Para saber da
preocupação da pureza de sangue e da elevação do espírito dos habitantes
de Águeda em relação aos das terras que a rodeavam, outra forma não há
além da que nos permite tomar conhecimento, através da documentação, das
funções, da posição e, quanto possível, do procedimento dum número
bastante desses habitantes capaz de nos elucidar. sobre o que haja de
característico nas diferentes malhas e gradações que formem a rede e a
escala da sociedade que por ali passou.
Desejaríamos começar por fazer incidir este trabalho sobre o século XV,
mas os poucos documentos desse século de que para o efeito podemos
dispor estão longe de satisfazer à complexidade do assunto, e teremos,
por isso, de nos socorrer dos séculos subsequentes à procura daqueles
reflexos retrospectivos que nos permitam, às vezes, ver as coisas que a
falta das luzes directas deixa na escuridão. Não o faremos, porém, sem
proporcionar um pequeno golpe de vista indicativo de que da violência,
da dureza, acompanhadas dum espírito de natural conformação com as
necessidades da época, se encontra exemplo, em gente de Águeda, que
reveja o senso do nosso antigo carácter de realizadores.
Em meio duma grande colecção de documentos sobre Marrocos, publicados
pela Academia das Ciências, sob a direcção de PEDRO DE AZEVEDO, que
abrangem de 1415 a 1450, figura (págs. 148 a 149, 1.º voI.) aquele que
passamos a transcrever:
«Dom Afomso etc. saude. Sabede que Joham Uaaz morador no burgo dAgueda
nos enujou dizer que podia auer iiij ou b anos que a ell culparom na
morte de Fernam Ualente e Joham Valente seu filho moradores no dito logo
por as quaees mortes
/ 172 /
el fora preso e leuado aa cidade de Coimbra E que jazendo asi preso
no castello da dita cidade fujira deI pella qual razom se el amorara com
temor que auja das nossas Justiças o prendenrem por ello E que andando
asi amoorado sse fora na armada que foi feita sobre Tanger em companha
de Fernam Pereira com o qual esteuera no cerco e pallanque ataa o
rrecolhimento do Ifante Dom Anrrique meu tio E que depois da bijnda do
dito cerco EI Rey meu Senhor e padre cuja alma deus aia lhe perdoara a
sua Justiça a que per razom da morte do dito Fernam Valente e Joham
Valente seu filho era thudo com tanto que fosse ujuer e morar ao nosso
couto da Guarda dous anos segundo mais conpridamente era conteudo na
carta do liuramento que perante nós presentou ao qual degredo se el fora
segundo lhe fora mandado e o manteuera como ainda mantijnha auja mais de
húu ano E que depois lhe fora dito que nós com os do nosso conselho
acordaram os que todollos que esteueram no dito cerco e palanque per
rrazõ de seus omjzios eram liures com algúus degredos que lhe fosse
quite e rreleuado da meatade da pena ou degredo que lhe asi foram postos
E que per bem da determjnaçom do dito conselho nos pidia por merçee pois
Ja seruira húum ano e mais lhe rreleuassemos outro ano E nós uendo oo
que pidia querendo lhe fazer graça e merçee vista a determinaçom do
conselho sobresto feita se asi he que el serujo Ja o dito ano temos por
bem e releuamos lhe o outro que asi auja de ujuer na dita cidade da
Garda. E se ajnda nom morou huu ano que o acabe porem uos mandamos que o
nom prendaaes etc. em forma. Dada em Lisboa xxbj dias de março per Luis
Martjnz e FernamdAlvarez. Rodrigo Afonso a fez Era R.tª anos.
Este caso, embora isolado, tem certo valor como quadro social, porque
corresponde a um detalhe da vida duma época cujos traços gerais, sendo
já hoje suficientemente conhecidos, lhe emprestam um poder de
generalização que esse detalhe necessariamente pressupõe.
Embora destes perdões, por crimes com comutações de penas por serviços
prestados, haja na colecção citada bastantes exemplos espalhados por
todo o país, não aparece lá outro em terra alguma da região a que Águeda
pertence, sendo o caso similar mais próximo em Esgueira; já são mais
vulgares os casos de perdões por entrar na batalha de Alfarrobeira, por
serem, é claro, mais fáceis de encontrar na época exemplos de actos que
exprimam vassalagem ou rebeldia do que vontade e cálculo individuais.
Que haviam de fazer os homens de Águeda, de Aveiro, de Ílhavo, de
Carvalhais e Ferreiros (Anadia), de Coimbra, da Lousã e outras terras
senão estar ao lado do Infante D. Pedro,
/ 173 / no tempo em que a vida e a fortuna material das pessoas nada eram
sem a honra e a lealdade ao serviço do seu Senhor?
O próprio Rei o parece achar natural, perdoando com facilidade aos
pequenos, pelo menos, apesar da gravidade da traição que, segundo o
direito da época, lhe havia sido feita.
Na Chancelaria de D. Afonso V encontram-se dois exempIos em Águeda e até
um na Borralha, onde (livro lI, fI. 79) se lê:
«outra tal de Alvaro Gonçalves morador dAgueda em que o damos por
Monteiro e guardador da mata de Paradela, em logo e vaga de Joham A.º
que ora o aposentarom por hedade de satenta annos posto que fosse na
batalha cõ o efante Dom Pedro
−
26 maio 451 juntamente acima outra... a gonçalo lourenço morador na
Borralha termo de Recardães na mata paaos
−
Vaga de afonso Vasques Callafate morador de Aveiro que se finou,
posto que fosse na Batalha. (26 de Maio 451).»
Outra: «Pedr'alvares morador em Agueda termo de Aveiro guardador da mata
de praãs posto que antes fosse Monteiro e fosse na batalha».
É só no século XVI que o Tombo do Hospital de Águeda nos começa a deixar
surpreender a qualidade e a importância da população do burgo duma forma
flagrante e decisiva a partir de 1533; porque este Tombo é, o que não
sucede com o Tombo da igreja, uma pública forma do anterior.
Embora ambos estes Tombos sejam feitos no século XVII, este último tem,
em relação ao primeiro, apesar da sua maior perfeição, método e clareza
em qualquer outro ponto, a falta de nele se não declararem as profissões
dos moradores.
É, pois, só da parte abrangida pelos foreiros do Hospital que podemos
tratar.
Traçando uma linha que partindo do Botaréu passe pelo lado Nascente da
farmácia Ala e atravessando a Rua de Cima (34 varas além da sua saída da
Praça) se dirija para o Adro até ao calvário, e, voltando aí para
Poente, contorne o caminho que vai cruzar com a Rua de S. Bento e esta
última rua até chegar de novo ao rio, ter-se-á, com ligeira excepção,
circunscrito o espaço de Águeda habitado de que era senhorio directo o
Hospital de Águeda.
Neste espaço havia 42 casas, sendo destas 17 térreas e 25 sobradadas,
das quais eram enfiteutas, respectivamente, Pêro Anes de Arrancada com 1
casa; Leonor Martins com 1; Brites Gonçalves, viúva, com 1; Gonçalo
Afonso, alfaiate, com 2; Diogo Gonçalves com 1; Fernão de Pinho com 3;
Alvaro Rodrigues, tabelião, com 1; Jorge Pires, ferreiro, com 3; João
Fernandes, sapateiro, com 3; Alvaro Fernandes, sapateiro, com 1; Diogo
Martins, ferreiro, com 2; Gonçalo Martins, ferreiro, com 2; Martim
Marques com 1; João Fernandes com 1; Leonel
/ 174 /
Fernandes, sapateiro, com 1; Diogo de Paiva com 2; João Viegas com 2;
Pedro Anes, alfaiate, com 2; Gomes Martins com 1; Catarina Anes, viúva
de Lopo Afonso, com 2; Fernão Anes, mercador, com 2; João Fernandes
Romão com 1; Martim Fernandes, ferreiro, com 1; donos ignorados com 2.
Vê-se daqui que, não só perto de cinquenta por cento dos chefes de
família eram mesteirais, mercadores e funcionários públicos, mas que
também ali eram senhorios úteis de quase metade das casas.
Não havia fidalgos em Águeda, mas do burguês nobilitado são exemplo
Fernão de Pinho, João Viegas e, possivelmente, Diogo de Paiva.
Uma pequena indiscrição do Tombo deixa-nos entrever a origem da família
deste Fernão de Pinho, contando que certa alcaçaria e pelame, que ficava
no caminho do Vale, havia sido de seus antecessores. Ora, ao tempo,
havia duas alcaçarias e pelames que funcionavam e pertenciam a dois
sapateiros João e Leonel Fernandes, moradores na Rua da Ponte; em
virtude do que se pode presumir, com certa segurança, qual seria a
profissão dos antepassados do mesmo Fernão de Pinho.
Com João Viegas e Diogo de Paiva não aconteceria coisa parecida?
De Fernão de Pinho e João Viegas podemos afirmar que foram troncos de
várias famílias nobres e ilustres que se espalharam principalmente pelo
Norte do país; quanto à descendência de Diogo de Paiva, foi mais
circunscrita e menos conhecida.
Entre a grande massa dos jornaleiros e trabalhadores agrícolas, dadas as
dificuldades com que lutavam contra a exploração senhorial, e a dos
mesteirais, tratantes, e funcionários públicos, dada a maior
independência e corrente abuso para melhor angariar meios de fortuna,
não havia termo de comparação para se ascender a uma posição social
superior àquela em que se nascia. O mesteiral estava indubitavelmente em
melhores condições para vencer na vida.
Outro caso também digno de análise nos revela o Tombo do Hospital, que,
apesar de parecer insignificante, nos dá com uma certa nitidez a
diferença de pensar entre o século XV e os séculos posteriores.
Alguns dos descendentes, considerados nobres no século XVII, dos
ferreiros Diogo Martins e Gonçalo Martins (moradores na Rua da Ponte,
nos princípios do século XVI), não lhes convindo que se soubesse que
aqueles de quem provinham haviam exercido profissão mecânica, procuram
flagrantemente, ora apagar, ora emendar para Pinheiro, a palavra
indicativa da mesma profissão em todas as folhas em que ela aparece. Só
pela fotogravura se poderia aqui dar uma impressão com cuja eloquência
nunca uma descrição por palavras, por minuciosa que fosse, conseguiria
competir.
/ 175 /
Mas seriam estes Martins realmente Pinheiros decaídos de antiga nobreza,
ou tomariam o apelido por terem vindo alguns de seus avós, como diz a
habilitação de Jerónimo Pinto, que abaixo citaremos, do lugar do
Pinheiro junto de Angeja?
Já no tempo de D. Dinis, segundo confessa o próprio Rei, se vê que havia
muito sangue de fidalgo na classe dos mesteirais (A. SAMPAIO
−
Estudos Históricos, voI. I, pág. 243).
Não há elementos de prova que nos permitam inclinarmo-nos para este ou
para aquele lado, e nem o problema, para o caso, interessa sob esse
ponto de vista.
O que é fora de dúvida é que os desta família sempre foram cristãos
velhos e mostraram tendência para conservar a pureza do seu sangue sem a
mistura do de preto, mouro ou judeu, como aliás acontecia também com as
outras famílias de Águeda, do que dão sobeja prova nada menos de 21
habilitações para o Santo Ofício, do último quartel do século XVI ao
terceiro do século XVIII, que tivemos ocasião de consultar e das quais
seguidamente mencionamos os nomes dos habilitandos e respectivos números
de masso e diligência.
Seguiremos na designação dos processos uma ordem crescente da sua
numeração, indicando assim também a sua ordem cronológica, devendo porém
advertir que nem sempre uma corresponde, com exactidão, à outra.
Eram eles:
|
Jerónimo Pinto, meirinho do S. O. . . . . . . . . . . . . . .
. . . .
Sebastião de Macedo Pinheiro, familiar . . . . . . . . . . . . . .
Miguel da Silva Chamarro, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . .
.
Miguel Pinto de Macedo, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.
Cristovam Pinto de Almeida e Macedo, familiar . . . . . . . . .
Frei Jorge Pinheiro, deputado do S. O. . . . . . . . . . . . . . . .
Frei Tomé de Macedo, inquisidor . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.
Antonio Pinto Boto, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . .
Miguel Henriques de Castro, familiar . . . . . . . . . . . . . . . .
Pedro Mendes, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . .
Francisco de Figueiredo de Carvalho, familiar . . . . . . . . .
Antonio de Almeida, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . .
Manuel Nunes de Almeida, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . .
.
Manuel Pinheiro, pintor, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . .
José Pinto de Macedo, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . .
João Pinto de Macedo, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. .
Manuel Pinheiro, ourives, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . .
. .
Manuel Gomes, familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . |
1-5
2-44
3-50
3-52
3-53
3-89
6-89
7-303
9-157
11-271
16-470
22-640
37-818
43-948
48-767
48-953
97-1805
105-1914 |
|
E mais os seguintes, de que nos faltam os números do masso e diligência:
D. Leonardo de Santo Agostinho, qualificador do S. O. (carta de 19 de
Maio de 1644).
/ 176 /
Manuel Jorge da Costa, familiar (carta de 14 de Janeiro de 1679).
Manuel Roiz Ferrão, familiar (carta de 30 de Dezembro de 1714).
E há nestas listas de tudo, desde o mais humilde ao mais alto, desde o
serralheiro ao Bispo; e, se é claro que isso também convinha à
Inquisição que assim fosse, não deixa por isso o facto de significar
bastante para as possibilidades e tendências da população local.
De todos estes processos só em dois se levantaram dificuldades de vulto,
e, ainda assim, as pessoas das famílias que a essas dificuldades deram
origem não eram de Águeda.
Em um deles levantaram-se dúvidas sobre a ascendência de Crisóstomo de
Paiva, de Mogofores, avô materno de Eulália da Silva, mulher do familiar
Miguel Pinto de Macedo, a que procuraram dar todo o relevo, em 18 de
Abril de 1674, António Alvares da Cruz, prior de S. Lourenço do Bairro,
e Manuel de Oliveira Barreto, os quais, por uma carta do mesmo Miguel
Pinto de Macedo, de 2 de Maio do mesmo ano, se fica sabendo serem
declarados inimigos deste; o primeiro, por certa protecção dispensada a
Filipe de Castilho, almoxarife do Estado de Bragança; o segundo, por
causa duma demanda que trazia com António Velez, primo do signatário da
referida carta.
Por fim, chegou-se à conclusão de que as testemunhas falavam «de
ouvido», isto é, por tradição e não por conhecimento próprio, dizendo
que o bisavô ou terceiro avô de Crisóstomo trouxera da Índia uma mulher
da qual ele descendia; e aquela família continuou, como sempre fora, a
ser considerada de limpo sangue e de velha cristandade.
Em o outro processo, sobre o qual também se levantou dúvida, tratava-se
de um Diogo Dias, de Barrô, que vinha a ser bisavô da mulher do familiar
Manuel Jorge da Costa que se chamava Mónica da Cunha. A este respeito
não resistimos à tentação de transcrever na íntegra a informação do
prior de Avelans, Boaventura Carvão, que, além de interessante, revela
um correcto escritor, e é por isso um pedaço de bom português daquele
tempo.
Calculo tratar-se do mesmo a quem o padre CARVALHO (Corografia,
tomo II, pág. 122) denomina Ventura Cravão e pretende ter escrito
quaisquer memórias sobre Aveiro.
Eis a informação:
«Muito Ilustres Senhores Inquisidores
A causa de haver alguma tardança nesta deligencia, foy porque
quando chegou esta comissão de V. S.as estava eu na cidade do
Porto, a onde fui buscar um dourador, para me dourar
/ 177 /
[Vol. I − N.º 3 −1935]
o retabulo da capela mor desta Igreja que mandei fazer de novo e logo
que me foi entregue, trez dias depois da minha chegada, a puz em
execução, indo ao lugar de Agueda, que he termo da villa de Aveiro. E
posto nele conhecia muitas pessoas antigas que bem podiam testemunhar
nesta inquirição (por que dista desta terra duas legoas) muitas dellas
achei que eram falecidas. Contudo as que aqui vão e se inquirirão tem
todos os requesitos, e qualidades que convem e são necessarias pera
estas deligencias; porque sendo das mais antigas e christãs velhas da
freguesia, entendi, que bem podiam dar testemunho, do que se pretendia
saber.
Entre ellas achei duas, que me deram algum cuidado em seus ditos. Estas
foram a quarta e a quinta e são João Lopes de Carvalho, e Antonio Vellez
Castello Branco, naturais do mesmo lugar e dos principais delle. Por que
chegando ao setimo interrogatorio; disseram que consta de seus ditos,
como os avós paternos de D. Monica da Cunha, erão ligitimos christãos
velhos etc. Fiz-lhe instancias me respondessem aos outros pontos do
mouro mourisco mulato etc.
Aqui se calarão, dizendo que tinhãa respondido ao principal do christão
velho. Repliquei-lhe me havião de dar razão e o mais que perguntara?
Responderão (ainda que cada um por si, como se estivessem falados) que
não querião deshonrar uma geração em cousa que já se não sabia, por
esquecida. E que se algúa cousa havia não héra dos avós paternos de que
só se inqueria, que se era dos bisavós elles os não conhecerão, nem
podião dar nisto testemunho com certeza; por mais razões e debates que
cúm elles tive, só a Antº Vellez alcancei uma palavra que soltou,
dizendo tambem se hade falar em mulato? que eu não vi nem conheci, e
talvez fosse; e só teria sangue delle? Nem assim quiz se lhe escrevesse
este ditto, sendo que lhe disse, e apertei que dissesse o que sabia. E
me deu a entender, tinha este defeito um bisavô da dita D. Monica. E vem
a ser: Porque uma Maria Rebello de que se faz menção no Iº testemunho,
sendo natural de Agada, foi casar a Barrô (que dista deste lugar mea
legoa) com hum Diogo Dias o qual parece que ou era mulato, ou tinha
sangue disso. Estes pois forão pais de Manuel de Pinho Rebello que veo a
casar em Agada com Monica de Figueiredo Borges, os quais tiveram por
filhos entre outros, ao Doutor Manuel da Cunha Rebello, E foi pae da
dita D. Monica da Cunha, que por esta via fica sendo bisneta do dito
Diogo Dias.
Mais diz o dito Antonio Vellez que o não hade jurar senão de ouvida que
póde ser falso, porque o não alcançou.
No outro testemunho de João de Carvalho, João Lopes de Carvalho não
deixo de ter algüas suspeitas de odio, ou reliquias de elle (não
obstante que elle disse outra cousa) e a razão em que me fundo, é,
porque este homem tem hum irmão frade de
/ 178 / S. Domingos que se chama Frei Manuel Chuquere, e hé actualmente
prior do convento de Aveiro, no qual morando a mais de vinte anos, e
indo pregar a uma Igreja de Fermelan, depois da missa teve umas razões
(as quaes ignoro) com o Vigario della, o qual era irmão do Dr. Manuel da
Cunha Rebello, e o que resultou dellas foi que dando o Vigario, com hum
bordão, ou cajado no frade, o tal frade puchou duma faqua, e pregoa de
tal modo no corpo do Vigario que logo cahio morto aos seus pés. Pelo que
se pode crêr, que como o perseguirão tambem, tenha ainda em seu coração
alguas reliquias de odio.
Isto é o que posso enformar nesta inquirição que só são inferencias
do que praticarão as testemuuhas, e só destas duas alcancei, por
conjecturas, o que digo.
Na comissão vem nomeado o pae de D. Monica por Manuel Rebello da
cunha, Eu o conheci e tratei por Manuel da Cunha Rebello, e ahi vai
emendado; e a D. Monica não naceu em Agada nem eu sei nem as testemunhas
ao certo donde, porque como seu pae foi julgador, podia nacer-lhe em
algua
−
outra terra, quando não fosse em Aveiro a onde elle casou.
Avelans de Cima 30 Agosto 1684
Subdito e capelão de V. S.as
Boaventura Carvão»
Em todas essas inquirições que aí ficam enumeradas, e em que desfilam ou
se faz referência a centenas de pessoa de Águeda, não há uma única
mancha que lhes obscureça a limpeza do sangue cristão, e cuidamos assim
ter suficientemente marcado o sentido das suas preocupações, pois que
evidentemente o espaço requerido para exposição e análise de tão vasto
repositório documental, não se compadecendo com o tamanho dum artigo de
revista, também se não pode repartir em pedaços trimestrais, sem se
arriscar a perder a conexão indispensável ao interesse evocador da
matéria.
Só nas sucessivas páginas de um livro, que não poderia ser pequeno, o
assunto se poderia tratar.
Dissemos da pureza do sangue e resta-nos agora dizer da elevação do
espírito.
É na primeira metade do século XVII que surgem os arautos do valor
intelectual e moral de Águeda.
Três figuras que por si só dizem mais das qualidades daqueles de quem
vêm do que todos os estudos que possamos fazer para lhes pôr essas
qualidades a descoberto.
Padre Jorge de Almeida, o notável jesuíta escolhido para pregar o sermão
em S. Roque de Lisboa nas festas da beatificação de S. Francisw Xavier.
Dr. Frei Jorge Pinheiro, o ilustre dominicano encarregado do sermão nas
festas da canonização da Rainha Santa Isabel.
/ 179 /
Frei Amador de S. Francisco, provincial da Ordem Terceira, notável pela:
beleza moral e abnegação da sua vida e pela iniciativa que teve nas
obras de vários conventos e especialmente na construção do de S.
Francisco da Ponte, de Coimbra.
Deste último frade, apesar de se saber, por depoimento de testemunhas
contemporâneas, que era muito parente do familiar Sebastião de Macedo
Pinheiro, não tivemos contudo possibilidade até hoje de lhe descobrir a
filiação.
A ele se refere a História seráfica de Frei FERNANDO DA SOLEDADE,
pág. 275, § 402, nos seguintes termos: «no convento de S. Francisco em
Lisboa, em 18 de Maio de 1601, presidindo o Rv.mo Padre Jeral Frei
Francisco de Sousa»...... «foi eleito em ministro o V.el
Padre Frei Amador de S. Francisco, varão santo nos exemplos da vida, e
opinião que deixou na morte. Era natural de Águeda» «era tanta a sua
sinceridade, que nem sabia enganar, nem presumia que os outros usassem
de cavilIações e enganos.
«Deste modo, e algumas vezes em prejuiso da sua pessoa, dava credito ás
faIlacias alheias, como se forão verdades puras. Mas se tinha esta
grande singeleza de pomba para não conservar malicia no seu proximo,
tinha igual prudencia e astucia em desviar sua alma dos obstaculos que
podião lastimar a propria virtude ajuntando muitas com que se fez amado
de Deus e querido dos homens.
«No governo desta provincia deu admiraveis exemplos de caridade,
rectidão e humildade, andando de convento para convento sem faustos,
descalço, despido, mendigando de porta em porta o que lhe era necessario
para o sustento. Não ultrajando contudo o direito á justiça punitiva nas
causas, mas com tal modo executava o lugar de juiz, que juntamente
atrahia os corações dos subditos com a brandura de pai» .......... «Foi
raro amador de pobreza, e por esta prorogativa seraphica propriamente
amador de S. Francisco. Desejava-o imitar em tudo mas com muita
especialidade nesta perfeição»....... «sendo prelado não tinha na sua
celIa mais que duas cadeiras velhissimas e porque encontrando-se neIla
Ruy Dias da Camara fidalgo muito qualificado com o coIleytor do reino as
largou ambas a eIles, e se assentou na cama, lhe disse depois Ruy Dias
que emendasse esta falta; e lhe respondeu: melhor é que o coIleitor ache
menos uma cadeira do que haveIla de mais».......
«Em seu tempo se aumentou a provincia com o mosteiro das reIligiosas de
S. Luiz de Pinhel e tiverão principio as obras do convento de S.
Francisco da Ponte de Coimbra: mas quando ele as viu tão sumptuosas,
assentado em uma janela se desfazia em lagrimas soluçando e dizendo: que
resposta eide eu dar ao meu Padre S. Francisco quando eIle me pedir
contas destas obras? E replicando-lhe o seu secretario, porque não
advertira a principio na planta respondeu com a sua singeleza notável: a
/ 180 / planta era
muito pequena e por ella não julguei que esta machina havia de ser tão
grande.»
Depois de ser provincial «se reduziu ao estado dos religiosos que seguem
as obrigações da comunidade; e sem aplicar uma unica parte do seu
pensamento a eleições ou governos os offerecia todos a Deus em
orações»....... deste modo perseverou até ao ano de 1611.
O Padre Jorge de Almeida era filho de Pero Jorge Frade e de sua mulher
Brites de Almeida, moradores na Rua de Cima de Águeda, em lugar que se
pode ainda hoje perfeitamente identificar com o auxílio do Tombo da
Igreja, onde viviam pelos meados do século XVI. Era de origem humilde
pelo lado de seu pai, mas por sua mãe, segundo parece, e a ser verdade o
que diz Amado Azambuja, genealogista do século XVIII, terceiro neto de
Martin Anes de Almeida, primo de Duarte de Almeida, o heróico decepado
da batalha de Toro. Recebeu a roupeta em 30 de Janeiro de 1582 e faleceu
em S. Roque (Lisboa) em 21 de Abril de 1643 (BARBOSA MACHADO
−
Biblioteca
Lusitana, tômo II, pág. 793 e SOMMERVOGEL
−
Bibliothèque de la Compagnie de Jésus, pág. 188 e outras). Para quem
quiser ler o seu sermão, que é em latim e bastante longo, encontra-se na
Relação das festas que a religião da Companhia de Jesus fez em a
cidade de Lisboa, na beatificação do Padre Francisco Xavier etc.,
pelo Padre DIOGO MARQUES SALGUEIRO, existente na Biblioteca Nacional de
Lisboa. «Praticou com exemplar exacção os preceitos religiosos e por
muitos anos se exercitou no ministerio do pulpito para o qual se
preparava com rigorosa disciplina.»
Quanto ao Dr. Frei Jorge Pinheiro, era filho de Pedro Jorge, o das
Laranjeiras, e de sua mulher Maria Pinheira, e se diz (BARBOSA MACHADO,
obr. cito, pág. 813) dele: «a penetração do juizo que logo mostrou na
primeira idade o habilitou para ser aluno da preclarissima Ordem dos
Pregadores, que professou no convento de Lisboa a 15 de Fevereiro de
1589. Aprendidas as ciencias escholasticas com admiravel progresso não
somente as dictou aos seus domesticos mas saindo do claustro a sua vasta
literatura illustrou a Academia Conimbricense onde recebera o grau de
Doutor em a cadeira de Prima de Sagrada Escritura em que se jubilou a 7
de Fevereiro de 1647.
Foi prior
do real convento da Batalha, provincial eleito em 1634, deputado da
Inquisição de Coimbra, de que tomou posse a 2 de Abril de 1635».
No Claustro dominicano, 3.º lanço, pág. 40, por Frei PEDRO
MONTElRO, se diz que foi lente da Universidade mais de 20 anos
/ 181 / e religioso
muito reformado e de procedimento exemplar especialmente na pobreza e
bem assim que dele se faz memória nas actas do capítulo celebrado em
Roma, no convento de Santa Maria de Minerva, em 1650.
Dos seus
sermões, os mais conhecidos são:
−
«Sermão no
auto de fé que se celebrou em Coimbra a 29 de Março de 1620. Quarta
dominga da quaresma»
−
Lisboa, por
Pedro Crasbreeck, impressor de el-rei, 1820. 4.
−
«Sermão nas
festas, que o illustrissimo, e Rev.º Senhor D. João Manuel bispo de
Coimbra fez na canonização de Santa Izabel Raynha no mez de Outubro de
1625». Saiu no certame poético que se refere a este assunto. Coimbra,
por Diogo Gomes de Loureiro, 628. 4
−
«Sermão
pregado na Igreja da Raynha Stª Izabel em o Prestito, que a insigne
Universidade de Coimbra fez dando a Deus as graças pelo nacimento do
principe Balthazar Carlos.» Coimbra, pelo dito impressor, 630. 4.
−
«Tractatus de
Abrahamo 4 M. S.»
−
«Tractatus de
laudibus Evanlistas et Baptististas 4 M. S.»
Várias mercês foram feitas por D. Filipe III e D. João IV ao Dr. Frei
Jorge Pinheiro a que nos referiremos em ocasião que a isso se nos
proporcione.
o
Além destes
três nomes, mais outros de pessoas contemporâneas poderíamos, citar,
mas, não querendo abusar do espaço e da paciência do leitor, e tendo
dada a impressão que desejávamos, ficamos por aqui.
Ocupar-nos-emos, posteriormente, dum episódio interessante que se deu
por ocasião da passagem do concelho de Recardães para Aveiro, passagem a
que fizemos referência no estudo sobre a complicação jurisdicional de
Águeda.
CONDE DA BORRALHA
Continua no vol. II, pág.
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