O regionalismo do nosso tempo, tal qual o nacionalismo seu parceiro por
identidade de impulsos íntimos e coincidência de formas externas, ambos
rematando numa mesma compleição estética e moral, fortalecida pela
paridade de pensamento e afeição intelectual − o regionalismo actual, em
seus termos de lucidez e graça e por efeito de sua magia recôndita,
convence-nos e comove-nos e de contínuo e vivamente nos chama a servi-lo
−
este regionalismo e nacionalismo, entenda-se bem, que é amizade e
cooperação com os seus irmãos de todas as latitudes, respeito mútuo e
mútua generosidade e pela generosidade se distinguindo daquele outro
regionalismo traiçoeiro que a cada passo compromete a alegria e a
fortuna dos povos, ambicioso, ávido, agressivo, orgulhoso e xenófobo,
uma doença que desvaira o carácter dos homens precipitados nas
convulsões da aversão ao vizinho, mascarada do amor da pátria.
Esse regionalismo primitivo, facilmente cruel, se em dias bárbaros se
afirmou, moveu e operou como realidade criadora entre cegos
arrebatamentos de turvas pelejas egoístas, hoje emendou-se; purificado e
disciplinado, converteu-se piedosamente à bondade instruída pela razão e
seu conselho e lei, inflamada e incensada pelos alentos de um sacerdócio
ao qual só a dedicação segreda, os seus ritos e ensina as suas orações,
enquanto com êxito brilhante o induz na arte de criar e disseminar a
beleza. O que foi uma livre propensão, caprichosamente escolhendo o seu
caminho e praticando os seus feitos, não raro miraculosos, posto que nem
sempre isentos de cobiças vulgares e de avareza, tornou-se agora devoção
reflectida, regrada, e entretanto cândida. Tão activa como liberal, para
a expressão das suas graças e para a multiplicação dos seus benefícios
tanto confia na simpatia recíproca, como aborrece e teme o apartamento e
o perigo de dissensões, rivalidades e acres disputas.
Neste novo rumo da actividade do nosso espírito, empenhado em bem servir
a fé e o coração, o nosso tempo exige-nos a consciência clara e
minuciosa da beleza e virtude da alma e
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das cousas que se criaram nos lugares que nós amamos porque nos foram
berço e nos sustentam e abrigam e nos dão contentamento, e também e
imediatamente, essa mesma força e o seu império afeiçoam-nos por
gratidão àqueles lugares que unicamente de passagem vimos, habitámos e
contemplámos, em jornada, quando eles abriram ao peregrino os seus
caminhos e o sentaram à mesa do lar hospitaleiro. Uma vida ingénua,
inteiramente à lei da natureza, podia preencher-se e satisfazer-se com o
deleite descuidado e as presas rudes que a terra e quanto a constitui e
a povoa, enriquece e adorna, nos oferece à imaginação e aos sentidos, ao
sangue palpitante e à poesia; a vida ingénua não nos pedia mais que
simples faculdades de moderada apreensão e discreto enlevo. Mas o estado
de razão e cultura intensa que a nossa época atingiu, desenvolvendo,
acentuando, e complicando as formações psicológicas de muitos séculos
que nos educaram e adestraram os sentidos e o espírito e lhes dilataram
seus horizontes, o estado de razão e cultura, que é o nosso, reclama da
nossa atenção e inteligência que para bem produzir completemos pelo
conhecimento erudito, meditado, os impulsos da singeleza instintiva. Não
o dispensa nem pode dispensá-lo; rigorosamente o demanda em toda a
extensão, expansão e modos do nosso ser, e assim, porque é comum e sem
excepção, obrigado o torna, sempre que por nossas cogitações e nossas
obras houvermos de pagar capazmente o que devemos à nossa terra e às
gerações que a afeiçoaram ao seu pensamento e vontade, e a usufruíram e
pelo exemplo nos ensinaram a afeiçoá-la e usufruí-la. Quando houvermos
de consagrar a nossa oferenda ao seu legado e glória, enquanto elas
copiosamente nos retribuem o fervor e o zelo, prodigalizando-nos
inefáveis confortos de formosura, agasalho e pão, a ingenuidade terá de
ceder à consciência e proceder de harmonia com o seu instruído aviso.
Esta condição de consciência, razão e saber a que o regionalismo se
ergue têm, porém, seu instrumento próprio; e importa empregá-lo e
reconhecer-lhe a eficácia, se como bons filhos quisermos ser fiéis à
divindade da nossa crença e do nosso culto.
Então, porque esse regionalismo é não só um facto de atracções
subconscientes, mas também uma lição da experiência, será nos seus
vestígios tangíveis, nas suas relíquias de qualquer espécie que elas
sejam, será no estudo das suas obras e acções que teremos de procurar e
esclarecer e fortificar o nosso conhecimento do seu carácter, e sua
constituição e as necessidades correlativas, o seu passado, as suas
aspirações, os frutos criados e as promessas de nova colheita, cada vez
mais abundante e mais nutritiva e saborosa. Nem por outra via e menor
preço conseguiremos fortalecer o regionalismo com a assistência aturada
de uma consciência que o ordene e guie,
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fora da qual perderá sua qualidade de princípio vital, para se dissolver
em nebuloso e inconsistente devaneio ou se quedar estéril em mero
comércio de empoeiradas curiosidades.
Eis que agora as relíquias vivem, aquecem e iluminam como a luz de uma
alâmpada imperecível, e dos seus jazigos se desentranha uma insondável
profusão de riquezas. As antas denegridas dos invernos como os sacrários
recatados, irisados pelo vitral da rosácea; as colunas do mercado
alpendrado, ermidas das cumeadas da serra, fontes e prados, ribeiros e
alcantis; a cor dos olhos e a dos cabelos e a tez do rosto; aves e
feras, cantares de amor, temor dos monstros, sorrir de fadas,
campanários, palácios e florestas; e as rosas do silvado e a igreja e a
oficina − tudo nos é clamor sublime da torrente vital em que a
aproximação das relíquias nos envolve e por mistério de funda simpatia
nos renova as forças do ânimo e dos braços criadores. Uma palavra, um
traço rasgado na penedia, uma árvore, um punhado de cinzas; o carril do
rodado na montanha, como o livro de sapiência do monge que dos enganos
do mundo se refugiou no claustro; quanto as mãos dos homens tocaram e os
seus olhos avistaram e os seus ouvidos ouviram; uma sombra, um rumor e o
barro dócil: − em tudo se contêm fragmentos da nossa alma e da alma
cósmica, tudo desfere a voz do Criador e da Criação, tudo repete
ensinamentos, conselho e exemplo, tudo nos descerra horizontes infindos
de beleza, e nos é poder miraculoso de renascimento, nas formas
passageiras, nos mostrando e nos mandando a traduzir a eternidade e com
a eternidade nos unindo e exaltando e glorificando.
S. Francisco de Assis, segundo CELANO, queria que «onde quer que
achássemos algum escrito divino ou humano, na estrada, em casa ou no
chão, aí o apanhássemos com a maior reverência e o puséssemos em lugar
sagrado ou decente, caso lá estivesse traçado o nome do Senhor ou
qualquer cousa que lhe pertencesse. E um dia, quando um dos irmãos lhe
perguntava por que era que ele com tão grande diligência apanhava até os
escritos dos pagãos e outros nos quais não se lia o nome do Senhor, o
Santo respondeu: − «Meu filho, é porque estão ali as letras com que se
compõe o muito glorioso nome do Senhor Deus. Por conseguinte, o bem que
no escrito está pertence não apenas aos pagãos ou a qualquer homem, mas
só a Deus, de quem é todo o bem.» E, o que não é menos de admirar,
quando o Santo mandava escrever quaisquer cartas de saudação ou
admonição, não consentia que nem uma só letra ou sílaba fosse riscada,
mesmo ainda que (como muitas vezes acontecia) fosse supérflua ou
estivesse mal colocada.»
Ampliemos a advertência da inspiração do Santo; ponhamos «Vida», onde
ele disse «Senhor», e sem tardar divisaremos nas relíquias e nos mais
pequeninos factos da existência dos homens e da sua habitação e ambiente
o alfabeto com que se / 8 / escreveu e escreve a epopeia infinda da
nossa alma, e depressa aprenderemos a prestar-lhes a reverência que as
procura para as volver em religião e pela sua irradiação iluminar o
espírito e determinar a acção.
Três homens na plenitude de uma viril robustez, de provados talentos e
legítima autoridade conquistada pela perseverança e firmeza da.
honestidade e êxito de infatigável estudo vêm hoje a praticar
piedosamente esta religião, fundando o «Arquivo do Distrito de Aveiro» e
destinando-o a colher e interpretar inteligentemente, não só as
relíquias mais antigas da vida desta região e do seu palpitar, como os
sinais actuais do seu ser que lhe definem o carácter e verdadeiramente a
personificam. Longa e árdua será a meritória jornada, que demanda um
esforço poderoso daqueles mestres professos; e, pois que a sua dedicação
é nobre e para vencer necessita um cerrado feixe de diversas e complexas
forças, por suas virtudes obriga a coadjuvação de todos quantos amam a
pátria, a pátria pequenina, a do seu torrão, como a maior, a que se
expandiu e enraizou por todas as latitudes. Essa coadjuvação devemos por
honra própria. Não hesitemos em cumprir, e a fidelidade nos será paga
copiosamente, identificando-nos com a dignidade dos iniciadores e
sacerdotes e apóstolos que nos convidam a orar em seus altares.
Eixo, Fevereiro de 1935
JAIME DE MAGALHÃES LIMA
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