CHICO, O
CAÇADOR
Conto alentejano do DR. VIRGÍLIO PASSOS
Em Odemira, povoação alentejana nas vésperas da abertura da caça, a
vida toma um movimento desusado.
Durante o dia, os caçadores fazem as suas provisões de
pólvora e chumbo.
A tarde, formam-se grupos na Praça
Nova, junto do chafariz, à porta das farmácias e defronte dos Paços do
Concelho. Fala-se com entusiasmo; animadamente e, em particular,
combinam-se as voltas e a hora do encontro.
Os perdigueiros parecem pressentir a chegada do grande dia; percorrem as
ruas açudados e nervosos receando perder os donos.
À noite, no café, e em todas as mesas se fala da caça; os que não são
caçadores ouvem as conversas com interesse e com pena de não serem
aficionados. Recordam-se proezas das épocas venatórias passadas e, no
intimo dos caçadores mais novos, há uma confiante esperança de se
equipararem aos melhores da região. Escolhem-se os companheiros e
fala-se baixinho do sitio onde há mais perdizes. A partida marca-se para
antes do romper da alva, não vão os outros confrades antecipar-se e
estragar a volta.
No relógio da torre soam as cinco horas. Claridades de velas e
candeeiros
começam a luzir por entre as frestas
das janelas. Na vila a luz eléctrica há muito se apagou. De novo vibram
as cinco badaladas; o relógio da torre serve de despertador.
Na rua já se ouvem as botas cardadas de algum caçador que passa e o
ladrar dos cães.
Uma grande humidade vinda de rio regeIa os ossos.
Ao passar a ponte, vê-se o rio empenachado de neblina, de águas mortas
e cinzentas, que serpenteiam por entre as montanhas.
Nas curvas da estrada, ressoam pesados passos de caçadores que vão na dianteira e, de quando em quando,
assobios cortam os ares, chamando os cães.
Sobe-se a estrada e, por cima da cortina de névoa densa e rasteira que
cobre o rio, começa a vislumbrar-se a
luz do dia; está próximo o romper da manhã.
Uma luz suave, que brevemente se tornará rosada, vinda do oriente,
aquece o ambiente e permite distinguir as árvores e identificar os
companheiros.
Dos grupos que já passaram, uns deixam a estrada para a esquerda outros
para a direita. Há caçadores que seguem ainda até ao alto da charneca;
vão uns para o «Espargal» e «Bemparece», outros para o «Montinho dos
Alhos».
Os mais madrugadores chegam ao sitio de começar caçar antes do romper
do dia e têm de esperar que se comece a distinguir os acidentes do
terreno. Distribuem-se então em linha, distanciados trinta ou quarenta
metros. Os caçadores avançam. Ouvem-se os voos de perdizes. Soam os
primeiros tiros.
Pouco depois, ainda o dia vem rompendo,
recomeça o tiroteio noutra
chapada distante. E outra linha que iniciou a sua faina.
A alegria encoraja os atiradores; o dia promete ser fértil em caça.
Na linha em que o Chico do Alto ia à ponta direita, os primeiros tiros
que se fizeram foi a uma lebre, que levantou na ponta esquerda.
A falta de luz permitiu-lhe uma fuga rápida, mas foi
acossada pelos cães
e recebeu uma salva de quatro tiros.
Noutra encosta levantou-se um bando de
perdizes. O tiroteio recomeçava,
atroando os ares, reboava pelos montes até perder-se no espaço.
O Chico fez uma carambola, matou duas perdizes duma só vez. Voltou-se
para uma derrubou-a, virou-se para outra fê-la arrepiar tanto, que
parecia ir direito ao céu.
*
* *
O Chico do alto é um rapagão vigoroso e magro, ágil como um gamo,
olhar penetrante e azougado. Ganha a vida a caçar durante a época
venatória. No defesa entrega-se ao amanho duma courela que traz de
renda. O pai, também alentejano, tinha fama entre os caçadores do seu
tempo.
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Nas suas caçadas o Chico mais dois ou três companheiros percorrem
dezenas de quilómetros, mas o Chico fica sempre na ponta mais
trabalhosa. É ele quem dirige a volta.
Tem um faro danado para dar com as perdizes. De tiro rápido e certeiro,
são poucas as peças que lhe escapam. Se alguma fica ferida de asa, e o
cão não a encontra, é o Chico quem corre e lhe segue o rasto. Lebre que
se levante ao alcance da espingarda, cai redonda.
À hora do almoço tem já mais de
uma dezena de peças e, no fim do dia, aparece na vila com um belo cinto
ornamentado de duas ou três dezenas de cabeças penduradas.
Dá gosto vê-lo, todo vaidoso com a sua carga. Homens, mulheres e garotos
vêm às portas aos gritos de:
– Ai vem o Chico caçador!
Orgulham-se ao dar-lhe de vaia e
perguntam-lhe os mais íntimos:
– Então, hoje, quantas caíram, Chico?
Ele, entre ufano e vaidoso, com um
sorriso a bailar-lhe nos lábios:
– Foram só vinte e seis perdizes e três lebres.
No primeiro dia de caça, a noticia corre veloz de boca em boca e
discutem-se as proezas dos caçadores que vão chegando.
Num grupo, junto ao chafariz, conversa-se animadamente.
Diz um:
– Com que então o Luís queria dar
um bigode ao Chico? Pobre rapaz, nem quinze matou! Mata razoavelmente, mas nem de longe lhe chega aos calcanhares. Em vinte
léguas em redor, não há pernas mais rijas que as do Chico do Alto!... E
o alma do diabo tem um golpe de vista como poucos... Se a caça não
andasse tão escassa era homem para matar cinquenta ou sessenta peças,
num dia, sem se ralar muito. Aqui ninguém o bate. Digo-lhe eu!
– O homem sabe de todas as voltas da caça e se levasse em capricho nem
uma lhe fugia.
– Onde põe os olhos põe o chumbo! – Se ele tivesse uma espingarda de
cinco tiros, como o Luís, bando que se levantasse derrubava-o, num abrir
e fechar de olhos.
– Anda para aí o balofo do Luís com loas! Diz que o Chico o que tem é
muita sorte, que a caça vai ter com ele!
– É um gabarola, esse bêbado do Luís, o que ele tem é inveja! Nem de
longe possui as pernas do Chico e erra que se farta, apesar de ter uma
bela espingarda com cartuchos americanos
e pólvora branca.
– Inveja, só inveja e má língua!
– Bazófia, sim, e muita toleima, confirma o Manuel Maria. Isto para a caça
às perdizes o que é preciso são umas pernas de aço. Como as do Chico,
ainda não vi outras. Vi-o um dia subir as «Cabeças Gordas» e o malvado
não levou cinco minutos a chegar ao cimo!
– Foi dar com as perdizes que tinham acabado de pousar. Aí fez uma
carambola. Dois tiros seguidos, dois belos perdigões que caíram
redondos. Ele até tem tempo para escolher os perdigões!...
– O Luís desculpa-se com a pouca
sorte em vez de confessar que é por falta de rapidez no tiro.
– Se não fosse o belo perdigueiro que o Luís tem, não matava mais
perdizes do que eu, afirma com ironia o
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Blé, um novato, também partidário de
Santo Humberto.
– Esse «Tejo» é um belo cão, não deixa uma única perdiz no mato e só
as entrega ao dono mesmo que sejam
derrubadas por outro. O Luís, que é
manhoso e falso, faz sempre por atirar o último tiro, mesmo que a perdiz
vá
já a desandar.
– Ainda na última caçada do Natal, três perdizes feridas de asa pelo
Chico foi o Luís que as pendurou.
– Diz-se que o «Tejo» custou dois contos, mas nem por dez o
Luís o
vendia!... Isso vendia ele?!... Perdigueiros daqueles são raros compadre,
afirma o Manuel da Loja.
– Desde que possui o «Tejo», ainda não apanhou uma «grade» e dantes uma
vez por outra vinha com as mãos a abanar. O cão tem um belo faro, as
perdizes ficam amarradas e levantam-se debaixo dos pés.
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Legendas eternas
– O homem pensador é necessariamente taciturno. A mulher faladora não
consegue atordoar-lhe o espírito, mas faz-lhe nos ouvidos a traquinada
intolerável duma matraca. A matraca afugenta do coração do homem todas
as quimeras do amor. –
CAMILO CASTELO BRANCO |