Conde da Borralha, Águeda. Subsídios para a sua história, Vol. 1, pp. 171-181.

ÁGUEDA

SUBSÍDIOS PARA A SUA HISTÓRIA

III

◄◄◄ Continuação da página 55   (vide NOTA)

Para saber da preocupação da pureza de sangue e da elevação do espírito dos habitantes de Águeda em relação aos das terras que a rodeavam, outra forma não há além da que nos permite tomar conhecimento, através da documentação, das funções, da posição e, quanto possível, do procedimento dum número bastante desses habitantes capaz de nos elucidar. sobre o que haja de característico nas diferentes malhas e gradações que formem a rede e a escala da sociedade que por ali passou.


Desejaríamos começar por fazer incidir este trabalho sobre o século XV, mas os poucos documentos desse século de que para o efeito podemos dispor estão longe de satisfazer à complexidade do assunto, e teremos, por isso, de nos socorrer dos séculos subsequentes à procura daqueles reflexos retrospectivos que nos permitam, às vezes, ver as coisas que a falta das luzes directas deixa na escuridão. Não o faremos, porém, sem proporcionar um pequeno golpe de vista indicativo de que da violência, da dureza, acompanhadas dum espírito de natural conformação com as necessidades da época, se encontra exemplo, em gente de Águeda, que reveja o senso do nosso antigo carácter de realizadores.


Em meio duma grande colecção de documentos sobre Marrocos, publicados pela Academia das Ciências, sob a direcção de PEDRO DE AZEVEDO, que abrangem de 1415 a 1450, figura (págs. 148 a 149, 1.º voI.) aquele que passamos a transcrever:


«Dom Afomso etc. saude. Sabede que Joham Uaaz morador no burgo dAgueda nos enujou dizer que podia auer iiij ou b anos que a ell culparom na morte de Fernam Ualente e Joham Valente seu filho moradores no dito logo por as quaees mortes
/ 172 / el fora preso e leuado aa cidade de Coimbra E que jazendo asi preso no castello da dita cidade fujira deI pella qual razom se el amorara com temor que auja das nossas Justiças o prendenrem por ello E que andando asi amoorado sse fora na armada que foi feita sobre Tanger em companha de Fernam Pereira com o qual esteuera no cerco e pallanque ataa o rrecolhimento do Ifante Dom Anrrique meu tio E que depois da bijnda do dito cerco EI Rey meu Senhor e padre cuja alma deus aia lhe perdoara a sua Justiça a que per razom da morte do dito Fernam Valente e Joham Valente seu filho era thudo com tanto que fosse ujuer e morar ao nosso couto da Guarda dous anos segundo mais conpridamente era conteudo na carta do liuramento que perante nós presentou ao qual degredo se el fora segundo lhe fora mandado e o manteuera como ainda mantijnha auja mais de húu ano E que depois lhe fora dito que nós com os do nosso conselho acordaram os que todollos que esteueram no dito cerco e palanque per rrazõ de seus omjzios eram liures com algúus degredos que lhe fosse quite e rreleuado da meatade da pena ou degredo que lhe asi foram postos E que per bem da determjnaçom do dito conselho nos pidia por merçee pois Ja seruira húum ano e mais lhe rreleuassemos outro ano E nós uendo oo que pidia querendo lhe fazer graça e merçee vista a determinaçom do conselho sobresto feita se asi he que el serujo Ja o dito ano temos por bem e releuamos lhe o outro que asi auja de ujuer na dita cidade da Garda. E se ajnda nom morou huu ano que o acabe porem uos mandamos que o nom prendaaes etc. em forma. Dada em Lisboa xxbj dias de março per Luis Martjnz e FernamdAlvarez. Rodrigo Afonso a fez Era R.tª anos.


Este caso, embora isolado, tem certo valor como quadro social, porque corresponde a um detalhe da vida duma época cujos traços gerais, sendo já hoje suficientemente conhecidos, lhe emprestam um poder de generalização que esse detalhe necessariamente pressupõe.


Embora destes perdões, por crimes com comutações de penas por serviços prestados, haja na colecção citada bastantes exemplos espalhados por todo o país, não aparece lá outro em terra alguma da região a que Águeda pertence, sendo o caso similar mais próximo em Esgueira; já são mais vulgares os casos de perdões por entrar na batalha de Alfarrobeira, por serem, é claro, mais fáceis de encontrar na época exemplos de actos que exprimam vassalagem ou rebeldia do que vontade e cálculo individuais.


Que haviam de fazer os homens de Águeda, de Aveiro, de Ílhavo, de Carvalhais e Ferreiros (Anadia), de Coimbra, da Lousã e outras terras senão estar ao lado do Infante D. Pedro,
/ 173 / no tempo em que a vida e a fortuna material das pessoas nada eram sem a honra e a lealdade ao serviço do seu Senhor?


O próprio Rei o parece achar natural, perdoando com facilidade aos pequenos, pelo menos, apesar da gravidade da traição que, segundo o direito da época, lhe havia sido feita.


Na Chancelaria de D. Afonso V encontram-se dois exempIos em Águeda e até um na Borralha, onde (livro lI, fI. 79) se lê:


«outra tal de Alvaro Gonçalves morador dAgueda em que o damos por Monteiro e guardador da mata de Paradela, em logo e vaga de Joham A.º que ora o aposentarom por hedade de satenta annos posto que fosse na batalha cõ o efante Dom Pedro
26 maio 451 juntamente acima outra... a gonçalo lourenço morador na Borralha termo de Recardães na mata paaos Vaga de afonso Vasques Callafate morador de Aveiro que se finou, posto que fosse na Batalha. (26 de Maio 451).»


Outra: «Pedr'alvares morador em Agueda termo de Aveiro guardador da mata de praãs posto que antes fosse Monteiro e fosse na batalha».


É só no século XVI que o Tombo do Hospital de Águeda nos começa a deixar surpreender a qualidade e a importância da população do burgo duma forma flagrante e decisiva a partir de 1533; porque este Tombo é, o que não sucede com o Tombo da igreja, uma pública forma do anterior.


Embora ambos estes Tombos sejam feitos no século XVII, este último tem, em relação ao primeiro, apesar da sua maior perfeição, método e clareza em qualquer outro ponto, a falta de nele se não declararem as profissões dos moradores.


É, pois, só da parte abrangida pelos foreiros do Hospital que podemos tratar.


Traçando uma linha que partindo do Botaréu passe pelo lado Nascente da farmácia Ala e atravessando a Rua de Cima (34 varas além da sua saída da Praça) se dirija para o Adro até ao calvário, e, voltando aí para Poente, contorne o caminho que vai cruzar com a Rua de S. Bento e esta última rua até chegar de novo ao rio, ter-se-á, com ligeira excepção, circunscrito o espaço de Águeda habitado de que era senhorio directo o Hospital de Águeda.


Neste espaço havia 42 casas, sendo destas 17 térreas e 25 sobradadas, das quais eram enfiteutas, respectivamente, Pêro Anes de Arrancada com 1 casa; Leonor Martins com 1; Brites Gonçalves, viúva, com 1; Gonçalo Afonso, alfaiate, com 2; Diogo Gonçalves com 1; Fernão de Pinho com 3; Alvaro Rodrigues, tabelião, com 1; Jorge Pires, ferreiro, com 3; João Fernandes, sapateiro, com 3; Alvaro Fernandes, sapateiro, com 1; Diogo Martins, ferreiro, com 2; Gonçalo Martins, ferreiro, com 2; Martim Marques com 1; João Fernandes com 1; Leonel
/ 174 / Fernandes, sapateiro, com 1; Diogo de Paiva com 2; João Viegas com 2; Pedro Anes, alfaiate, com 2; Gomes Martins com 1; Catarina Anes, viúva de Lopo Afonso, com 2; Fernão Anes, mercador, com 2; João Fernandes Romão com 1; Martim Fernandes, ferreiro, com 1; donos ignorados com 2.


Vê-se daqui que, não só perto de cinquenta por cento dos chefes de família eram mesteirais, mercadores e funcionários públicos, mas que também ali eram senhorios úteis de quase metade das casas.


Não havia fidalgos em Águeda, mas do burguês nobilitado são exemplo Fernão de Pinho, João Viegas e, possivelmente, Diogo de Paiva.


Uma pequena indiscrição do Tombo deixa-nos entrever a origem da família deste Fernão de Pinho, contando que certa alcaçaria e pelame, que ficava no caminho do Vale, havia sido de seus antecessores. Ora, ao tempo, havia duas alcaçarias e pelames que funcionavam e pertenciam a dois sapateiros João e Leonel Fernandes, moradores na Rua da Ponte; em virtude do que se pode presumir, com certa segurança, qual seria a profissão dos antepassados do mesmo Fernão de Pinho.


Com João Viegas e Diogo de Paiva não aconteceria coisa parecida?


De Fernão de Pinho e João Viegas podemos afirmar que foram troncos de várias famílias nobres e ilustres que se espalharam principalmente pelo Norte do país; quanto à descendência de Diogo de Paiva, foi mais circunscrita e menos conhecida.


Entre a grande massa dos jornaleiros e trabalhadores agrícolas, dadas as dificuldades com que lutavam contra a exploração senhorial, e a dos mesteirais, tratantes, e funcionários públicos, dada a maior independência e corrente abuso para melhor angariar meios de fortuna, não havia termo de comparação para se ascender a uma posição social superior àquela em que se nascia. O mesteiral estava indubitavelmente em melhores condições para vencer na vida.


Outro caso também digno de análise nos revela o Tombo do Hospital, que, apesar de parecer insignificante, nos dá com uma certa nitidez a diferença de pensar entre o século XV e os séculos posteriores.


Alguns dos descendentes, considerados nobres no século XVII, dos ferreiros Diogo Martins e Gonçalo Martins (moradores na Rua da Ponte, nos princípios do século XVI), não lhes convindo que se soubesse que aqueles de quem provinham haviam exercido profissão mecânica, procuram flagrantemente, ora apagar, ora emendar para Pinheiro, a palavra indicativa da mesma profissão em todas as folhas em que ela aparece. Só pela fotogravura se poderia aqui dar uma impressão com cuja eloquência nunca uma descrição por palavras, por minuciosa que fosse, conseguiria competir.

 

/ 175 / Mas seriam estes Martins realmente Pinheiros decaídos de antiga nobreza, ou tomariam o apelido por terem vindo alguns de seus avós, como diz a habilitação de Jerónimo Pinto, que abaixo citaremos, do lugar do Pinheiro junto de Angeja?


Já no tempo de D. Dinis, segundo confessa o próprio Rei, se vê que havia muito sangue de fidalgo na classe dos mesteirais (A. SAMPAIO
Estudos Históricos, voI. I, pág. 243).


Não há elementos de prova que nos permitam inclinarmo-nos para este ou para aquele lado, e nem o problema, para o caso, interessa sob esse ponto de vista.


O que é fora de dúvida é que os desta família sempre foram cristãos velhos e mostraram tendência para conservar a pureza do seu sangue sem a mistura do de preto, mouro ou judeu, como aliás acontecia também com as outras famílias de Águeda, do que dão sobeja prova nada menos de 21 habilitações para o Santo Ofício, do último quartel do século XVI ao terceiro do século XVIII, que tivemos ocasião de consultar e das quais seguidamente mencionamos os nomes dos habilitandos e respectivos números de masso e diligência.


Seguiremos na designação dos processos uma ordem crescente da sua numeração, indicando assim também a sua ordem cronológica, devendo porém advertir que nem sempre uma corresponde, com exactidão, à outra.


Eram eles:

 

Jerónimo Pinto, meirinho do S. O.  . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Sebastião de Macedo Pinheiro, familiar . . . . . . . . . . . . . .
Miguel da Silva Chamarro, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Miguel Pinto de Macedo, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Cristovam Pinto de Almeida e Macedo, familiar . . . . . . . . .
Frei Jorge Pinheiro, deputado do S. O. . . . . . . . . . . . . . . .
Frei Tomé de Macedo, inquisidor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Antonio Pinto Boto, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Miguel Henriques de Castro, familiar . . . . . . . . . . . . . . . .
Pedro Mendes, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Francisco de Figueiredo de Carvalho, familiar . . . . . . . . . 
Antonio de Almeida, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Manuel Nunes de Almeida, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Manuel Pinheiro, pintor, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
José Pinto de Macedo, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
João Pinto de Macedo, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Manuel Pinheiro, ourives, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Manuel Gomes, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1-5

2-44

3-50

3-52

3-53

3-89

6-89

7-303

9-157

11-271

16-470

22-640

37-818

43-948

48-767

48-953

97-1805

105-1914

 


E mais os seguintes, de que nos faltam os números do masso e diligência:


D. Leonardo de Santo Agostinho, qualificador do S. O. (carta de 19 de Maio de 1644).

/ 176 /

Manuel Jorge da Costa, familiar (carta de 14 de Janeiro de 1679).

Manuel Roiz Ferrão, familiar (carta de 30 de Dezembro de 1714).


E há nestas listas de tudo, desde o mais humilde ao mais alto, desde o serralheiro ao Bispo; e, se é claro que isso também convinha à Inquisição que assim fosse, não deixa por isso o facto de significar bastante para as possibilidades e tendências da população local.


De todos estes processos só em dois se levantaram dificuldades de vulto, e, ainda assim, as pessoas das famílias que a essas dificuldades deram origem não eram de Águeda.


Em um deles levantaram-se dúvidas sobre a ascendência de Crisóstomo de Paiva, de Mogofores, avô materno de Eulália da Silva, mulher do familiar Miguel Pinto de Macedo, a que procuraram dar todo o relevo, em 18 de Abril de 1674, António Alvares da Cruz, prior de S. Lourenço do Bairro, e Manuel de Oliveira Barreto, os quais, por uma carta do mesmo Miguel Pinto de Macedo, de 2 de Maio do mesmo ano, se fica sabendo serem declarados inimigos deste; o primeiro, por certa protecção dispensada a Filipe de Castilho, almoxarife do Estado de Bragança; o segundo, por causa duma demanda que trazia com António Velez, primo do signatário da referida carta.


Por fim, chegou-se à conclusão de que as testemunhas falavam «de ouvido», isto é, por tradição e não por conhecimento próprio, dizendo que o bisavô ou terceiro avô de Crisóstomo trouxera da Índia uma mulher da qual ele descendia; e aquela família continuou, como sempre fora, a ser considerada de limpo sangue e de velha cristandade.


Em o outro processo, sobre o qual também se levantou dúvida, tratava-se de um Diogo Dias, de Barrô, que vinha a ser bisavô da mulher do familiar Manuel Jorge da Costa que se chamava Mónica da Cunha. A este respeito não resistimos à tentação de transcrever na íntegra a informação do prior de Avelans, Boaventura Carvão, que, além de interessante, revela um correcto escritor, e é por isso um pedaço de bom português daquele tempo.


Calculo tratar-se do mesmo a quem o padre CARVALHO (Corografia, tomo II, pág. 122) denomina Ventura Cravão e pretende ter escrito quaisquer memórias sobre Aveiro.

Eis a informação:


«Muito Ilustres Senhores Inquisidores

A causa de haver alguma tardança nesta deligencia, foy porque quando chegou esta comissão de V. S.as estava eu na cidade do Porto, a onde fui buscar um dourador, para me dourar / 177 /  [Vol. I − N.º 3 −1935]   o retabulo da capela mor desta Igreja que mandei fazer de novo e logo que me foi entregue, trez dias depois da minha chegada, a puz em execução, indo ao lugar de Agueda, que he termo da villa de Aveiro. E posto nele conhecia muitas pessoas antigas que bem podiam testemunhar nesta inquirição (por que dista desta terra duas legoas) muitas dellas achei que eram falecidas. Contudo as que aqui vão e se inquirirão tem todos os requesitos, e qualidades que convem e são necessarias pera estas deligencias; porque sendo das mais antigas e christãs velhas da freguesia, entendi, que bem podiam dar testemunho, do que se pretendia saber.
Entre ellas achei duas, que me deram algum cuidado em seus ditos. Estas foram a quarta e a quinta e são João Lopes de Carvalho, e Antonio Vellez Castello Branco, naturais do mesmo lugar e dos principais delle. Por que chegando ao setimo interrogatorio; disseram que consta de seus ditos, como os avós paternos de D. Monica da Cunha, erão ligitimos christãos velhos etc. Fiz-lhe instancias me respondessem aos outros pontos do mouro mourisco mulato etc.
Aqui se calarão, dizendo que tinhãa respondido ao principal do christão velho. Repliquei-lhe me havião de dar razão e o mais que perguntara? Responderão (ainda que cada um por si, como se estivessem falados) que não querião deshonrar uma geração em cousa que já se não sabia, por esquecida. E que se algúa cousa havia não héra dos avós paternos de que só se inqueria, que se era dos bisavós elles os não conhecerão, nem podião dar nisto testemunho com certeza; por mais razões e debates que cúm elles tive, só a Antº Vellez alcancei uma palavra que soltou, dizendo tambem se hade falar em mulato? que eu não vi nem conheci, e talvez fosse; e só teria sangue delle? Nem assim quiz se lhe escrevesse este ditto, sendo que lhe disse, e apertei que dissesse o que sabia. E me deu a entender, tinha este defeito um bisavô da dita D. Monica. E vem a ser: Porque uma Maria Rebello de que se faz menção no Iº testemunho, sendo natural de Agada, foi casar a Barrô (que dista deste lugar mea legoa) com hum Diogo Dias o qual parece que ou era mulato, ou tinha sangue disso. Estes pois forão pais de Manuel de Pinho Rebello que veo a casar em Agada com Monica de Figueiredo Borges, os quais tiveram por filhos entre outros, ao Doutor Manuel da Cunha Rebello, E foi pae da dita D. Monica da Cunha, que por esta via fica sendo bisneta do dito Diogo Dias.

Mais diz o dito Antonio Vellez que o não hade jurar senão de ouvida que póde ser falso, porque o não alcançou.

No outro testemunho de João de Carvalho, João Lopes de Carvalho não deixo de ter algüas suspeitas de odio, ou reliquias de elle (não obstante que elle disse outra cousa) e a razão em que me fundo, é, porque este homem tem hum irmão frade de / 178 / S. Domingos que se chama Frei Manuel Chuquere, e hé actualmente prior do convento de Aveiro, no qual morando a mais de vinte anos, e indo pregar a uma Igreja de Fermelan, depois da missa teve umas razões (as quaes ignoro) com o Vigario della, o qual era irmão do Dr. Manuel da Cunha Rebello, e o que resultou dellas foi que dando o Vigario, com hum bordão, ou cajado no frade, o tal frade puchou duma faqua, e pregoa de tal modo no corpo do Vigario que logo cahio morto aos seus pés. Pelo que se pode crêr, que como o perseguirão tambem, tenha ainda em seu coração alguas reliquias de odio.

Isto é o que posso enformar nesta inquirição que só são inferencias do que praticarão as testemuuhas, e só destas duas alcancei, por conjecturas, o que digo.

Na comissão vem nomeado o pae de D. Monica por Manuel Rebello da cunha, Eu o conheci e tratei por Manuel da Cunha Rebello, e ahi vai emendado; e a D. Monica não naceu em Agada nem eu sei nem as testemunhas ao certo donde, porque como seu pae foi julgador, podia nacer-lhe em algua outra terra, quando não fosse em Aveiro a onde elle casou.

Avelans de Cima 30 Agosto 1684

Subdito e capelão de V. S.as

Boaventura Carvão»


Em todas essas inquirições que aí ficam enumeradas, e em que desfilam ou se faz referência a centenas de pessoa de Águeda, não há uma única mancha que lhes obscureça a limpeza do sangue cristão, e cuidamos assim ter suficientemente marcado o sentido das suas preocupações, pois que evidentemente o espaço requerido para exposição e análise de tão vasto repositório documental, não se compadecendo com o tamanho dum artigo de revista, também se não pode repartir em pedaços trimestrais, sem se arriscar a perder a conexão indispensável ao interesse evocador da matéria.


Só nas sucessivas páginas de um livro, que não poderia ser pequeno, o assunto se poderia tratar.


Dissemos da pureza do sangue e resta-nos agora dizer da elevação do espírito.


É na primeira metade do século XVII que surgem os arautos do valor intelectual e moral de Águeda.


Três figuras que por si só dizem mais das qualidades daqueles de quem vêm do que todos os estudos que possamos fazer para lhes pôr essas qualidades a descoberto.


Padre Jorge de Almeida, o notável jesuíta escolhido para pregar o sermão em S. Roque de Lisboa nas festas da beatificação de S. Francisw Xavier.


Dr. Frei Jorge Pinheiro, o ilustre dominicano encarregado do sermão nas festas da canonização da Rainha Santa Isabel.

 

/ 179 / Frei Amador de S. Francisco, provincial da Ordem Terceira, notável pela: beleza moral e abnegação da sua vida e pela iniciativa que teve nas obras de vários conventos e especialmente na construção do de S. Francisco da Ponte, de Coimbra.


Deste último frade, apesar de se saber, por depoimento de testemunhas contemporâneas, que era muito parente do familiar Sebastião de Macedo Pinheiro, não tivemos contudo possibilidade até hoje de lhe descobrir a filiação.


A ele se refere a História seráfica de Frei FERNANDO DA SOLEDADE, pág. 275, § 402, nos seguintes termos: «no convento de S. Francisco em Lisboa, em 18 de Maio de 1601, presidindo o Rv.mo Padre Jeral Frei Francisco de Sousa»...... «foi eleito em ministro o V.el Padre Frei Amador de S. Francisco, varão santo nos exemplos da vida, e opinião que deixou na morte. Era natural de Águeda» «era tanta a sua sinceridade, que nem sabia enganar, nem presumia que os outros usassem de cavilIações e enganos.

«Deste modo, e algumas vezes em prejuiso da sua pessoa, dava credito ás faIlacias alheias, como se forão verdades puras. Mas se tinha esta grande singeleza de pomba para não conservar malicia no seu proximo, tinha igual prudencia e astucia em desviar sua alma dos obstaculos que podião lastimar a propria virtude ajuntando muitas com que se fez amado de Deus e querido dos homens.
«No governo desta provincia deu admiraveis exemplos de caridade, rectidão e humildade, andando de convento para convento sem faustos, descalço, despido, mendigando de porta em porta o que lhe era necessario para o sustento. Não ultrajando contudo o direito á justiça punitiva nas causas, mas com tal modo executava o lugar de juiz, que juntamente atrahia os corações dos subditos com a brandura de pai» .......... «Foi raro amador de pobreza, e por esta prorogativa seraphica propriamente amador de S. Francisco. Desejava-o imitar em tudo mas com muita especialidade nesta perfeição»....... «sendo prelado não tinha na sua celIa mais que duas cadeiras velhissimas e porque encontrando-se neIla Ruy Dias da Camara fidalgo muito qualificado com o coIleytor do reino as largou ambas a eIles, e se assentou na cama, lhe disse depois Ruy Dias que emendasse esta falta; e lhe respondeu: melhor é que o coIleitor ache menos uma cadeira do que haveIla de mais».......
«Em seu tempo se aumentou a provincia com o mosteiro das reIligiosas de S. Luiz de Pinhel e tiverão principio as obras do convento de S. Francisco da Ponte de Coimbra: mas quando ele as viu tão sumptuosas, assentado em uma janela se desfazia em lagrimas soluçando e dizendo: que resposta eide eu dar ao meu Padre S. Francisco quando eIle me pedir contas destas obras? E replicando-lhe o seu secretario, porque não advertira a principio na planta respondeu com a sua singeleza notável: a
/ 180 / planta era muito pequena e por ella não julguei que esta machina havia de ser tão grande.»
Depois de ser provincial «se reduziu ao estado dos religiosos que seguem as obrigações da comunidade; e sem aplicar uma unica parte do seu pensamento a eleições ou governos os offerecia todos a Deus em orações»....... deste modo perseverou até ao ano de 1611.


O Padre Jorge de Almeida era filho de Pero Jorge Frade e de sua mulher Brites de Almeida, moradores na Rua de Cima de Águeda, em lugar que se pode ainda hoje perfeitamente identificar com o auxílio do Tombo da Igreja, onde viviam pelos meados do século XVI. Era de origem humilde pelo lado de seu pai, mas por sua mãe, segundo parece, e a ser verdade o que diz Amado Azambuja, genealogista do século XVIII, terceiro neto de Martin Anes de Almeida, primo de Duarte de Almeida, o heróico decepado da batalha de Toro. Recebeu a roupeta em 30 de Janeiro de 1582 e faleceu em S. Roque (Lisboa) em 21 de Abril de 1643 (BARBOSA MACHADO
Biblioteca Lusitana, tômo II, pág. 793 e SOMMERVOGEL Bibliothèque de la Compagnie de Jésus, pág. 188 e outras). Para quem quiser ler o seu sermão, que é em latim e bastante longo, encontra-se na Relação das festas que a religião da Companhia de Jesus fez em a cidade de Lisboa, na beatificação do Padre Francisco Xavier etc., pelo Padre DIOGO MARQUES SALGUEIRO, existente na Biblioteca Nacional de Lisboa. «Praticou com exemplar exacção os preceitos religiosos e por muitos anos se exercitou no ministerio do pulpito para o qual se preparava com rigorosa disciplina


Quanto ao Dr. Frei Jorge Pinheiro, era filho de Pedro Jorge, o das Laranjeiras, e de sua mulher Maria Pinheira, e se diz (BARBOSA MACHADO, obr. cito, pág. 813) dele: «a penetração do juizo que logo mostrou na primeira idade o habilitou para ser aluno da preclarissima Ordem dos Pregadores, que professou no convento de Lisboa a 15 de Fevereiro de 1589. Aprendidas as ciencias escholasticas com admiravel progresso não somente as dictou aos seus domesticos mas saindo do claustro a sua vasta literatura illustrou a Academia Conimbricense onde recebera o grau de Doutor em a cadeira de Prima de Sagrada Escritura em que se jubilou a 7 de Fevereiro de 1647.

Foi prior do real convento da Batalha, provincial eleito em 1634, deputado da Inquisição de Coimbra, de que tomou posse a 2 de Abril de 1635».


No Claustro dominicano, 3.º lanço, pág. 40, por Frei PEDRO MONTElRO, se diz que foi lente da Universidade mais de 20 anos
/ 181 / e religioso muito reformado e de procedimento exemplar especialmente na pobreza e bem assim que dele se faz memória nas actas do capítulo celebrado em Roma, no convento de Santa Maria de Minerva, em 1650.

Dos seus sermões, os mais conhecidos são:

«Sermão no auto de fé que se celebrou em Coimbra a 29 de Março de 1620. Quarta dominga da quaresma» Lisboa, por Pedro Crasbreeck, impressor de el-rei, 1820. 4.

«Sermão nas festas, que o illustrissimo, e Rev.º Senhor D. João Manuel bispo de Coimbra fez na canonização de Santa Izabel Raynha no mez de Outubro de 1625». Saiu no certame poético que se refere a este assunto. Coimbra, por Diogo Gomes de Loureiro, 628. 4

«Sermão pregado na Igreja da Raynha Stª Izabel em o Prestito, que a insigne Universidade de Coimbra fez dando a Deus as graças pelo nacimento do principe Balthazar Carlos.» Coimbra, pelo dito impressor, 630. 4.

«Tractatus de Abrahamo 4 M. S.»
«Tractatus de laudibus Evanlistas et Baptististas 4 M. S.»


Várias mercês foram feitas por D. Filipe III e D. João IV ao Dr. Frei Jorge Pinheiro a que nos referiremos em ocasião que a isso se nos proporcione.

o

Além destes três nomes, mais outros de pessoas contemporâneas poderíamos, citar, mas, não querendo abusar do espaço e da paciência do leitor, e tendo dada a impressão que desejávamos, ficamos por aqui.


Ocupar-nos-emos, posteriormente, dum episódio interessante que se deu por ocasião da passagem do concelho de Recardães para Aveiro, passagem a que fizemos referência no estudo sobre a complicação jurisdicional de Águeda.
 

CONDE DA BORRALHA

Continua no vol. II, pág. 29 − ►►►
 

NOTA - No presente artigo vem a indicação da parte III. A verdade é que não se encontra no volume a parte II, mas a primeira parte, para a qual remete a hiperligação fornecida no começo da página (HJCO).

 

Página anterior Índice Página seguinte