Criação da vontade humana em sua tarefa de adaptar-se às condições do
meio físico, mais do que uma consequência necessária destas últimas, as
circunscrições administrativas apresentam quase sempre uma
heterogeneidade bem pronunciada de aspectos geográficos, reunindo
parcelas de diversas regiões naturais.
O distrito de Aveiro está precisamente nestas circunstâncias. Com uma
grande variedade de constituição geológica
−
que vai desde os terrenos graníticos, arcaicos e precâmbricos do
interior, com suas importantes assentadas de quartzito, até aos terrenos
triássicos, cretácicos, pliocénicos e modernos do litoral
−
não menos variadas se revelam também as suas condições hipsométricas e
orográficas. É serra e é litoral: desce das zonas de
relevo interiores, dos contrafortes montanhosos da Freita, Arestal,
Talhadas, Caramulo e Buçaco até às zonas baixas da beira-mar, debruadas
por compacta faixa de areias. Começa ao Norte no Douro, para vir morrer
ao Sul quase nos campos do Mondego; e em toda essa extensão os seus
aspectos variam consideravelmente.
Corta-o ao meio o rio Vouga: curso de água que muitos autores têm
reputado importante barreira física e humana.
Considerou-o o geólogo PAUL CHOFFAT como limite meridional dos
relevos que ao Norte do país formam, com os da Galiza, uma unidade bem
destacada da geomorfologia peninsular
−
o Maciço Galaico-Duriense.
Apontou-o ANTÓNIO ARROIO como constituindo o limite etnográfico
entre a zona portuguesa setentrional, onde as diversões populares são
caracteristicamente representadas pelas romarias, e a zona meridional,
onde predominam sobretudo as touradas.
Considerou-o ainda mais recentemente o Sr. Dr. JAIME LIMA como
assinalando a zona onde se puseram em contacto as invasões marítimas do
Norte e as invasões marítimas do Sul, que povoaram a costa.
As próprias invasões efectuadas por via terrestre, vindas
/ 10 /
tanto pelos Pirenéus como pelo estreito de Gibraltar, ter-se-iam também
encontrado junto do rio Vouga, no território que mais tarde veio a
pertencer ao nosso país.
Por isso ALBERTO SAMPAIO considerava este rio como o verdadeiro
limite entre o Portugal do Norte e o Portugal do Sul; e não faltará
mesmo quem, tendo em vista pôr mais em destaque a importância do Vouga
como linha de separação, venha aduzir factos da nossa história
contemporânea, colhidos nas dissenções políticas por vezes existentes
entre o Porto e Lisboa.
Não há que contestar, é certo, o importante papel desempenhado pelos
nossos rios como' linhas estratégicas e limites políticos nas sucessivas
etapas por que foi passando o engrandecimento territorial do organismo
político português.
Mas há, entretanto, que reconhecer como a laguna ou esteira, ainda hoje
com os seus 47 quilómetros de comprido, sobreleva em importância
atractiva o próprio curso de água que nela desemboca: a Ria
(impropriamente chamada) contribui assim para unir o que o rio, pelas
suas fracas condições de navegabilidade e pelas suas inundações
frequentes, teimava em separar!
É o que pode concluir-se pelo exame das condições demográficas
regionais.
|
A análise dos mais importantes centros povoados pode levar-nos a
estabelecer as seguintes leis gerais da sua distribuição, tomando como
base os recentes dados estatísticos: a população, que por completo evita
as areias do litoral, é tanto mais densa quanto mais se aproxima da
laguna, e junto desta se encontram todos os núcleos superiores a 2.000
habitantes; à medida que dela nos afastamos em qualquer direcção, o
povoamento diminui e o habitat rural dispersa-se; nos terrenos
alagadiços situados junto do Vouga e do seu afluente Águeda, o habitat
concentrado é todavia regra geral, predominando nesta zona os núcleos de
população compreendida entre 1.000 e 2.000 habitantes; caminhando para o
interior, apenas os três centros de Águeda, Albergaria e Oliveira de
Azeméis marcam uma zona de povoamento mais denso e mais antigo,
correspondente à tradicional zona de passagem já seguida desde a época
romana.
|
Principais centros de
população da zona litoral e seu rebordo montanhoso. Para ver o mapa
em resolução elevada, clicar na imagem (pág. 11) |
É curioso verificar que o Vouga, o Águeda e os pequenos cursos de água
que desaguam na Ria se apresentam como raios de um círculo que nela
tivesse o seu centro. A atracção que sofreram as águas deve ter sido a
mesma que experimentaram as populações no seu movimento. histórico; e
essa atracção veio sem dúvida alguma aumentar o efectivo humano que
chegara por via marítima e j unto da antiga reentrância da costa se
estabelecera desde tempos muito remotos.
À
medida que se avança para o interior, o relevo do solo, em degraus
sucessivos, impõe agora os seus direitos: a população rareia e quase
desaparece por completo, especialmente naquelas
/ 12 /
zonas onde os terrenos xistosos, menos abundantes em água, contribuem em
grande parte para o mesmo resultado: na carta demográfica, como na carta
hipsométrica, fica assim bem marcado o crescente de vastas planícies que
constitui no país uma das subdivisões mais típicas
−
a Marinha ou Beira-mar, se assim quisermos chamar-lhe, como lhe
chamou também há pouco MAX. SORRE na descrição de Portugal da
grande Géographie Universelle. E devemos acentuar com
desvanecimento que esta região deu pretexto ao autor para uma das
páginas de mais vivo colorido, nesse estudo que, sou certos aspectos, se
ressente da falta de um conhecimento mais directo das questões
geográficas do nosso território.
E o distrito de Aveiro? Este, ao fixar os seus limites, procurou, como
convinha, associar no espaço que em boa justiça devia caber a uma
circunscrição administrativa da sua categoria, o maior número de
vantagens de ordem natural e possibilidades de futuro desenvolvimento.
Comecemos do centro para a periferia.
Coração do distrito, ponto de atracção e núcleo polarizador de todas as
suas actividades económicas
−
é a foz do Vouga, é a Ria: zona de terrenos alagadiços, da cultura do
arroz, da exploração do sal, do moliço e da pesca; zona de denso
povoamento e até mesmo de povoamento anfíbio, a que a imagem platónica,
segundo a qual o Mediterrâneo constituiria a condição geográfica de um
aglomerado humano semelhante a «rãs em volta de um charco» poderia
aplicar-se, se não com apurado gosto, pelo menos com grande propriedade
de expressão.
Apresenta esse povoamento características especiais, não devidas
certamente a determinada influência étnica, fenícia ou helénica,
conforme alguns autores têm imaginado, mas antes à mistura dos mais
variados elementos raciais, nesta zona costeira tão acessível a todos os
povos marítimos e colonizadores; e revela excepcionais qualidades de
resistência, desenvolvidas na constante luta com o mar e com a terra,
nos pontos em que ela se mostra menos própria para a agricultura. A
dureza da vida temperou as energias do homem: é ver, por exemplo, a
disputa travada entre os ílhavos e os ribatejanos, nas Viagens na
minha terra de GARRETT.
Em tais condições, toda esta zona se mostra susceptível de uma variada
produção agrícola, tendo ainda nas actividades marítimas e lagunares uma
boa parte dos seus horizontes de trabalho, porque o lavrador é ali
também pescador; e como trabalho e fecundidade andam geralmente
associados, neste particular teremos ainda uma das grandes razões da
maior densidade do seu capital humano. Pertencem-lhe os concelhos de
Ovar, Estarreja, Murtosa, Aveiro, Ílhavo e Vagos.
A esta zona havia que acrescentar a Ribeira do Vouga, pois a ela se liga
directamente e por ela se estabelecem as relações
/ 13 /
com o interior. Terras de milho, pastagens e gado bovino, a pegarem já
com a serra: são os concelhos de Albergaria-a-Velha, Sever do Vouga e
Águeda.
A toponímia local pode ajudar-nos a estabelecer os limites das duas
sub-regiões. O complemento de Ribeira que alguns nomes de lugares
apresentam, como, por exemplo, Óis da Ribeira (em contraposição
com Óis do Bairro), mostra-nos que a separação entre elas não
deve andar muito longe da Pateira de Fermentelos.
Pela parte setentrional, e confundidas de alguma forma com esta última
zona, ficam as sub-regiões de Cambra e de Paiva, de características tão
semelhantes, apesar de pertencentes a bacias hidrográficas distintas.
Zona de relevo, inculta em grande parte, mas cortada de vales férteis, a
cultura do milho, que vai desde as feracíssimas várzeas de S. João da
Madeira até ao planalto agreste de Albergaria das Cabras, associa-se
nela à criação de gados, dando origem a uma larga produção de manteiga.
São os concelhos de Castelo de Paiva, Arouca, Vila da Feira, S. João da
Madeira, Oliveira de Azeméis e Vale de Cambra.
Ao Sul, a Ribeira do Vouga estabelece uma transição quase
insensível para a sub-região bairresa, especialmente caracterizada pela
cultura da vinha e da oliveira. A ela pertencem os concelhos de Oliveira
do Bairro, Anadia e Mealhada; e dentro dela se põe em contacto o
distrito de Aveiro com o distrito de Coimbra, ao qual pertence ainda uma
parte do concelho de Cantanhede.
Pode dizer-se que a Bairrada corresponde mais ou menos à bacia do
Cértoma
−
curso de água que nasce na serra do Buçaco e vai lançar-se no rio
Águeda. MIGUEL RIBEIRO DE VASCONCELOS, na sua Notícia
histórica do mosteiro da Vacariça, afirma que ela se estende entre
aquela serra e o mar; é certo, porém, que uma outra subdivisão natural
pode distinguir-se a Ocidente, à qual o vulgo aplica o nome de
Gândara. É a zona que na Carta Geológica fica evidenciada pela
mancha de terrenos pliocénicos que se estende em face dos médos de areia
do litoral, entre a serra de Buarcos e o curso inferior do Vouga.
No ponto de vista geográfico, a Bairrada distingue-se pelas suas formas
atenuadas de relevo; mas especialmente, como fica dito, pelas suas
culturas, que dão à paisagem uma fisionomia especial.
A cultura da vinha, dando origem a um tipo especial de vinhos maduros, é
a mais característica forma de ocupação do solo. E os extensos vinhedos
da sub-região bairresa, de cepas baixas, geometricamente dispostas umas
em relação às outras, não se confundem também com as latadas de pequena
altura dispostas no meio de terrenos dedicados a outras culturas, como
se verifica na zona situada mais ao N., junto do Vouga e do Águeda, onde
nos aparece também um tipo de vinhos sensivelmente diverso.
/
14 /
A cultura dos olivais merece também apontar-se, como uma das mais
importantes; e a cultura cerealífera e a das árvores frutíferas
demonstram ainda o acentuado polimorfismo agrícola dessa região,
corolário imediato da grande variedade de elementos que constituem o seu
solo.
Convirá talvez esclarecer que a palavra Bairrada significa
«conjunto de bairros» tomando o termo bairro (antigo barrio) não
na acepção usual de «povoação ou parte de uma povoação», mas no sentido,
que lhe dá a linguagem popular, de terreno argiloso sobretudo próprio
para a cultura cerealífera. Da abundância desses terrenos na região lhe
adveio o nome; e foi a aptidão cultural indicada que serviu de pretexto
ao Marquês de Pombal para mandar arrancar todas as vinhas dessa região,
por que ela é de facto, como escreveu o já citado RIBEIRO DE
VASCONCELOS, «terreno fecundo e abundante de tudo o preciso para a
vida e regalo do homem».
Na zona vizinha do litoral, a constituição dos terrenos continua
uniforme na sua considerável variedade, e nela se confundem também as
características da Ria com as da sua região gandaresa, por forma que bem
difícil se tornará marcar nesta zona um bom limite geográfico. Mas
deixou de sentir-se a atracção da laguna, menos denso é o revestimento
humano regional, e outro também o modo de vida da população, sempre mais
presa à terra: e se a divisão administrativa está longe de corresponder
a esta mudança de características antropogeográficas, não deixa, no
entanto, de até certo ponto a testemunhar.
Coimbra, Março de 1935.
A. DE AMORIM GIRÃO
|