ESTE
trabalho que vamos aqui transcrever foi por nós enviado, sob o título de
3.ª Comunicação, ao Instituto Etnológico da Beira em 28 de Novembro de
1921.
O documento de que apresento cópia, e cuja substância sintetizei sob o
título de -- Relação das circunstâncias em que se realizou a organização
dos novos Tombos dos casais da Coroa no Ducado de Aveiro no século XVII
--, consta de meia folha de papel 31x22, completamente cheia duma letra
bem talhada, dum e outro lado, e do tipo da de quem aprendeu a escrever
na segunda metade do século XVII. Está relativamente claro no meio, mas
as margens estão bastante deterioradas, o que torna a letra nesses
pontos, por vezes, ilegível.
Não tem data nem assinatura; mas do assunto que trata e da caligrafia,
resulta a convicção de que deve ter sido escrito na primeira década do
século XVIII, em cujo tempo se acabaram os novos Tombos da Casa de
Aveiro.
Jerónimo Gonçalves Ribeiro figura muito nos Tombos desde 1694, servindo
por vezes de testemunha um seu filho, estudante, que pode bem ser o que
se diz autor desta Relação.
Relação das circunstâncias em que se realizou a organização dos novos
Tombos dos Casais da Coroa no Ducado de Aveiro no século XVII.
«Entrandosse na facçãm dos tombos dos bens que (a co)rôa R(eal no du)cado
d'Aveyro tem em as Villas de Aveiro Cegadãens Re(cardães) Brunhido
conçelho de Casal de Alvaro e em seus distritos e procurandosse os
papeis do cartorio delle e dos cartorios dos... em elles se não achou
papel algum iuridico para o intento do tombo, e somente se acharam rois
de cobrança e avizos por cartas dos Almoxarifes, sem serem autenticos,
nem
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ainda clareza para os tombos, e das fazendas (se) valeram dos forais do
serenissimo Senhor Rei D. Manuel que Deus tem em gloria dados às mesmas
villas. Fesse a diligencia na Torre do To(mbo) e nella se nam
descobriram as clarezas das fazendas somente em ella se acha hum tombo
antiquíssinio e Sucinto feito a requerimento do Senhor Infante D. Pedro
em cujas terras sucedeu a dita casa principiada no Ex.mo
Duque de Coimbra D. Jorge pela doação que o dito Senhor lhe fez no anno
de 1502
(1)
e até ao presente se não acabaram os tombos da dita Casa com a perfeiçam
que estão estes novos. E como das dítas 3 vilas foram digo eram
Donatarios os Condes de Sortelha, e na dita doação se exprime, que lhe
dá as ditas 3 villas na falta de sucessão dos ditos
donatarios No tempo do Ex.mo Duque D. Alvaro
(2)
extincta a Successam dos ditos Condes por fallecimento
de D. Joam da Silveira
(3)
do qual não ficaram filhos, e sendo
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viva ainda sua mãe a Condessa de Sortelha o dito Duque pela sua doaçam
se meteu de posse das ditas 3 vilas havendo pleito sobre a posse
julgaram todos os lentes da Universidade de Salamanca e da Universidade
de Coimbra que a posse estava bem tomada, e ella se conservou e em odeo
a dita Condeça queimando o cartorio das 3 villas, tirou o Ex.mo
Duque carta de excommunhãm e saio a dita Codessa (?) confessou a culpa,
e foi condenada em uns tantos arrates de cera para a confraria do
Santissimo Sacramento.
Vendosse o Ex.mo Duque sem cartorio dos prasos,
Titolos nem clareza alguma para cobrança das rendas mandou chamar em
segredo a um Franc.º Fern. de Carvalho
(4)
mordomo mór da dita condeça, e seu almoxarife, que ainda tinha em seu
poder alguns livros de cobrança os entregou ao dito Duque em segredo e
em remeneração do beneficio lhe fez merce o dito Duque
de um grandioso prazo aonde chamam a quinta da Borralha
(5)
com as suas azenhas de moendas que ainda hoje pessuem seos herdeiros com
um frango de foro sómente para se entender que é foreira a Coroa e Casa
sua donataria. No anno de 1655
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mandou o Ex.mo Duque D. Raymundo fazer tombo em as
ditas villas pello seu ouvidor o Dr. Gaspar Mendes Grande genrro do
dezembargador Domingos Antunes Portugal que a principiou e pella
abzencia do dito Duque o nam acabou e nelle trabalhou desde 654 ate 655
que hoje se não podia ler nem entender por ser a letra muito ruim e ia
consumida e apagada com o tempo por razam de não ser a tinta (boa) da
direcção deste se fizeram os novos Tombos em que tiveram grandes
trabalhos (para) descobrirem todas as clarezas necessarias das fazendas
e terras pertencentes á coroa e casa sua donataria e muitos
andarem....... (disse Jor)ge da França Administrador da mesma caza que
nos contadores que (tem maç)os de papeis na mesma (talvez) se achasse
toda a clareza para o intento dos to(mbos) frustrada a diligencia porque
nenhum papel se achou autentico e judicial no ano de 1686 mandou o dito
administrador a meu Pay Hyeronimo (Gonçalves) Rjbeiro que servio a dita
caza perto de trinta annos nas ocupaçoens de official E Executor das
diuidas della e Escrivam dos feitos da fazenda que ali habitasse o
cartorio da fazenda e revendo achou que era escuzada pois constava de
roiz, memorias avisos, cartas missivas e outros papeis que não estavam
autenticos nem se lhes podia dar fee e credito isto por falta de se nam
mandarem tirar duas sentenças dos processos huma para o Archivo e outra
para a Execução para em todo tempo se lhe dar credito pois a caza sempre
em demandas e pedindo o licenciado Manuel Lopes todos os papeis de
nenhum pode valersse do tombo que havia principiado o Doutor Gaspar
Mendes Grande instou que se fizesse a diligencia na Torre do Tombo a ver
se se achavam as clarezas neccessarjas das fazendas para se fazer o
tombo da villa de Aveiro nam foi possivel acharsse
clareza alguma porque sendo Donatario da dita Villa D. Sancho de Noronha
(6)
Conde de farão e de odeMira antes da casa de Aveiro deste se não achou
clareza alguma e prezumio o dito Procurador que faria o mesmo que a dita
Condeça.
(Ven)do o dito procurador estes descaminhos e que nenhum
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[Vol. II -- N.º 5 -- 1936]
Tombo se achava escreveo ao Dezembargador Antonio de Freitas Branco
administrador que foi da mesma casa pedindo-lhe que se mandassem por
estes novos tombos em guarda pela muita experiencia que tinha de tombos
e que se segurasse sempre liuros na Torre do Tombo por que podia vir
tempo em que os Donatarios tivessem suas demandas sobre quem havia de
suceder e quei(massem) os cartorios como a experiencia tinha mostrado e
que visto serem da Coroa Originaria Senhora delles, se lhes deviam por
em boa arrecadação para faltando a
sucessam nos donatarios os dar a quem bem pertenção(?).
Todos estes tombos novos adjuntos os Procuradores da fazenda e o
Escrivam e Contador se determinou pello Dezembargador Antonio de Frejtas
(que d)os processos originaes se extrahissem dous Liuros de tombos de
per(gaminhos) em letra limpa e bem cortada de tinta bem preta e entender
e encadernados hum para a Casa da fazenda e outro para a torre do Tombo
e que os processos originaes se entregassem e se pozessem fechados em
caixoens nos celeiros das rendas a que pertencessem e que os almoxarifes
tivessem as chaves delles e que os Escrivaens dos Almoxarifados
passassem as certidoens necessarias aos Rendeiros dos foros reçoens e
mais direitos para a boa cobrança e que esses fossem fejtos com toda (a
segurança e) chapeados de ferro e que se nam tirassem dos Celeiros.
CONDE DA BORRALHA
Continua na pág. 231
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(1) −
Esta doação, que deve estar registada na chancelaria de D. Manuel,
encontra-se também inserta numa carta de confirmação de D. João III.
(chancelaria do mesmo rei, liv. 9, fl. 55).
(2) −
D. Álvaro era primo de D. Jorge, 2.º Duque de Aveiro, que só teve uma
filha, D. Juliana, por herdeira, e pretendendo ele como varão suceder na
casa, resolveu Filipe I, para matar a questão, casá-lo com a prima, o
que se fez em 1588. (Dicionário Portugal) 1º vol., pág. 869).
Tiveram 16 filhos.
(3) −
O filho mais velho do Conde de Sortelha foi D. Álvaro, segundo consta de
uma escritura de emprasamento, feita por D. Álvaro a Simão Fernandes de
Carvalho, a 20 de Julho de 1581, de vizinhos casais por serviços feitos,
entre os quais este: o muito que trabalhou na organização de um tombo no
tempo do Conde D. Diogo. (doc. do A. C. B.). Este D. João seria seu
irmão, ou seria engano de quem escreveu a relação? Aqui deixo a dúvida.
O facto da morte de qualquer deles, que fosse o último herdeiro, deve
ter-se dado por 1596, em virtude de ter essa data um despacho lançado
numa petição de Simão Fernandes de Carvalho ao Duque de Aveiro,
reclamando contra violências que lhe haviam sido feitas, quando os
delegados ou procuradores do Duque tomaram posse das Vilas de Recardães
e Segadães. Já na minha segunda comunicação, quase no fim da 1.ª parte
dela, fiz referência a este caso, baseado no documento seguinte:
«Encelente S.or
diz Simão Fes de carvalho m.or na
qinta da boralha termo da bila de recardães que pelos m.tos
serviços que ele fez por tempo de 40 anos ao Conde de Sortelha dom
dioguo da Silveira q deus tem cuio criado fui e ha seus f.os
lhe fiserão merce do Rendim.to de quatro casaes S. hü
q esta no termo de Segadães no luguar desta e os tres no termo de
Recardães de q tem provisois. os quais casais elle soplicante pesue por
si e antepasados a mais de Ix i lxx anos sem cõtradição por q sam
depatrimonio e partiveis antre os fios, e Erdos
do dito Conde pelo q em sua vida antes në depois nüca andarão em
aRendamt.° në se achara q Rendr.º algü os Recolhese në q o Rendimento
deles fose ao Celeiro do morgado porq nuno martinz da Silveira que foy
abô do dito Conde comprou estes casaes por seu dinheiro de q lhe fiserão
cartas de benda q seus erdeiros tem em seu poder epesoindo ele
soplicante asi os ditos casães bierão ora a dita bila de Recardães o
oubidor do Infantado e duquado de b. Encelencia e F.co
baz da Costa procurador a tomar pose dela e de sua jurisdição por b.
encelencia o qual F.co bãz sem nenhua orpem de justiça
e sem ele soplicante ser oubido forcosamente o tem desaposado e tirado
da pose dos ditos ceus casães mandando por penas de dinheiro e prisam
aos cobradores q não acudão com os foros e Reçois q sam obrigados apagar
como costa da sertidão q apresenta e tudo por compraser ajnemigos dele
soplicante de man.ª q o tem desaposado desua fazenda e antiga pose. p.
ele soplicante a b. Encelencia q abendo Respeito aos ditos casães não
cerem do morgado e serem de patrimonio e o nüca andarem em aRenda.to
në q deles faça meção alguma o q todo ce justificara. e o lhe cerem
dados em paguo de seu serviço E o ser da criação da cassa degois e
basalo novo de b. Encelencia e pessoa de colidade q tem molher e fos
de manter mto velho mande ao dito Fco
bãz q enquanto se b. Encelencia não emforma daberdade o deixe Recolher
os ditos casães como ate agora Recolheu e o não tire de sua pose E q
cora com suas cousas ordinariamente e R. m. − Despacho − Apresente o
supt.e os titulos que tiuer destes casaes para se lhe
fazer justiça en azeitão a 2 de Setº de 1596. Antonio Vasconcelos
Cerqueira (doc. do A. C. B.)
(4) −
Aliás Simão Fernandes de Carvalho.
(5) −
Do livro 3.º da Renda de Recardães, existente na Administração do
Concelho de Águeda, (acidentalmente em minha casa), consta, a folhas
396, existir na Borralha «um casal de novidades de que no Tombo que fez
o Dr. Gaspar Mendes Grande, foy cabeça Constantino da Silva de Carvalho,
(o qual era filho de Simão Fernandes de Carvalho) da Borralha e oje
(1694) o sam suas filhas Donna Maria Pinta da Silva e Illena da Silva
Pinto Donzellas mayores de vinte e cinco annos moradoras na sua quinta
da Borralha etc.» as quais, a folhas 399, reconhecem a Coroa Real e Casa
d'Aveiro sua donatária por direito Senhorio da dita quinta e confessam
que dela se paga de foro todos os anos setenta reis e um frango sem mais
outro foro nem ração. Foi este o benefício com que o Duque de Aveiro
premiou a inconfidência de Simão Fernandes. Não lhe deu o prazo da
quinta, como pretende o autor da Relação, pois que já havia muito lhe
pertencia antes desse facto se dar, sendo bem antiga na posse da família
de sua mulher, de quem fora herdeiro, como pode ver-se em vários
documentos que envolve a minha primeira Comunicação sobre Lourenço Anes
de Morais; não lhe deu o prazo, mas apenas lho terá talvez confirmado
diminuindo o foro e suprimindo a ração, o que, valha a verdade, não era
pequena mercê.
(6) −
Este D. Sancho era fiIho de D. Afonso 1º Conde de Faro (filho do 2.º
Duque de Bragança) e D. Maria de Noronha, segunda Condessa de Odemira,
f.ª do 1º Conde de Odemira D. Sancho de Noronha, neta de D. Afonso Conde
de Gijon e Noronha e bisneta de Henrique II de Castela.
D. Afonso, o 1º Conde de Faro, foi um dos que foi perseguido por D. João
II. Fugiu para Espanha e morreu em Sevilha (Dicionário Portugal,
voI. 3.º pág. 301). Sentenciado a 1 de Junho de 1845, (Arch. Hist.
Portuguez, vol I 3º pág. 393) foram confiscados todos os bens de sua
casa, mas em 3 de Abril de 1496 foi seu filho mais velho, D. Sancho,
reabilitado por D. Manuel (ibidem, voI. 2.º pág. 209) em Setúbal. Por
falta deste (Corografia, do P.e CARVALHO, tomo 2.º pág. 136)
entrou no Senhorio da Vila de Aveiro D. Jorge de Lencastre, tronco da
Casa de Aveiro, filho bastardo de D. João II em quem este Rei sonhou
reunir a casa que fora de seu avô o Infante D. Pedro, cuja trágica morte
fora origem dos ódios que lhe agitaram a vida.
NOTA DO AUTOR −
Conservámos todas as faltas de concordâncias, de pontuação, etc. e
pusemos entre parêntesis as letras indispensáveis para a compreensão do
texto, empregando reticências onde havia palavras cuja significação não
pusdemos decifrar.
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