OVAR – IGREJA MATRIZ – SAÍDA DO
SAGRADO VIÁTICO
povo português sente-se bem junto do mar – junto
desse leão indomável e majestoso que por vezes se declarou vencido
na luta gigantesca travada com alguns dos seus mais audazes
navegadores.
Foi assim que os frágeis e pequenos baixéis do
imortal Vasco da Gama singraram, orgulhosos, "por mares nunca
dantes navegados", sem recear as ameaças do fero Adamastor.
Dir-se-ia que as alterosas vagas do grande Oceano até então
misterioso, que ele foi desvendar, obedeciam à sua voz de marinheiro
forte e audaz, baixando, tímidas, as suas cristas espumantes.
É que o povo português está verdadeiramente
identificado com esse colosso eternamente irrequieto e feroz, mas
desde sempre e para sempre belo – o mar!
Não há dúvida de que a este heróico povo ainda
qualquer coisa resta, mais do que reminiscência vaga, da raça
fenícia, dessa raça aventureira e laboriosa que invadiu a Lusitânia
pela primeira vez, ao que se supõe, pelos anos de 954 antes de Jesus
Cristo – 201 anos antes da fundação de Roma.
Esses arrojadíssimos habitantes daquela parte do
litoral do Mediterrâneo fechada ao oriente pelas elevadas
cordilheiras do Líbano, alargando as suas vistas pela grande
superfície das aguas, calcularam que elas lhe poderiam dar um grande
predomínio e, se bem pensaram
/ 157 / no seu engrandecimento, logo
puseram em prática tão grandiosa ideia.
Não possuíam cartas hidrográficas nem agulhas de
marear, mas a boa vontade e tenacidade haviam de suprir essas faltas
aos primeiros navegadores do mundo. Os remos eram a força impulsora
dos seus navios e as suas viagens realizavam-se ao longo das costas
e á vista de terra. Atravessaram todo o Mediterrâneo, fundaram,
diz-se, Cartagena e foi Cádis o seu principal empório comercial.
Navegando para o norte, percorreram todo o litoral lusitano, que
fundamente os maravilhou, e desde logo resolveram assentar seus
arraiais por tão formosas paragens.
Mas se a raça fenícia, instalando-se na antiga
Lusitânia e cruzando-se com os habitantes desta parte ocidental da
Europa, perpetuou nos seus filhos a arte da navegação e o arrojo e
valentia de que estes sempre deram e ainda hoje dão provas, a raça
pelagiana veio, mais tarde, por intermédio do pescador provençal,
implantar o sistema da pesca em vários pontos da costa lusitana,
transformando-o numa indústria que dia a dia aumentou
extraordinariamente, chegando a ser hoje uma verdadeira fonte de
riqueza de Portugal.
/ 158 / Um desses pontos escolhidos pelos pescadores
provençais foi a praia que actualmente se denomina "Furadouro" e que
dista apenas quatro quilómetros da vila de Ovar.
Ao habitante desta vila dá-se, em geral, o nome de
vareiro, e assim deve ser chamado, apesar de serem também conhecidos
pelo mesmo nome todos os habitantes da beira-mar, desde S. Jacinto
(Aveiro), até à praia de Espinho. Claramente se vê que o primitivo
nome de Ovar devia ter sido Var, por isso que se diz vareiro ou
varino, e não ovareiro ou ovarino(1), e em reforço desta opinião,
que é uma das que Pinho Leal apresenta no seu notável "Diccionario
de Portugal antigo e moderno", vem o saber-se que na costa
marítima da Provença há uma cidade, um rio e um cantão denominado
Var, e que o pescador provençal aportou às nossas costas e em
algumas delas se estabeleceu, deixando, para prova disso, uma certa
afinidade de modos e costumes que de todo ainda se não dissiparam da
nossa classe piscatória.
Que mais preciso é para chegarmos à conclusão de que,
por semelhança, dessem os provençais ao sítio onde hoje se encontra
a vila o nome de Var? E tendo sido esta a povoação do Var, que coisa
pode haver de mais natural do que denominar-se, com o decorrer dos
tempos, a povoação de Ovar?
E tanto isso se podia dar e ter hoje como certo, que
não resta dúvida, como o afirma Pinho Leal, de que os antigos
juntavam sempre a preposição ao nome próprio, fazendo, por exemplo,
de de Ornellas, Dornelas; de la Cerda, Lacerda; de
dos Ruivos, Durruivos, etc.(2) Sobre a
/ 159 / afinidade do vareiro com o provençal, não deixaremos de transcrever textualmente
o que aquele mesmo autor nos diz: «O pescador provençal, como o
vareiro, com as suas calças largas e curtas, com a sua faixa e com a
sua grande carapuça, recorda-nos a sua procedência e a pasmosa
semelhança com o pescador das Ilhas Jónicas, no modo de vestir e
viver; devemos, porém, confessar que o cruzamento com as diferentes
raças peninsulares fez, em grande parte, perder ao vareiro a sua
primitiva beleza de formas, que tem degenerado menos entre o
provençal.»
Assim é, realmente, mas ainda hoje se reconhece na
raça vareira propriamente dita, isto é, na classe piscatória, uma
organização forte e sadia, capaz de arrostar com as maiores
intempéries da vida.
Os pescadores, que raramente abandonam a praia do
Furadouro. durante a época da pesca da sardinha, que decorre de Maio
a Dezembro, conservam ainda dum modo notável o tipo primitivo, em
que predomina a regularidade das formas e o desenvolvimento
muscular.
A vareira, que em várias terras do país e sobretudo
em Lisboa é, como já dissemos, mais conhecida pelo nome de ovarina
ou mais propriamente varina, é uma mulher inconfundível não só pela
sua energia, graça e vivacidade, como pela beleza e perfeição da sua
plástica. A vareira não é a mulher clorótica e enfezada, embora com
uns laivos de formosura, que nós estamos hoje habituados a ver a
cada passo, porque não quer sujeitar-se ao martírio do espartilho e
dos mais requisitos da moda tão inflexível, quanto perigosa.
Ela é, pelo contrário, a mulher forte, activa,
desenvolta e ágil que, para ganhar honestamente o seu pão, vai
correndo sobre a areia da beira-mar, ou
/ 160 / através das
povoações, canastra à cabeça, lenço solto ao vento, peito à vontade
e as saias ensacadas nos largos quadris, e soltando o característico
pregão com toda a força dos seus robustos pulmões: – "Vivinha da
costa!... É d'agora viva!..."
E quem bem se puser a contemplar o perfil de muitas
dessas mulheres, lembrar-se-á, sem dúvida, dos perfis helénicos que
arrancaram à estatuária desse povo de artistas a formosa cabeça de
Afrodite.
Mas voltemos à beira-mar.
O Furadouro (corrupção de Aforadouro) é uma linda
praia a quatro quilómetros de distância do extremo poente da vila de
Ovar e a esta ligada por uma
/ 161 / formosa estrada orlada de
eucaliptos e marginada por diversas propriedades de vinha e de
pinhal. Vitima de vários incêndios, dos quais a primeiro e mais
importante foi em 31 de Julho de 1881, o Furadouro perdeu a sua
feição antiga, desalinhada e pobre, sobretudo do lado do norte e
parte do lado sul da praia, onde agora se vêem muitas ruas
perfeitamente alinhadas e algumas macadamizadas, com bons prédios de
pedra e cal, espaçosos e elegantes. A maior animação da praia é nos
meses de Agosto, Setembro e Outubro, não só por serem esses, em
geral, os de mais abundante e melhor pesca, como pela concorrência
que então se nota de muitas famílias que de Ovar e outros pontos do
distrito de Aveiro e mesmo de fora dele ali vêm gozar a época
balnear.
No Furadouro já hoje não escasseiam comodidades para
se viver regularmente e até com certo prazer, durante essa época,
pois, a par dos diversos estabelecimentos onde se encontram todos os
géneros de primeira necessidade, possui, há já alguns anos, um bem
montado hotel, café e bilhares, e tem passatempos admiráveis e
higiénicos, tais como a caça nas matas que lhe ficam próximas e a
pesca na lindíssima ria do Carregal, que fica apenas a dois
quilómetros da praia e que é um dos braços da célebre ria de Aveiro.
O Furadouro tem duas capelas – a do Senhor da Piedade
e a da Senhora do Livramento, ou das Areias. A primeira, muita
pequena e já restaurada, foi construída em 1776, apesar de existir
já como oratório de madeira desde Outubro de 1759, e a segunda, de
recente construção, é espaçosa, embora de traço simples e modesto.
Muita teríamos que dizer sobre estas e outras
particularidades que se prendem com a história de Ovar, mas
reservar-nos-emos
/ 162 / para lugar mais apropriado e ocasião mais
oportuna.
Não deixaremos, contudo, de falar aqui nas companhas
de pesca – o principal ramo de comércio da gente da beira-mar, que
hoje tão desenvolvido se encontra por todo o país.
Actualmente trabalham na costa do Furadouro quatro
companhas – a de S. Pedro ou do Guincho, a de S. Luís ou a
Camona, a da Senhora do Socorro ou do Massaroca, e a «Boa
Esperança», empresa que gira sob a firma de Pinto Palavra & C.ª L.ª
Das três primeiras companhas são respectivamente
senhorios os Srs. João Pacheco Polónia, Francisco Ferreira Coelho e
Joaquim Valente de Almeida, e da empresa de pesca "Boa Esperança" é
gerente o Sr. Francisco de Matos, bem quisto comerciante da Praça de
Ovar.
Daquelas sociedades de pesca, que no fim de cada
safra podem apresentar, em média, uma receita não inferior a
cinquenta contos de reis, a mais recentemente fundada foi a «Boa
Esperança», pois que a sua organização data de 16 de Fevereiro do
corrente ano. A montagem desta companha e o seu processo de trabalho
são notáveis e dignos de minucioso exame por parte de todas as
pessoas que se interessam pela arte da pesca.
Ao sul da praia e em terreno cedido pela fábrica de
conservas A Varina, que tem a sua sede na vila de
Ovar, e cuja filial, para o fabrico da sardinha, ali se encontra
muito bem montada, está
/ 163 / feita a instalação da nova companha,
que se compõe de grandes armazéns de madeira, divididos em três
corpos solidamente construídos: um ao fundo para habitação do
pessoal e dois aos lados, sendo destes um para abegoaria e outro
para guarda de aparelhos, além de outras dependências de somenos
importância.
Para quem nunca viu a pesca de arrasto em algumas das
costas do norte de Portugal, torna-se um passatempo cheio de
curiosidade o presenciar toda essa cena de um pitoresco e de um
sabor local inexcedíveis. Desde o lançar dos barcos ao mar até ao
sair das redes, sucedem-se interessantíssimas manobras que, apesar
de rotineiras, são duma grande utilidade e precisão.
A praia, em dias de pesca abundante, é
extraordinariamente movimentada e sobretudo no momento em que as
redes chegam a terra. O espectáculo então é maravilhoso e sempre
belo. O sussurro monótono das vagas, o piar agudo e incessante das
gaivotas que em enormes bandos se aproximam da beira-mar e a
vozearia ensurdecedora dos pescadores ao puxar as redes para fora da
água produzem uma música estranha, que se ouve a muita distância e
cuja toada não deixa de ter uma certa harmonia que deliciosamente
encanta os que a escutam. Logo que a sardinha sai das redes e é
comprada por vários mercantéis, são as vareiras encarregadas
da sua condução para os palheiros dos compradores, depois de a
escorcharem com uma rapidez assombrosa.
É então que a vareira se mostra tal qual é: – forte,
desenvolta, ágil e corajosa, trabalhando sem descanso, correndo
sobre a areia como ligeira arvéloa, metendo-se pela água do mar até
à cintura para lavar os rapichéis da sardinha, cantando
sempre, rindo sempre e aspirando a plenos pulmões o ar forte e sadio
da beira-mar. Na praia do Furadouro tudo isto se vê, todas estas
belezas se gozam e pena é que ela tão desconhecida seja ainda neste
nosso país, quando é certo que outras praias muito inferiores e sem
belezas naturais têm alcançado e continuam alcançando as boas graças
dos forasteiros.
Ovar, Junho de 1906.
A. DIAS SIMÕES
Clichés
de Ricardo Ribeiro
NOVA CAPELA DA PRAIA DO FURADOURO
_________________________________
(1)
–
Apenas a mulher de Ovar é também conhecida pelo nome de ovarina,
sobretudo em Lisboa, mas chama-se mais propriamente, e em geral,
varina ou vareira.
(2)
–
O Dr. João Frederico Teixeira de Pinho, nas suas "Memorias
e datas para a historia da villa d'Ovar", afirma que a vila
deriva o seu nome do verbo absoluto – Ovar –, porque multidão de
aves palustres punham ovos e criavam aqui, onde os moradores da
vetusta Cabanões vinham a eles.
Pinho Leal insurge-se contra esta opinião, dizendo
que, a ser assim, a vila deveria ter o nome de Desovar e não Ovar.
Outras opiniões se apresentam ainda sobre o mesmo
assunto, quase destituídas de fundamento, mas eu sigo apenas aquela
que deixo exposta, como mais racional e consentânea com os factos
históricos.
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