Morando em Algés, onde exerci a clínica 29 anos, tive o feliz ensejo e
honra de travar relações de
bastante intimidade com o Dr. Ferraz de Macedo,
que, tendo feito a sua educação distante da pátria
e visitado todos os grandes centros intelectuais da Europa, onde adquiriu extraordinária cultura e renome, veio viver o último
quartel da vida em Lisboa, Calçada do Monte n.º 1, à Graça, onde morreu
aí por 1906.
Quem notasse em FERRAZ DE MACEDO a figura erecta e ágil, os seus
músculos despidos de sobrecarga adiposa e vigorosíssimos, noites e
dias consecutivos, que levava, no seu gabinete, a resolver altos problemas científicos, diria que
este homem possuía
uma organização de aço.
O seu olhar vivo e penetrante, as conversações eruditas, sugestivas e
atraentes, as concepções científicas arrojadas e originalíssimas,
tenacidade rara na procura da verdade, na defesa da justiça; no combate
do erro, recordavam-nos que aquela organização de aço era, permita-se-me
a expressão, servida por um espírito de diamante. Resistente e brilhante
como eles. A sua biografia não cabe nos estreitos limites dum artigo.
Daria um livro que mostraria quanto pode a força de vontade, o talento e o
amor da ciência a par do amor da pátria, um livro que seria um
testemunho brilhante e autêntico de que a cultura e avanço da alta
ciência não constituem privilégio de estranhos.
O que vou expor, e não o que fica dito, mostra à evidência,
sugestivamente, a grandeza do seu espírito e multiplicidade de
faculdades, quase inacreditáveis.
Em
Julho de 1898, «O Gabinete dos Reporters», publicação literária e
ilustrada de Lisboa, querendo prestar homenagem a este grande português, e sabedor das minhas relações de
/ 250 /
convívio e amizade com ele, convidou-me a escrever um artigo sebre
FERRAZ DE MACEDO. Apesar dos meus pouquíssimos recursos, não declinei o
honroso convite para não deixar de ser prestada tão justa e merecida
homenagem. Como isso já vai longe, há 36 anos, e a memória me falha
sobre o que então escrevi, reporto-me a esse artigo, extraindo dele
alguns factos mais importantes, actualizando-os e apropriando-os
(plagiando-me a mim próprio) a fim de vir trazer à interessante e culta
galeria histórica do «Arquivo do Distrito de Aveiro» uma individualidade
desta região, que ali merecerá, de certo, um bom lugar.
O Dr. FERRAZ DE M\CEDO nasceu no lugar de Paradela, arrabaldes de
Águeda. Aos oito anos, acompanhou seu pai para as Terras de Santa Cruz.
A poética e sorridente região que lhe serviu de berço incutiu-lhe no
espírito o gosto pela arte e pela poesia, fazendo-o sonhar horizontes
mais distantes. Na travessia do Oceano, o seu embrionário espírito, ante
a majestade do mar e a imensidade do firmamento, desabrochara e
engrandecera. O seu cérebro, moldável e plástico, recebeu, de maneira
perdurável, as impressões do infinito e do maravilhoso.
Chegado ao Rio, o estudo atraiu-o como um íman. Após brilhante e
vertiginoso curso secundário, frequenta, com o mesmo esplendor, as escolas de ciências naturais e farmacêuticas.
A seguir junta e vence, com admiração, sempre, de mestres e
condiscípulos, os cursos de medicina e cirurgia em que tomou capelo. Era
tão resistente a sua organização, tão vertiginosa a sua actividade, tão
vastos os recursos do seu espírito, que tirava ainda tempo para, em
cursos particulares, leccionar português, francês, inglês, latim,
matemáticas e outras disciplinas! E como tudo isto fosse pouco para
atestar o poder invencível das suas faculdades, foi, ao mesmo tempo, um
dos mais activos e prestimosos fundadores do «Liceu Literário Português
do Rio de Janeiro», e ainda como estudante, o primeiro que ali leccionou português e francês, e logo eleito orador oficial, fazendo todas as
semanas sessões de propaganda sobre os diversos ramos do saber humano!
Nos arquivos do «Liceu Literário» deve existir registada, como primores
de literatura e erudição, a maior parte dos seus discursos e
conferências.
A sua vida clínica foi uma série de triunfos. Foi o primeiro médico da
colónia portuguesa e dos melhores da capital do Brasil.
Tendo, em poucos anos, adquirido, pelo seu trabalho honesto e
desinteressado, meios de fortuna, e não tendo mais que aprender no
Brasil, sempre insaciável de saber, vem à Europa em demorada viagem de
estudo. Em Viena de Áustria recebeu
as lições do operador BlLROTH, do parteiro BRANAR... Em Roma
frequentou as clínicas de PASCHOAL, de MANASCI, ...Frequentou
/ 251 /
as principais clínicas dos Hospitais de Berlim, Paris, Londres,
Copenhague, Stocolmo, S. Petersburgo...
Em todas as viagens observou os costumes dos povos que percorreu, de
que fez um interessantíssimo mapa; estudou-lhes a literatura, as
línguas à medida que os visitava, e assim Ferraz, além da língua
pátria, aprendeu o espanhol, o francês, o inglês, o italiano, o
latim, o alemão, o sueco, o russo, o grego... de que deixou provas,
fazendo dos originais de algumas dessas línguas para português,
magníficas versões rimadas!
Voltou ao Brasil, mas como a clínica já não lhe oferecia incógnitas
ou segredos que atraíssem o seu infatigável espírito investigador,
abandonou-a. |
|
O
antropologista Ferraz de Macedo |
Cultíssimo em ciências naturais, tendo estudado o homem, através do
tempo e do espaço, em todos os seus aspectos, engrenagens e minudências,
dissecando-o, analisando-o; e, como médico, estudado o homem doente, foi
segui-lo e estudá-lo nas suas relações maléficas com a sociedade.
Assim se entregou ao estudo perseverante e profundo da antropologia e
criminologia. A antropologia era então uma ciência incipiente na sua
pátria, e até na Península. FERRAZ DE MACEDO, pelas medições e
observação de todos os crânios e mais ossos humanos pré-históricos e
contemporâneos possíveis, fundou, em Portugal, a antropologia positiva e
aplicada, desenvolveu-a, enriqueceu-a com as suas inumeráveis investigações, à
sua custa, unicamente animado pelo grande amor à ciência e à sua pátria,
sem outra recompensa a não ser a ingratidão e o
desdém do mundo oficial!
/
252 / Querendo conhecer a fundo e tornar conhecida a raça a que pertencia,
estudou-a nas suas origens naturais, fazendo-nos incluir em o número dos
poucos povos que têm uma ciência própria, porque nenhuma outra ciência
tem em Portugal os foros de originalidade, como a antropologia com que
FERRAZ DE
MACEDO dotou o seu país. Provou à evidência que a forma do crânio, por
ser dolicocéfala ou braquicéfala (alongada ou redonda) absolutamente
nada tem com o desenvolvimento ou evolução intelectual duma raça,
destruindo por completo a ideia, até ali assente na ciência, de que os dolicocéfalos representavam,
intelectualmente, um grau inferior aos braquicéfalos. Essa forma de
cabeça, alongada ou redonda, obedece sim à forma do tronco com que mantêm verdadeira solidariedade geométrica e fisiológica, ou
harmonia segmentar. É isto que, na opinião das melhores autoridades
da Europa nestes assuntos, o sábio antropologista português provou no
seu precioso livro: «Crime et criminel».
Só por este facto é considerado pelo mundo sábio um benemérito da
Península, sobretudo pela sua pátria, porque, sendo nós todos
dolicocéfalos, éramos considerados, à priori, uma raça intelectualmente
inferior.
Prosseguindo, com perseverança rara, os estudos antropológicos, nas
cadeias, nos hospitais, nas penitenciárias, nas casas de correcção...
publicou livros, que levaram as sumidades estrangeiras a considerar
FERRAZ DE MACEDO ilustre entre os mais ilustres, sábio entre os mais sábios. Pode dizer-se que o meu
biografado veio, com o seu profundo estudo e observações aos milhares,
fazer uma revolução na ciência antropológica, abalando reputações
consagradas no mundo científico.
A QUATREFAGES obrigou o grande aveirense a admitir a existência do homem
terciário, Provou, ou melhor, sustentou que a raça céltica era terciária
e autóctona da Europa. A célebre
escola criminológica de CÉSAR LOMBROSO foi pelo nosso compatriota reduzida a proporções mínimas, estabelecendo a
este respeito
proposições e teorias aceites pelo maior número dos antropologistas e
até pelo próprio LOMBROSO.
Nas imensas viagens que FERRAZ fez ao estrangeiro, sempre à sua custa,
eram mais os esclarecimentos e as luzes que ele fornecia aos colegas com
os quais cientificamente convivia, e nos congressos a que assistia, do
que aquilo que deles colhia.
Quando FERRAZ, em 1889, vindo da Suíça, estava de passagem
em Paris, os membros do congresso de antropologia, ali reunidos,
solicitaram-lhe a sua assistência ao congresso, para o ouvir sobre um
pequeno trabalho que acabara de fazer em Lisboa
−
«De l'encéphale
humain avec et sans commissure grise.» Tomando a palavra MANOUVRIER, o
ilustre sucessor e aperfeiçoador das doutrinas de BROCA, disse do nosso
compatriota:
«Conheço pessoalmente o autor; é um homem conscienciosíssimo,
/
253 /
um pesquisador infatigável, dotado de notável tenacidade e
instruidíssimo...»
Foi tal a clareza e brilhantismo com que FERRAZ expôs
ao congresso esse trabalho e suas conclusões, que mereceu unânimes e
calorosos elogios dos membros do congresso de todos os países, que logo
o nomearam membro duma comissão encarregada da organização dum novo
congresso internacional. Nesse congresso, reunido em Bruxelas em 1892,
apresentou o seu livro
− «Crime et criminel».
Neste livro, considerado a obra de maior fôlego do congresso,
demonstrou
o autor, com provas irrefutáveis e notável rigor científico,
− que o
criminoso não difere do homem normal na morfologia macroscópica, como
pretendia LOMBROSO, mas sim na contextura íntima, celular, histoquímica,
e consequentemente, nas suas acções fisiólogo-psíquicas, desarranjo ou
desarmonia psíquica, ferindo assim de morte, pulverizando-as, as teorias
de LOMBROSO
− sábio italiano.
Não fica por aqui a sua glória que é também glória da nação e, portanto, glória máxima do distrito de Aveiro.
Vou referir, apenas, alguns dos seus trabalhos:
−
Quadros antropométricos
−
Quadros da capacidade craniana em 3 classes de indivíduos contemporâneos
−
Lusitanos e
romanos
−
Quadro comparativo entre 965 mandíbulas de normais,
assassinos, ladrões e escrocs, mostrando não haver diferença entre uns e
outros, e serem também a este respeito falsas as ideias de Lombroso.
−
Do
encéfalo humano, síntese de 240 observações, em que se mostra que a
falta dum órgão encefálico conduz um indivíduo ao desequilíbrio.
−
Commissura cinzenta e suas consequências nos indivíduos em que ela
falta
−
Antropometria do homem terciário, comunicação ao congresso de
Arqueologia e Antropologia pré-históricas, de Paris
−
Estudo da
prostituição em geral
−
O homem quaternário e as civilizações pré-históricas na América.
−
Quadro das suturas cranianas
− Notas sobre algumas anomalias cranianas
numa série de mil crânios portugueses contemporâneos.
−
Etnogenia brasílica.
−
Mapa sintético-físico-intelecto-moral, dos habitantes dos
países que percorreu...
Nas revistas e obras mais importantes dessa época era ele
citado pelos maiores sabedores antropologistas.
Nos seus últimos anos dirigiu, em Lisboa, a «Galeria dos Criminosos
Célebres», publicando aí soberbos artigos da especialidade.
FERRAZ DE MACEDO não foi só um grande homem de ciência, ou melhor, um
grande homem de todas as ciências. Foi também um poliglota, um literato
e um inexcedível patriota.
Em abono do que afirmo, entre outros, recordo os
seguintes
/
254 /
trabalhos literários:
−
Sonetos satíricos, filosóficos e
descritivos.
−
Sem título
− tradução do russo para verso português.
Tempo
perdido, tradução do grego.
−
Arte de música.
−
A Vida.
−
A Arte
−
A
Agricultura.
−
Indústria e Comércio.
−
Desabafo
patriótico pelo tricentenário de Camões no Rio de Janeiro.
Como é sabido, TEÓFILO BRAGA reconstituíu o «Cancioneiro Português da Vaticana», obra de altíssimo valor histórico. TEÓFILO não tinha dinheiro
para publicar esse tr:abalho de que ANTERO disse ser a melhor obra de
TEÓFILO. Este recorreu à Academia Real das Ciências e depois ao governo do seu país.
Nada conseguiu!
Esta importantíssima obra ficava condenada ao abandono
e ao apodrecimento!
Sabedor disto, FERRAZ DE MACEDO, conhecendo a importância nacional
daquele trabalho, ordenou a imediata publicação à sua custa, impondo a
TEÓFILO BRAGA a condição de não divulgar o seu nome!
No dia do tricentenário de Camões, FERRAZ DE MACEDO fez expedir do Rio
de Janeiro exemplares para todas as bibliotecas do mundo. TEÓFILO,
referindo-se a este facto, disse:
−«A
publicação do «Cancioneiro da Vaticana» deve-se exclusivamente ao
grande patriotismo do dr. Ferraz de Macedo; os que estudam,
conhecerão o valor desse trabalho e desse gesto, Ferraz de Macedo fez ao
seu país o que uma Academia e um governo não foram capazes de fazer...»
Agora pergunto: Há alguém que se julgue ter elevado e nobilitado mais,
ou tanto, o nome português perante o mundo científico, e prestado tantos
serviços à sua pátria, à sua raça e aos progressos do saber humano,
sempre à sua custa? No entanto, até 1898, passava desapercebido em
Portugal! Não era político, não era um cacique, e, por sinal, nunca
sequer tinha usado do seu direito de votar. Só um homem público do seu
país tinha dado a F. DE M\CEDO um esboço de prova de consideração. Foi o
conselheiro ANTÓNIO DE AZEVEDO, que, quando Ministro da Justiça, se
honrou e honrou o seu país, nomeando-o representante do governo
português ao Congresso Internacional de Antropologia em Genebra. ANTÓNIO
DE AZEVEDO era um dos
homens que, quando Director da Penitenciária, pelos estudos especiais e
observações que ali viu fazer e pelo convívio com ele, sabia quanto
valia o nosso sábio compatriota.
O
Dr. FERRAZ DE MACEDO nutria a monomania patriótica. Tinha a paixão de
legar ao seu país a aplicação prática dos seus trabalhos sobre
antropologia criminal. Para isso desejava que o Estado criasse um
organismo, um instituto, onde, proveitosamente, pudesse continuar os
seus trabalhos, ensiná-los, aplicá-los e até depositar a base material e
positiva da sua grande obra
−
milhares de crânios e ossos humanos,
portugueses, observados, estudados, classificados, donde deduziu, com
firmeza, as
/ 255 / suas teorias. Pretendia dotar o seu país com uma ciência essencialmente portuguesa, criada
e desenvolvida por ele em observações e
estudo em materiais pátrios. Esses materiais ou elementos,
− crânios e
ossos, a que ele chamava a sua grande fortuna, tinha-os no sótão da sua
residência, uma riqueza científica, cercada e oculta pelo abismo da
ignorância dum povo, pela indiferença e desdém do elemento burocrata e
até do próprio Estado!
Daí o pensamento generoso e patriótico, que teve o «Gabinete dos Reporters» de divulgar e impor os seus méritos, por intermédio do artigo
que me pediu, do qual extraio a maior parte destes elementos, como atrás
declarei. Esse artigo, ao serviço da justiça e da pátria, saiu e caiu
bem.
O ilustre escritor e jornalista TEIXEIRA BASTOS, ao tempo redactor
principal do "Século" (Julho de 1898) fê-lo transcrever, quase na íntegra,
na primeira página daquele importante jornal, e ALBANO DE MELO, amigo e
patrício de FERRAZ, na «Soberania do Povo...»
Formou-se assim, perante as regiões oficiais, um ambiente de alta
competência sobre os méritos científicos de FERRAZ DE MACEDO nas regiões
governamentais.
Começou a falar-se na criação dum Instituto de identificação
criminológica, que era o sonho dourado de FERRAZ, e nomeá-lo seu
director. Pouco tempo depois era presidente do conselho HINTZE RIBEIRO,
seu secretário o ilustre académico e escritor, D. ALBERTO BRAMÃO, que
era também director do jornal oficioso "A Tarde". Pede-me este um artigo
para o seu jornal, mostrando e explicando as vantagens da criação do
referido Instituto.
A identificação dos criminosos é uma necessidade imposta pelos
progressos da ciência moderna e pelo imperioso dever de aplicar
preciosos elementos de estudo a enfermidades sociais, a proteger e
cercar de garantias o equilíbrio ou harmonia sociológica, ou sejam os
direitos, haveres, tranquilidade e vida dos cidadãos. De todas as
enfermidades que afligem e torturam o organismo social, é a
criminalidade a mais odiosa, porque constitui uma infracção e atentado
às leis civis e às leis da natureza humana. Para combatê-la, com
critério e êxito, forçoso é conhecer-se a natureza do agente do crime, a
intensidade deste e a qualidade do correctivo ou o destino a dar-lhe,
para impedir a possibilidade de iludir a justiça, e possuir meios
seguros de imediatamente descobrir o delinquente aos olhos dela. Requer
muito saber, experiência e precisão a prática da investigação dum
criminoso.
Basta dizer que, tendo este, no Arquivo criminológico, o seu registo
sinalético, pode ser telegrafado para qualquer parte do país ou do
mundo, para onde o respectivo criminoso se evadir, a fim de escapar à
acção da justiça, que imediatamente é reconhecido.
Este processo de identificação tem hoje muita importância sociológica e
é usado em quase, todos os países.
/
256
/
Destas singelas palavras deduz-se o elevado alcance da criação do
instituto de identificação criminal e quanto escrúpulo e consciência é
preciso haver na escolha do indivíduo encarregado de dar corpo e alma a
essa instituição.
A HINTZE RIBEIRO coube a honra de decretar a criação do desejado
instituto e pôr à sua frente, embora já tarde e quase no fim da vida, o
grande sábio dr. FRANCISCO FERRAZ DE MACEDO, redimindo a nação da
vergonha de, até ali, não ter ainda prestado a homenagem devida a esse
grande homem de todas as ciências, ao poliglota inigualável, ao
benemérito e patriota insigne,
− glória máxima do Distrito de Aveiro.
Angeja.
RICARDO SOUTO
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