenças para apanha no primeiro
período a 41$00 |
20.705$00 |
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Imposto
do selo 2$50 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . |
1.262$50 |
21.967$50 |
353 |
licenças para apanha no segundo
período a 31$00 |
10.943$00 |
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Imposto
do selo 2$50 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . |
882$50 |
11.825$50 |
175 |
licenças
anuais a 71$00 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . |
12.425$00 |
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Imposto
do selo 2$50 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. |
437$50 |
12.862$50 |
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46.655$50 |
Para a Junta Autónoma da Ria e Barra de Aveiro foi
o seguinte:
505 |
licenças no primeiro período a
21$00 |
10.605$00 |
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353 |
licenças no segundo período a
21$00 |
7.413$00 |
|
175 |
licenças
anuais a 41$00 |
7.175$00 |
25.193$00 |
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Total do
custo das licenças |
71.848$50 |
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Ainda baseando-nos no número de licenças podemos apresentar
/ 64 / o valor dos barcos e aprestos que dão origem a
este movimento:
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Barco . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . |
1.500$00 |
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Matrícula
e vistoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . |
100$00 |
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Uma vela
grande . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . |
600$00 |
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Uma vela pequena (traquete)
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . |
175$00 |
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Duas ostagas
a 40$00 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . |
80$00 |
|
|
Um mastro
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . |
30$00 |
|
|
Um
mastaréu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . |
18$00 |
|
|
Duas
escotas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . |
12$00 |
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Moutões, corda e ganchos (para calcar a vela)
. . . . . . . . . . . . |
11$00 |
|
|
Duas vêrgas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . |
10$00 |
|
|
Uma corda
(troça) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . |
9$00 |
|
|
Uma alça
(de ferro) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . |
8$00 |
|
|
Cinco
ancinhos a 12$50 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . |
62$50 |
|
|
Quatro
varas a 3$00 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . |
12$00 |
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|
Uma
âncora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . |
30$00 |
|
|
Um cabo
para a âncora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . |
25$00 |
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Quatro
forcadas a $30 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . |
1$20 |
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Quatro
tamancas a $80 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . |
3$20 |
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Um pau do leme e cordas (gualdropes)
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . |
2$30 |
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Um manejo
(ancinho) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . |
1$40 |
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Total |
2.690$60 |
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É crível que o número de barcos que
este ano trabalhou na colheita de moliço seja igual ao número de licenças concedidas para a apanha no primeiro período mais o das licenças anuais, visto ser lógico que as licenças para a apanha no segundo período tenham sido concedidas a parte dos barcos que trabalharam
no primeiro.
Em virtude disto, e acrescendo em 15% o número de barcos, será: 680+102=782, com
o valor de: 2.104.049$20.
TOMÁS TAVARES DE SOUSA
Continua na
pág. 177
−
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