E o leitor patrício e amigo quer por este verão abençoado, que ora banha
a sagrada fita de terra em que ambos nascemos (louvado seja Deus!), ir
mergulhar nas ondas salitrosas do mar, e viver num sítio cheio de
encantos, um mês ou dois de repouso de afazeres, não precisa para isso
atravessar fronteiras, mudar de língua e de costumes. Tantas são as
praias lindas e alegres que enfeitam, como bouquet preciosíssimo,
a linha sinuosa do nosso litoral!
Agora se dispõe de tempo, de saúde e de recursos, e, num
desejo ávido de sensações diferentes das que a nossa pátria lhe oferece,
pretende visitar por esta época estival outras plagas, conhecer outros
hábitos, servir-se doutro idioma, então indicamos, com conhecimento
próprio, Biarritz, San Sébastian, St. Jean de Luz e Arcachon.
Temos o propósito, algum tanto assustador para quem nos
vai ler, de falar demoradamente sobre essas praias; por hoje, porém,
apenas nos referiremos à última, da qual trouxemos finas recordações.
Há pouco mais dum mês estávamos nós ainda em Paris,
quando Paris subitamente se tornou insuportável, mercê do calor que dum
dia para o outro ali sentou arraiais.
Era preciso fugir-lhe. Para onde? Arcachon, indicou-nos
uma gentil parisiense. Sigamos o conselho. Horas depois, o rápido
Paris-Bordeaux conduzia-nos e a duas pequenas malas, com uma real
rapidez. Sete horas leva o trajecto entre aquelas duas primeiras cidades
francesas, e uma hora mais da derradeira à estância referida.
Arcachon divide-se em duas regiões perfeitamente
distintas: a Vila de Inverno e a Vila de Verão; esta é a
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praia de banhos; aquela é a povoação serrana. A fantasia local quer
ainda uma outra divisão, com o acréscimo duma Vila de Outono.
Achamos demasiado...
O que torna preciosa a chamada Vila de Inverno (na
qual fundimos a de Outono, se no-lo permitem), é o ser edificada em
pequenos montes, por vezes bastante íngremes, todos profusamente
arborizados, com habitações graciosas e higiénicas que jardins
cuidadosamente tratados airosamente rodeiam. Um desses montes é
inteiramente coberto de pinheiros e destinado exclusivamente a passeios
a pé, e jogos ginásticos ao ar livre. Um sanatório sem edifícios, onde
centenas de anémicos e de tísicos têm encontrado a cura das suas
melancólicas enfermidades.
E
nem
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ruído de malheiros nem um leve fumo de chaminés industriais. Uma
quietude absoluta, uma atmosfera lavada de toda a impureza, por onde o
ar do mar, coado através da ramaria, circula saudável e leve. Na
construção dos seus chalets, a imaginação exótica dos seus
proprietários vibrou bizarra e ampla. Nas linhas das suas avenidas e
pequenos largos ajardinados, a administração pública houve-se com arte e
com gosto. Custa a diferençar se foi a mão do homem que conduziu a
Natureza, ou se se deu o contrário.
No Casino Mauresque, onde tão doces horas
passámos, encontra-se todo o conforto, dezenas de divertimentos e golpes
de vista sobre o mar, sobre a floresta, e sobre a barra, que deliciam o
olhar menos extasiável.
Mas
de onde realmente a vista é maravilhosa é do alto do Mirante, ao qual se
sobe só para esse fim, munido de binóculos de grande alcance. Nem toda a
gente se aventura a subi-lo por que o último varandim oscila bastante e
lançando de lá os olhos em torno parece cercar-nos um verdadeiro abismo.
Será preciso dizer-lhes que esta vila tem, além das casas mobiladas para
alugar, desde o palacete luxuosíssimo até à modesta casa de campo,
magníficos hotéis e restaurantes? Ou não estivéssemos em França... A
partir de 100 francos por mês, diz a informação oficial, pode obter-se
uma vila isolada, contendo três quartos, uma cozinha e algumas pequenas
dependências mais.
Quanto aos chalés de luxo, atingem os preços de 2.000 a
3.000 francos; são porém pequenos palácios ricamente mobilados. E isto,
repetimo-lo, sem comércio, nem indústria de qualidade alguma a
materializar a vida deste pequeno paraíso. Estabelecimentos
/
140 / só, absolutamente só, hotéis e
restaurantes.
Mas desçamos à Vila de Verão. Quanto a de Inverno
é acidentada em terreno, quanto esta o não é. Toda plana, cortada de
ruas e avenidas em rectas, muitas das habitações com jardins à frente e
de um só andar, quase todas as vias públicas ladeadas de tílias e
acácias, com elegantes e enormes hotéis como o Grand Hotel, um
Casino da Praia, que é uma beleza tanto interior como exteriormente,
um curioso Aquarium, um Grand Théâtre, enorme e belo na
verdade, clubes de todos os sports, sobretudo náuticos.
A praia de banhos, em concha, sem perigos para os
banhistas, e onde crianças livre e despreocupadamente brincam dias
inteiros (por isso lhe chamam Patrie des enfants), não é mais
bela nem mais interessante do que qualquer das nossas: é diferente,
apenas. Tem ilhas em frente e à direita (a Ilha dos Pássaros, e
outras), e à esquerda a entrada do mar, que o Phare, de um lado,
e o Sémaphore, do outro, vigiam atentamente.
Originalíssima, porém, é a Nouvelle jetée, um
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molhe artificial que vai da praia até grande distância pelo mar dentro,
constituindo o passeio predilecto dos banhistas, depois que o sol perdeu
a intensidade de calor.
As mulheres que dão banho às senhoras usam não saias mas
calção curto, o que à primeira vista nos parece estranho por falta de
hábito de as ver assim.
Também na floresta da Vila de Inverno se encontram
guardadores de gado em andas bastante altas, o que igualmente nos causa
estranheza, embora estes costumes sejam puramente lógicos.
/
142 / E para terminar, que isto já vai
longo de mais para a nossa maneira de escrever, sempre à vol d'oiseau,
deixem-me contar-lhes um incidente moral.
Procurávamos, no terceiro dia seguinte ao da nossa
chegada, um rapazito que conhecesse a floresta, para nos servir de guia,
quando a dona do modesto hotel, onde nos hospedámos, nos disse não ser
preciso; iria ela, ou a irmã, ou uma linda afilhada de 8 anos, que
tinham criado desde o berço. Agradeci recusando: era fatigante para
qualquer delas e talvez inconveniente...
Oh, não, meu caro senhor: nenhuma de nós é velha, é
certo, mas aqui todos nos respeitamos. Não estamos em Paris. Arcachon
tem 2.000 habitantes e todos se conhecem. A Margarida (era a afilhada)
ou minha irmã, ou eu, podemos ir sozinhas com o senhor, que nos merece
inteira confiança e nos vem recomendado de Bordéus, sem ninguém ter que
dizer ou do que se admirar.
ALCÂNTARA CARREIRA
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