Hiperligação para a hierarquia superior.

Aproveitemos a Crise

Tal como o vento, o sol, a chuva, a crise é inevitável nas vidas pessoais e colectivas. O estudo da história social e política ensina-nos como a crise foi sempre momento de mudança para melhor. De facto, foi resolvida dando solução a erros, que se foram acumulando, levando à catástrofe.

Na verdade, a presente crise mostrou como nada é seguro. Nem o preço de terras e de edifícios, muito menos o de acções e de obrigações. Nem sequer é seguro o valor do dinheiro em caixa. De facto, em 26 de Outubro de 2008, a Islândia, estava à beira da falência pois o seu sistema bancário estava arruinado. Em grande dificuldade estavam países como o Paquistão, Ucrânia, Argentina e Hungria, etc. (Attali, 2009, pág. 89). Só não aceitam a hipótese da bancarrota de um país os argentinos, que, por força da sua credulidade, são objecto de risota pelos seus vizinhos sul-rio-grandenses e professores de economia que há muito não estudam uma lição.

Por outro lado, Stanley Bing, pseudónimo de Gil Schwartz, escrevendo sobre a formação do Império Romano como alegoria sobre a loucura e irracionalidade das empresas modernas, afirmou “na década de 90, havia um certo número de empresas do sector da Internet muito sobreavaliadas pela estúpida aliança entre a bolsa de Wall Street e uma comunicação social completamente servil” (Bing, 2006, pág. 54). 

A crise é assim também o motor da destruição criativa de balelas, criadas e difundidas por gente sem escrúpulos e adoptadas como ciência por gente crédula e ridícula, refutadora de teorias económicas sem consistência nem relação com o real.

Aproveitemos por isso a crise como ocasião benéfica para corrigir ficções mas isso só é possível desiludindo-nos. 

  

1 – Diagnósticos da crise

Neste tempo de crise, um dos negócios mais promissores é escrever livros e artigos sobre a Origem das Crises Financeiras. Foi o que fez Cooper, cujos livros podemos encontrar em qualquer Continente cheio de novidades. Feito com o objectivo de demonstrar que o heterodoxo Hyman Minsky tinha razão quando criou a Hipótese da Instabilidade Financeira, algo de que ninguém quis saber até ao momento em que a crise deixou de ser controlável pelos diligentes bancos centrais. Escreveu por isso:

A criação do crédito bancário, a contabilidade da avaliação permanente a preços de mercado, os mercados de activos financiados por dívida, a dependência cíclica de spreads do crédito, a procura motivada pela escassez e a procura motivada pelo preço, todos fornecem mecanismos de reacção positiva com o potencial de levar os mercados financeiros a comportarem-se de forma inconsistente com a teoria dos mercados eficientes” (Cooper, 2009, pág. 103).

 Terminou o seu livro com republicação de um artigo de J. C. Maxwell, extraído de “Proceedings of the Royal Society, n.º 100, 1868, com o título Sobre os Reguladores. Tendo-nos deixado no vazio sobre a forma de fazermos da contabilidade um regulador da crise, é assim que começamos a nossa pesquisa sobre as virtudes e pecados de aplicarmos “a contabilidade da avaliação permanente a preços de mercado”. Tentaremos por isso descobrir como a contabilidade pode ser um elemento estabilizador e até regulador da crise, tornando-se um elemento limitador da geração de ficções. São estas as bolhas que quando esvaziam ou rebentam deixam atrás de si um rasto de frustrações e de angústias, que levam a que os balanços tenham de ser corrigidos para que permitam raciocínios de gestão mais adequados ao real.

  

2 – A Boa e a Má Contabilidade

São elementos fundamentais da análise dos investimentos os diversos documentos financeiros, cuja qualidade, o resultado do trabalho contabilístico estruturado por uma organização de registo com as suas contas e regras de registo, que convém analisar criticamente na sua conceituação e funcionamento.    

Neste processo, é fundamental o papel dos professores de contabilidade nos diversos graus de ensino pois são essenciais para a criação de uma literacia mínima de gestores, trabalhadores e principalmente dos investidores, que procuram aplicar os seus capitais de forma rentável assumindo mais ou menos riscos, que procuram com prudência conhecer.

A introdução do Sistema de Normalização Contabilística é por isso o momento crucial na rearrumação dos dados e práticas contabilísticas para que se tornem mais credíveis e possam permitir o desfazer dos mitos que geraram a crise. Contudo, alguns professores de Contabilidade, numa atitude displicente, como é o caso de Carlos Batista da Costa e Gabriel Correia Alves, conhecedores já das novidades do SNC, em 27 de Outubro de 2008, reduzem-nas a pouco mais do que algumas alterações terminológicas não lhe dando grande importância prática. Também o ensino da contabilidade no ensino secundário e básico é um elemento fundamental para a consolidação e aprofundamento da literacia contabilística, boas práticas administrativas e, finalmente, para o bom e assisado desempenho dos gestores. Infelizmente, uma sequência desastrosa de más reformas educativas reduziu a muito pouco o ensino da contabilidade nas Escolas Secundárias.

 Apesar de termos de ter em linha de conta o saber de Carlos Batista da Costa e Gabriel Correia Alves que espalham em mais de mil páginas, temos que ter em atenção as recomendações que o SNC nos faz e analisá-las criticamente. Usaremos para isso a edição da Porto Editora na sua segunda edição de Dezembro de 2008.    

 Não sendo possível fazer a sua análise rigorosa e exaustiva, é de realçar que na página 218, coluna 1, se faça a notícia de que é possível escolher uma moeda de apresentação como “a moeda na qual as demonstrações financeiras são apresentadas”.

Dá-nos assim a possibilidade de escolhermos o referencial mais seguro para determinarmos as possíveis e agora frequentes perdas por imparidade em todos os tipos de activo de uma empresa. Infelizmente, só criou contas deste tipo para os activos fixos, deixando de fora todos os outros, as matérias-primas e mercadorias, os investimentos e aplicações de dinheiro e até a provável quebra da moeda, que a crise pode provocar e que é cada vez mais volátil no mercado monetário.

Tal como Arquimedes, com este ponto fixo, podemos mudar o mundo, ou seja, podemos colocar nele a alavanca que faz andar a economia: a boa contabilidade.

Contudo, ao longo das diversas designações que a Comissão de Normalização Contabilística foi atribuindo notamos algumas distracções e algumas falhas, que podem tornar difícil e geradora de erros a classificação de elementos e situações patrimoniais e redituais, gerando confusões e análises deficientes da gestão empresarial.      

Como em tudo na vida, a Má Contabilidade expulsa a Boa Contabilidade. Na verdade, o que acontece com a Moeda, em que a Má expulsa a Boa, as regras impostas por empresários pouco escrupulosos, capazes das maiores violências para dominarem as suas empresas, dispostos a amedrontar os que organizam e fazem as contabilidades, castigando os honestos e premiando os Yes Men, geram situações catastróficas como a do caso Enron. De facto, o medo é o traço comum de várias empresas com más contabilidades que foram à falência ou estiveram próximas de o estar. 

 Na verdade o medo é a base de uma estratégia perdedora como pude concluir a partir deste caso e de outros listados na Fortune de 3 de Junho de 2002 (págs. 36-44) que trazia um longo artigo da autoria de Charan e Useem acerca dos porquês das falências das empresas. Este estudo sério e rigoroso traça em linhas gerais as grandes linhas determinantes das progressivas perdas de força das empresas, que um dia do topo caíram em abismos que cavaram com os seus erros de gestão (Diniz, 2002). É o que Stanley Bing em 2007 confirma ao escrever: “amiúde me irritam os grandes, enormes mestres do excesso, como Dennis Kozlowski [1], enquanto não sinto mais do que um vago desprezo pelos mestres da ganância egoístas, como a gestão de topo da Enron, particularmente a figura de Kenny Boy Lay, e um grande medo por alguns dos poderosos agora no poder, ao ponto de nem sequer dizer os seus nomes. Todos sabemos muito bem quem são” (pág. 86). De facto, o medo é gerador de perdas pois assim as linhas determinantes das relações de poder inquinam a contabilidade, permitindo a perversão de regras da contabilidade, incluindo as do IASCF. Na verdade, esta, mesmo agora, 14 de Julho de 2009, preocupada com a crise, propõe medidas de simplificação para melhorar a qualidade das demonstrações financeiras [2] e, infelizmente, essa preocupação natural não é partilhada pela Comissão de Normalização Contabilística. É o que nos parece através de uma leitura atenta do SNC.      

 

3 – Contabilidade como geradora de parte da Crise

É sabido que os activos das empresas financeiras são o resultado de congeminações e manipulações de activos de diverso tipo, autênticos livros de ficção que ninguém na realidade leu, nem sequer os CEOs. Attali (2008, págs. 54-55) culpa os criadores destas ficções, ou seja, dos activos tóxicos, os derivados, porque “construídos sobre fórmulas muito complicadas, (que) foram-se tornando cada vez menos compreensíveis mesmo para os próprios dirigentes dos bancos que os promovem. Algumas instituições financeiras propõem aos seus clientes títulos deste género cuja descrição consta de um manual de 150 páginas que nenhum quadro de banco compreende nem controla”. Explica-nos a seguir que os gestores ganham em função dos ganhos, mas nada perdem quando há perdas. Essas são só para os accionistas e como se verificou para os investidores que caíram nas balelas que eles inventaram. Participam também na criação destas ficções as empresas de rating, que ao classificarem como bons certos investimentos ficam a ganhar, pois quem lhes paga são quem vende estes activos aos investidores. Proliferaram por isso os activos tóxicos que, enquanto não forem reduzidos ao seu valor, continuam a inquinar a economia global.  

Por isso, Attali (2008, pág. 75) informa-nos que a certo momento, Setembro de 2008, nesta crise, “de acordo com as novas directivas IFRS, todas as outras instituições financeiras seriam obrigadas a valorizar imediatamente os seus activos a esses níveis, reduzindo o valor em bolsa e, por aplicação dos acordos de Basileia, a sua capacidade de emprestar”. Note-se que “International Financial Reporting Standards” (IFRS) são normas internacionais de contabilidade, um conjunto de pronunciamentos contábeis internacionais publicados e revisados pelo IASB (International Accounting standards Board)” [3], agora adoptados pelo SNC. Mais adiante, Attali (2008, pág. 80), esclarece ainda mais o problema das normas contabilísticas, escrevendo:” “As críticas não se fizeram esperar no país [4], no Congresso e no Senado. Vieram da esquerda: como distinguir as dívidas “boas” das “más”? Que quer dizer “preço justo”.

Na verdade, neste conceito está o “calcanhar de Aquiles” do SNC, onde é traduzido por justo valor. Infelizmente, foi aprovado pelo Decreto -Lei n.º 158/2009, de 13 de Julho, sem atender a todas as lições desta crise e sem suscitar a necessária discussão pública. Confiemos por isso com cautela prudente no recurso previsto neste Decreto -Lei Às NCRF e NI; às NIC, adoptadas ao abrigo do Regulamento n.º 1606/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho de 19 de Julho; às normas internacionais de contabilidade (IAS) e normas internacionais de relato financeiro (IFRS), emitidas pelo IASB, e respectivas interpretações SIC – IFRIC (pág. 4384 do Diário da República, 1.ª série — N.º 133 — 13 de Julho de 2009), pois a IASB promete estar atenta. Mas, não confiemos só. A crise vai continuar até expurgar todo o pus resultante da má contabilidade.

 

À Guisa de Conclusão

Tendo só entrevisto os problemas da crise sob o ponto de vista contabilístico, tenho perfeita consciência de que só os aflorei. Por outro lado, há pouco menos de três anos, encontrei num sebo de Goiânia, na rua 4, bem junto ao meu hotel, um livro estranho de Robert Brenner. Era um exemplar cuja venda era proibida, que me alertava para a completa ficção que eram os exuberantes anos 90 do século XX. Os últimos meses mostraram que tinha razão pois geraram ilusões, que agora se desfazem num mundo desapontado, onde cada homem perde toda ou parte da sua esperança.

Como lição de vida, percebi que os bons livros como fazem todos os amigos sinceros servem para nos desiludir. Os inimigos e os falsos amigos só nos querem iludir. Desiludamos por isso.   

 

Referências:

Jacques Attali – A Crise, e agora, Tribuna da História, Lisboa, 2009, tradução de La Crise et après, Librarie Arthème Fayard, 2008.

Stanley Bing – Roma S. A. – A Ascensão e a Queda da Primeira Corporação Multinacional, Lua de Papel, Lisboa, 2007.

Robert Brenner – O Boom e a Bolha, Editora Record, Rio de Janeiro e S. Paulo, 2003. 

George Cooper – Origem das Crises Financeiras: Bancos Centrais, Bolhas de Crédito e o Mito do Mercado Eficiente, Lua de Papel, Alfragide, 2009.

Carlos Batista da Costa e Gabriel Correia Alves – Contabilidade Financeira, Editora Rei dos Livros, 7ª Edição, Lisboa, 2008.

Aires Antunes Diniz – Medo – Base de uma Estratégia Perdedora, 13 de Junho de 2002, Terras da Beira, pág.12.

 

Coimbra, 17 de Julho de 2009
 

Aires Antunes Diniz

 


[1]Dennis Kozlowski, director executivo da Tyco, foi condenado a oito anos de prisão por ter gasto em benefício próprio mais de 400 milhões de dólares da empresa. (N. do T.) 

[4] Os Estados Unidos da América.

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