É curioso saber-se qual a razão por que a
costa de S. Jacinto pertencia a Ovar: é tradição constante que a barra
de Aveiro existiu primitivamente, ainda ao norte da Torreira, mas, com
tendência de abrir sempre para o sul, foi estacionar perto da costa de
Mira, sendo essa a causa das febres paludosas que a povoação desta
cidade sofreu por muito tempo, e a saída de muitas pessoas e famílias
inteiras para fora dela, porquanto, ficando longe a entrada da água do
mar, as marés não chegavam a toda a ria, que pouco a pouco se foi
convertendo em ilhotas e produzindo caniços e outros vegetais, quero
dizer, outras plantas próprias das águas, mistas, e tanto cresciam esses
vegetais, que não deixavam o vento impelir os barcos, sendo por isso que
começaram a usar-se as velas de forma especial na nossa ria, adaptadas a
receber o vento no alto, onde não chegavam a embaraçá-las os caniçais
das margens dos esteiros.
Ora a Câmara de Ovar foi-se apoderando
sempre do areal que o afastamento da barra para o sul deixava a norte
dela, e tanto cuidado tinha em conservar esta posse até ao marco de
Mira, que, a despeito da abertura da barra actual, se manteve também na
posse dos areais que ficam ao sul da mesma barra, quero dizer, da nova
barra até ao marco de Mira. E assim, não só das costas da Torreira e S.
Jacinto, mas também da Costa Nova do Prado, em que os pescadores de
Ílhavo que até essa ocasião trabalhavam na costa de S. Jacinto,
colocaram os seus barcos, redes e mais aprestes, e edificaram palheiros,
continuando a trabalhar, tendo assim início a Costa Nova do Prado, de
que mais tarde se falará, e isto pela dificuldade de se transportarem
todos os dias para S. Jacinto através das correntes da barra.
Os concelhos fronteiros ao areal pouco se
embaraçavam com esta posse, porque as costas não eram povoações fixas,
mas só para assim dizer uns abarracamentos para guardas de materiais das
campanhas durante o inverno, em que elas não trabalhavam nas costas, e
também não julgavam de cobiçar a posse destes areais, por serem
considerados geralmente como de todo improdutivos; a Câmara de Ovar
algum proveito, porém, deles tirou, como eram taxas das licenças, os
direitos de vinho, que em quantidade se vendia nas costas, durante a
temporada da pesca, e finalmente, porque as justiças informadas pelos
compradores de sardinha, que naquele tempo eram todos de Ovar, de
qualquer rixa ou desordem entre os pescadores, que segundo a antiga
jurisprudência, fosse caso de devassa, instauravam processo e obrigavam
os pobres delinquentes a irem responder a Ovar, tendo de deliberar-se
aí, embora já estivessem livres nos juízes de domicílio das querelas,
por ventura intentadas aí por parte dos queixosos.
A pesca do mar estava na maior decadência
desde que as campanhas de Ílhavo, como já dito fica, abandonaram em 1807
a costa de S. Jacinto. Aqui ficaram apenas duas campanhas de pescadores,
a Enchada e a Canária, pobres, empenhadas e mal administradas. Mas assim
se foram arrastando, até que mais tarde Manuel Firmino de Almeida Maia,
comprando-lhes os aparelhos e acrescentando-as, fundou aí uma campanha,
seguindo-se outras a seu exemplo, e remoçando-se assim a costa de S.
Jacinto, que estava quase reduzida a um deserto.
Chegou a haver à beira do rio um único
palheiro; além de quatro ou seis à beira-mar, pertencentes ou às ditas
duas companhas, ou a pessoas da cidade, ocupados na época balnear por
alguns, mui poucos, frades ou negociantes velhos e reumáticos que ali
iam procurar alívio em seus achaques.
No palheiro à beira do rio, havia uma
taberna, administrada pelo velho e mui conhecido Siopra, natural de
Águeda e avô de José Maria Veloso, que foi algum tempo amanuense do
Governo Civil e poeta. |